domingo, 30 de agosto de 2009

A morte da história

A história estava dentro dela. Era escrita, reescrita, editada, entre nervos, pele, sangue. Memória? Mais que memória. Quem sabe um órgão? Coração, estômago, pulmão e a história. Negava a história, cutucava a história, matava a história, tirava-lhe o H na tentativa de transformá-la em estória, causo, piada, fantasia. Quimioterava a história, para torná-la frágil e pelada, para que ficasse com vergonha e fosse embora. Só infeccionava o que era óbvio: não se arranca a história feito tumor, apêndice, verruga. A história continua a se repetir dentro do coliseu de ossos e músculos. O único jeito de matá-la é não morrer com ela. Embalsamá-la em palavra morta, entre vírgulas e pontos, estrangular até imobilizá-la em duas dimensões, epitáfio de si mesma.

terça-feira, 25 de agosto de 2009

Eu, a torcida independente e a tiazinha mais corajosa do mundo

Ilha do Retiro. A multidão se aglomera em volta do estádio para assistir o glorioso tricolor paulista contra o decadente alvirrubro pernambucano. Era o início de um domingo inesquecível.

Apesar de saber que se tratava de uma inequívoca roubada, resolvi ir ao jogo, sei lá, para matar a saudade da terra natal por meio do futebol do melhor time do Brasil.

O torcedor do time da casa tinha camarote, cadeira numerada, espaço até pra soltar pipa. Na torcida do São Paulo, eram uns cinco mil no espaço onde caberia, no máximo, dois mil. Mas sou um homem valente, vamos lá, fui criado por uma família de lobos!

Bastou eu entrar no estádio para eu perceber que seria impossível ver o jogo. Mas, diz o consultor empresarial, o bem sucedido é o que vê oportunidade quando está tudo uma merda completa. Pois bem, a merda estava lá, só faltava a oportunidade.

Pois não é que ela apareceu. Começou uma briga, daquelas que todo mundo sai correndo e deixa só os encrenqueiros se estapeando. E lá fui eu, bem para o meio da briga, subindo as arquibancadas até um ponto onde poderia ver a partida perfeitamente.

Começa o jogo. Descubro que meus vizinhos de torcida são os educadíssimos integrantes da torcida independente. Decubro que os educadíssimos torcedores vão agitar suas bandeiras bem na minha frente, o que jogaria no lixo todo meu esforço para chegar a posto tão privilegiado.

As bandeiras se agitam e... De repente, eles começam a gritar: "Solta essa porra dessa bandeira, solta, solta sua puta!" Olho para o lado e vejo uma tiazinha agarrada à bandeira da torcida.

A mulher, talvez por não conhecer as boas maneiras da torcida independente, devolve: "Seus filhos de rapariga! Filhos de rapariga! Estão pensando que são quem!"

A coisa esquenta. Os torcedores, muito sensibilizados com a situação da mulher, gritam: "Quer assistir o jogo vai pra casa! Estamos aqui pra torcer!" E seguem para cima da valente torcedora da terceira idade, prontos a mostrar a ela por que a torcida independente é tão bem vista pela polícia de São Paulo.

Quando a tragédia se anuncia, eis que surge a tropa de choque da PM. Altivos, vão subindo a arquibancada em direção à confusão, com seus escudos e cassetetes. Entram na muvuca e saem de lá com... com a tiazinha revoltada! A independente, que estava acuada por aquela baderneira violentíssima, vibra.

Um dos sujeitos que estava pronto a mostrar o caminho do IML à brutal senhora
grita: "Ela me mordeu!"

Um gigante sem camisa do meu lado fica tão feliz que me abraça. Detalhe: ele estava sem camisa. Detalhe: minha cabeça ficava na altura do suvaco dele. Detalhe: ele gostou tanto de mim que me abraçou o jogo inteiro.

Ah, o São Paulo ganhou de 2 a 1. Fico me perguntando até hoje onde estava aquela truculenta tiazinha na hora que Hugo marcou o gol da vitória aos 48 do segundo tempo. Uma coisa é certa: ela estava longe demais para me proteger do último abraço da partida.

sábado, 15 de agosto de 2009

Leveza

Às vezes, acontece. Não há circunstância externa aparente. Tudo, de repente, curiosamente, fica leve. Você acorda flutuando sobre a cama sem se dar conta de peculiaridade alguma no dia que nasce como todos os outros insistentes dias.
Os sentidos, aguçados, alertam para o que não há sentido. A pasta de dente parece surpreendentemente saborosa, como o café morno, o pão borrachento, o cigarro amargo, a cerveja demais, o filme desnecessário. Até a dor de cabeça crônica torna-se uma cócega levemente dolorida, um coceira gostosa no juízo.
Há quem passe a vida buscando a leveza. Não, não... não se engane, ela é arredia, feito o sono, cheia de curvas. Só vem à custa da mais distraída distração. Ou à base da trapaça farmacêutica tarja rubronegra.
Praticantes de um profundo desapego a agarram nas mãos com tanta força, deixando nóduas tão resolutas, que transformam gás helio em chumbo. Despencam do céu convencidos de que vão aterrissar nas nuvens. Enganadíssimos estão.
Em vidas marcadas a ferro com o signo da responsabilidade e das obrigações, encarceradas na obesidade do cotidiano de um adulto nem mais nem menos, é capaz de transmutar os círculos infernais ou as sonolentas paragens paradisíacas em charmosos recantos do purgatório. O prazer de tirar os sapatos apertados do espírito, sabendo que vai ter de calçá-los no dia seguinte.

sábado, 8 de agosto de 2009

O silêncio no meu vocabulário

Eu não sei o que dizer. Tem quem saiba o tempo todo, mas eu não sei. Tem quem viva sincronizado em um diálogo escrito, reescrito, revisado e ensaiado. Não eu. As palavras saem, mas antes ou depois do momento certo. Saem desmedidas, distorcidas, desastradas. Não me arrependo do que digo, mas de ter dito. Não invejo os que vivem com a palavra mais certa na ponta da língua, mas os que a guardam na boca, mastigam, engolem, transformando-a em silêncio. Gostaria de ter o silêncio no meu vocabulário. Não qualquer silêncio. Há falsos silêncios circulando pelo ar: é possível ouvi-los. Alguns são como tagarelice, não querem dizer nada, apenas fazer barulho. Outros são moralistas, a quietude cheia de significado, quase um grito de guerra. Até a mudez não é o silêncio completo, cheia de murmúrios que é, a mão de Deus tapando com força a boca do homem. Quero o silêncio natural, em estado puro, que nada quer dizer, aquele que passa despercebido a todos, inclusive a mim.

terça-feira, 4 de agosto de 2009

Falência múltipla dos órgãos

Começa coceira no cérebro. Tecido nervoso que não tem dedos para dar alívio a si mesmo. Inquietude escorrega pelas veias, vez por outra, arranhando suas paredes com garras afiadíssimas, a esmo. Vira diarréia no intestino. À esquerda, cirrose no fígado. Num desatino, erra o caminho e faz o retorno, úlcera no estômago. Desacelera para estacionar enfisema no pulmão. Arrisca passos de dança fora do ritmo, contaminando o bate-bate do coração. Infarto certo irradia pelo corpo e atordoa a visão. Olhar vidrado espatifa para todos os lados, baço. Finalmente, a calma. O corpo caído no terraço, escorado na sacada da alma.

domingo, 2 de agosto de 2009

O mar, caprichoso e distante

O mar, magnífico e injustificável, cruel e mágico, tem vontade própria e brinca comigo, com a gente. Acelera o barco rumo à terra, mais rápido do que nunca. Quando a tripulação se prepara para jogar a âncora, arruma as malas, come os chocolates que havia guardado para os períodos de fome, quando nossos pés já sentem o cheiro da terra grudada na borracha dos sapatos, as ondas levantam-se maliciosas e sorridentes e atiram o barco para tão longe, tão longe de qualquer lugar, que ficamos tontos; perdemos o foco e já não sabemos mais onde estamos. O céu se escurece sobre nossas cabeças.
A memória passa a ser como um membro amputado, conseguimos senti-lo, quase tocá-lo, dolorido, em chamas, latejante. Lá vai a lembrança inquieta tocando os dedos no nosso ombro, pedindo atenção feito fazem as crianças.
Mas crianças não vão para o mar nem têm lembranças lindamente inconvenientes como as nossas. Somos adultos, marinheiros, sempre soubemos que uma vez no mar teríamos de ter paciência. Teremos de domar nossas memórias, nossa fome, nosso cansaço, teremos de adestrar as lágrimas, acostumar nosso paladar aos gostos diferentes, carregar punhados de paciência em todos os bolsos e tragar longamente o fumo salgado da maresia. O mar, um dia, cede, melhr, concede, por pena ou divertimento, sabe-se lá, talvez demore mais ou talvez não.