segunda-feira, 27 de abril de 2009

Eu e a biblioteca do meu pai

Não sei ao certo qual foi o primeiro. Lembro-me vê-los, todos eles, espalhados pela casa desde pequeno. Usei-os, primeiro, como suporte para subir em lugares mais altos, proibidos para alguém com tão poucos anos de vida. Livros para mim, nessa idade, tinham o mesmo valor de pratos, copos, baldes, vasos, escadas, sofá...
Lembro-me das histórias de Branca de Neve e Gato de Botas, mas, sei lá, não me emocionavam. Além disso, na minha visão de quase bebê, as histórias eram uma coisa e aqueles objetos que meus pais seguravam enquanto as contavam eram outra, quase um enfeite.
Tinha uns cinco anos quando, pela primeira vez, me dei conta que as histórias e os livros não sobreviveriam um sem o outro. A capa do volume que meu pai segurava, alaranjada, com uns porquinhos fazendo sei lá o que, parecia muito infantil. E foi assim, como se tratasse de uma história para crianças, que meu pai leu para mim a saga do porco Napoleão e seus seguidores em "A Revolução dos Bichos", de George Orwell.
Muito mais tarde, reli o mesmo livro, dessa vez com meus próprios olhos, e descobri que a fábula era coisa de gente grande e falava sobre a visão do escritor da luta de classes e do totalitarismo que dominaria boa parte do século 20.
Eu, a única criança da pré-escola que tinha uma história de gente grande na cabeça, fui aprendendo a ler muito antes de todos os outros. Treinava com os anúncios publicitários que passavam voando pelas janelas do carro. Lá estava eu, dizendo Calçados Romão, Suvinil, Antártica e qualquer outra palavra que visse em outdoors espalhados pelo bairro do Tatuapé, em São Paulo, onde fui criado até a adolescência. Quando as outras crianças escreviam "O violão é do vovô", rabisquei no meu caderno, para espanto da professora, "Eu sou um ás do rock and roll" (OK, talvez tenha escrito rock and roll errado).
A minha pressa em ler tinha um objetivo claro: poder explorar a então vasta biblioteca do meu pai. Não demorou muito para que isso acontecesse. Aos oito anos, enquanto as professoras passavam textos de meia página para os alunos lerem, eu mergulhava em um livro de mais de duzentas páginas.
A capa dura com o detetive e seu cachimbo me chamou a atenção. Então, puxei da prateleira sempre empoeirada "As aventuras de Sherlock Holmes", provavelmente o melhor obra de Arthur Conan Doyle, que narra o encontro inicial de Sherlock com seu escudeiro Watson (aquele, do "Elementar, meu caro Watson").
A escolha do meu primeiro livro, desconfio, foi um dos fatores que, mais tarde, me levaria a optar por ser repórter policial, área muito menos glamurosa do que eu ingenuamente imaginava, com base na Londres de Sherlock e na Scotland Yard.
O tempo voou e eu, como traça faminta, devorei todos os livros daquela biblioteca que sempre me parecera infinita. Fui buscar nos sebos, com a pouca grana que tinha, a minha própria coleção de livros, hoje razoável, mas que nunca vai ser infinita como foi a do meu pai na minha época de menino.

terça-feira, 21 de abril de 2009

Casais e os grandes temas da humanidade - volume 1

_ ... inclusive um filósofo ateu afirma que a religião pode até ajudar o indivíduo, mas que a coletividade é obviamente prejudicada, já que milhões e milhões já morreram em guerras religiosas.
_ Isso só pode ter sido dito por alguém que nunca pisou numa igreja, que não sabe qual é o papel dela na comunidade. Os padres hoje em dia não queimam mais pessoas. Veja o exemplo dos padres brasileiros, Dom Helder Câmara...
_ Mas já queimaram! Se acabaram com o partido no Hitler depois do holocausto, faria sentido acabarem com a igreja católica que matou muito mais.
_ O problema é que você e esse filósofo ateu tiram tudo do contexto histórico, a igreja é dos homens e falhou, mas não é isso que diz a religião.
_ Até hoje, nunca a igreja seguiu o Jesus disse, já que se encheu de dinheiro e Jesus odiava os ricos. Mas até Ele tinha falhas nos discursos, porque aceitava a escravidão e até dizia para os escravos serem bons com seus donos.
_ Escravidão naquela época era diferente... os escravos tinham suas casas e eram pagos. Os donos que não tinham dinheiro para pagá-los tinham de libertá-los.
_ Duvido muito dessa ética com os escravos, mas mesmo assim não se justifica apoiar a escravidão.
Silêncio.
_ Além do mais, esse papo de juízo final, mortos ressuscitarem, anjos e um monte de gente fazendo milagres é muito furado...
Silêncio.
_ Por que só faziam milagres antigamente? Agora ninguém mais faz nenhum, né? Assim é fácil.
Silêncio.
_ O que foi, você ficou brava, amor?
Silêncio.
_ Hein? Hein?
_ Não, só tô aqui rezando pela sua alma depois de tantas blasfêmias...

segunda-feira, 20 de abril de 2009

Ócio

Vem, primeiro, a catarse. Passa-se horas de chinelo na rede dando risada de tudo e, principalmente, de todos que estão em movimento. Mais tarde, o tédio chega rastejante e toma conta de tudo. O que fazer, afinal, se não há nada para fazer? Você fica dando voltas pela casa despenteado e de pijamas, troca o dia pela noite, toma café demais e, acredite, até procura emprego! Só então que, aos poucos, vai se instalando a paz. Cria-se uma rotina. Seu cérebro volta a funcionar paulatinamente e você pode usá-lo como bem entender. A única coisa que, fatalmente, estraga o dia é a gradual ausência dele, o dinheiro, que derrete nos seus bolsos até não deixar mais rastro. Aí é a hora de fazer a escolha: você voltará a trabalhar pra ele?

quinta-feira, 16 de abril de 2009

Transmimento de pensação na horizontal

"Torna-te quem tu és."
Nietzsche

"Ouse, ouse... ouse tudo!!
Não tenha necessidade de nada!
Não tente adequar sua vida a modelos,
nem queira você mesmo ser um modelo para ninguém.
Acredite: a vida lhe dará poucos presentes.
Se você quer uma vida, aprenda... a roubá-la!
Ouse, ouse tudo! Seja na vida o que você é, aconteça o que acontecer.
Não defenda nenhum princípio, mas algo de bem mais maravilhoso:
algo que está em nós e que queima como o fogo da vida!!"
Lou Salomé

terça-feira, 14 de abril de 2009

Um predador no jardim

Me surpreendeu o alecrim, que era o mais triste de todos e parecia definhar. Fumava eu um cigarro deitado na rede, quando percebi que ele havia entortado seus galhos finos e os apontava em direção ao sol.

As rosinhas, mais liláses que vermelhas, se acotovelam para conviver nos mesmos ramos. A primeira a nascer jaz na terra do vaso, em pedaços, ao passo que outros nove botõezinhos brotam cada um a seu tempo.

A romã salta pelos ares, apesar do arame que, em vão, tenta lhe conter o crescimento.

A hortelã, a mais esperta de todas, se espalhou no vaso logo que chegou. Um ser misterioso, no entanto, fulminou a pobre. Primeiro, um raminho apareceu jogado no chão. Depois, outro. Hoje de manhã, havia apenas o vaso com terra, nem rastro da muda que chegou a ser a mais precoce do jardim.

O predador, porém, não se atreveu a chegar perto do vizinho, o pé de pimenta. Esse sim é forte e dá à luz feito coelho. Chegou tão carregado de pimentinhas vermelhas que enchi um pote com elas e fiz molho. Mal acabei a colheita e pézinho se pôs a parir mais e mais frutos. Uns estão verdes e outros já puxam para o avermelhado.

Mas não convém mudar de assunto diante de tão grave situação. Essa noite, colocarei a isca e ficarei por perto destilando meu ódio contra o invasor do meu jardim. Seja lagartixa, duende ou espírito zombeteiro, seu destino será doloroso.

quarta-feira, 8 de abril de 2009

Parto de arma

Entre vísceras e pólvora
Ela pariu um revólver fumegante
Mesmo carregado, chorava que chorava
Mas era um bebezinho lindo
Uma tez tão lisinha e brilhante
Que chegava a refletir o rosto de quem passava
Emocionada, a mãe deu um beijo no rebento
Que, entre o chorar e o soluçar,
Vomitou-lhe uma rajada de fogo
Bem no meio da cara
O berreiro foi tamanho
Que acordou todo o hospital

segunda-feira, 6 de abril de 2009

Falta de sol

Depois de 33 dias e 32 noites de sol, o céu amanheceu cinzento. A bola de fogo fumegante, que parece nascer e morrer parada em frente à minha janela, não está mais lá. Também não tenho curiosidade em saber onde foi parar.
Ouvi dizer que as ruas ficaram cheias d'água de manhã, quando eu dormia ao som do barulho da chuva. Torci em silêncio para que os construtores que derrubaram todas as casas e construíram prédios no lugar sujassem seus sapatos com pelo menos um pouco da merda que emergiu por culpa da rede de esgotos que eles ajudaram a saturar.
Apesar do sumiço do meu caloroso e iluminado companheiro, o único casaco que trouxe quando me mudei para essa terra quente permaneceu no armário.
Não, a falta de sol também não impediu que eu passasse o dia todo descalço e sem camisa, usando apenas uma bermuda.
Minhas divagações terminariam por aqui, não fosse pela luz conhecida que começa a sair pelas brechas das nuvens cada vez mais secas.
Parece que o astro mais paparicado da galáxia volta ao meu encalço, justo eu, que nunca fiz muita questão da presença dele. Às vezes, esse excesso de atenção me sufoca.

quarta-feira, 1 de abril de 2009

Apaga, assim, sem mais nem menos

Senhores vendedores de cursos de memorização, uni-vos, façam suas propostas, entupam minha caixa de e-mail e congestionem meu celular. Eu, o abaixo-assinado, cansei de esquecer tudo que eu quero lembrar e de lembrar de tudo que não me interessa.
Não, não são apenas os vencedores de todos os BBBs (que eu não assisto!), sei de cor o nome dos namorados das celebridades e subcelebridades. Isso não seria tão ruim se até hoje, aos 28 anos, tivesse conseguido decorar um micro-reles-qualquer trecho livro.
Olha que eu leio de tudo e o tempo todo. Minha biblioteca razoavelmente respeitável. Escolho bons livros e bons autores. Mas não, não adianta, fatalmente lembrarei que um fulano chamado Felipe Simão namora com a Luana Piovani e esquecerei exatamente tudo que li recentemente em Ascensão e Queda do Império Romano.
Sim, às vezes, leio idiotices em sites de celebridades. Sim, eu entro em links de notícias do tipo "Winona Rider vai à praia com novo namorado" ou "Sury Cruise corta o cabelo". Desculpe, Senhor, mas eu mereço tamanho castigo pela minha sede de informações inúteis?
Agora mesmo, para mostrar boa intenção, estou lendo as partes que havia pulado da Bíblia. O fato é que me dei conta que nem a Vossa Palavra para na minha cabeça de pouca fé. Troco Moisés por Abraão, Caim por Abel, Eva por... bom, Eva eu não esqueço porque não tem por quem trocar.
Isso me lembra (milagre!!!) um conto de Jorge Juis Borges, chamado Funes, o Memorioso. Trata-se de um sujeito que lembra tudo que ele faz e por onde passa - cada mínima variação de gesto ou quantas folhas há nas árvores. Resultado: Funes não vive e passa a vida se lembrando de coisas idiotas.
Mas, Funes, tranquilize-se. Mais trágico é meu destino, que em vez de contar os grãos de areia da praia faço contas mais reles, do tipo Britney Spears tem DOIS filhos de um cara chamado Kevin Federline, seu PRIMEIRO marido.
Ah, eu sei que ninguém perguntou, mas de repente lembrei que Lourdes Maria, Rocco e David Banda são os nomes dos três filhos da Madonna!
Senhor, tende pena de mim e me faça lembrar um trechinho do Apocalipse para eu soltar no meio de uma briga conjugal, vai...