sábado, 26 de dezembro de 2009

A partida

Partir de onde se nasceu é se tornar estrangeiro em todos os lugares. É como se o chão em que se pisa depois de descer de cada avião fosse gelatina.

Partir é, ao mesmo tempo, estar em casa em vários lugares, dependendo da ocasião, do humor, do tempo e sabe-se lá do que mais. Afinal, não há os íntimos de todos e os esquivos até de si mesmos? E nós não somos simultaneamente ambas as coisas?

Partir é mergulhar nos paradoxos. Voltar é chegar. Chegar é voltar. É ser turista na cidade natal e nativo na terra longínqua. Há quem se estilhace; eu me multiplico. Há quem se mutile; eu renasço, alienígena no meio de um faroeste.

Partir é respirar saudade, sentir os cheiros das lembranças misturarem-se com o odor do desconhecido cada vez que se enche o pulmão.

Partir é partir-se ao meio porque se quer ser inteiro.

domingo, 6 de dezembro de 2009

Aos 30

É, chegaram os 30 anos. E você não viajou o mundo, não teve filhos, não escreveu seu livro nem aprendeu a tocar instrumento algum. Passou muito tempo na frente da TV, mais do que gostaria. Para piorar, estudou menos do que havia planejado, trabalhou muito e ganhou pouco dinheiro.

Os 30 estão aí. E você percebeu que é menos inteligente do que achava que era. Que é menos talentoso do que lhe diziam por aí. De quebra, descobriu que tinha menos amigos do que pensava, embora saiba hoje que os que restaram seguram qualquer bronca. Foi obrigado a ser humilde, quando isso lhe parecia odioso. Foi obrigado a ser paciente, você, que achava que paciência era conformismo.

Entrando em três décadas, você ficou mais tolerante. Logo você, que não aguentava gente burra, agora dá risada das piadas preconceituosas da classe média que tanto negava. Claro, depois você renega tudo isso, afinal, não ficou tão tolerante assim.

Trintão, você percebeu que envelhecer pode ser tropeçar nas próprias pernas. Pode sentir que a migalha de atenção das festinhas de aniversário não passa da cerimônia em que alguém amarra seu cadarço esquerdo no direito, enquanto todos aplaudem o seu tombo. (No começo, é divertido, admita. Mas sabe que o tombo nunca encontra o mesmo corpo, assim como o corpo nunca encontra o mesmo chão. No princípio é um corpo cheio de elasticidade caindo num belo gramado. Mais tarde, torna-se uma estátua de gesso desabando no mais puro e vigoroso concreto.)

Você, 30, sente o tempo na pele. Ele te paralisa, às vezes. Mas, no fundo, sabe que não perdeu tanto tempo assim. Se aprendeu alguma coisa de útil foi a dar risada do tempo, apesar de, às vezes, o senso de humor não ajudar. Descobriu na prática que a melhor coisa do mundo é jogar o tempo fora ao lado de alguém que você gosta.

Você viu muita coisa nesses 30 anos. Gente nascendo, gente morrendo, gente casando, gente separando, gente crescendo, enquanto você envelhecia. Ruas novas foram abertas, mas aquelas antigas ainda continuam te fazendo sorrir. Aquela mudinha de árvore na sua rua agora tem quatro metros de altura e, por mais pessimista que você possa ser, não pode negar como a sombra que ela faz é refrescante.

A morte, aos 30, parece tão longe. Muito mais distante do que aos 15 ou 20, quando você pulava do alto das cachoeiras e quase se arrebentava nas pedras, dirigia completamente bêbado e se metia em tantas brigas. Muitos não tiveram tanta sorte e ficaram pra trás.

Sim, 30, você ainda é mais novo que a maioria. Pode aprender a tocar o instrumento que queria e viajar pelo mundo. Escrever seu livro e ter seu filho. Agora, você provavelmente fará tudo isso melhor, mais cuidadosamente, com mais firmeza. Isso se não quiser ter essa mesma crise aos 40, 50, 60 ou no leito de morte.

Aos 10.950 dias de vida, exatos 30 anos, se for esperto, já terá começado a fazer essas coisas que tanto queria e outras que nunca pensou que faria. Será um cara mais seguro, sereno, realizado. E dará risada dessa carta ingênua que escreveu para si mesmo um ano antes, aos 29, numa tarde de domingo em que não tinha nada para fazer.

quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

Amor incandescente

Maria Jovelina puxou a mangueira do botijão de gás. Ficou esperando. O cheiro se alastrava pelo pequeno barraco no Jardim Irene, Santo André. Perdeu a noção do tempo. Foi para o quarto improvisado no barraco, formado por tênues divisórias, e ficou observando o marido dormir. Chegara à conclusão de que era melhor acabar com tudo agora. Antes que lhe tomassem tudo depois.
O odor forte havia dominado o ambiente. Pegou a caixa de fósforos. tirou um palito e riscou. O fogo tomou conta. O calor insuportável em todas as partes do corpo não impediu que ela se deitasse na cama e abraçasse com força o corpo de Francisco.
A sensação dos pés pegando fogo acordou o homem forte, que, naquele momento, se sentiu imobilizado. Ouvia alto – e nunca conseguiria esquecer daquilo – o choro. As três vozes se fundiam em uma só dor.
Francisco gritou o mais alto que pôde. Tentou se livrar de Maria, que o agarrava com uma força que não tinha. "Vamos morrer todos juntos", gritava a dona de casa em chamas. Os vizinhos ouviram. Mas demoraram a sair. A explosão do botijão de gás, o barulho de coisas caindo, os gritos. Parecia um tiroteio.
Mas, enfim, o primeiro que botou a cara para fora viu que era incêndio e chamou outros três para tentar o resgate. Todos eles demoraram a conseguir que Maria soltasse o marido. Tempo suficiente para os filhos do casal, Jeferson, 6 meses, Jéssica, 2 anos, e Rodrigo, 6, morressem carbonizados.
O casal foi salvo. Maria correu para não ser linchada e acabou 'escoltada' pela polícia até a cadeia. Detida, a mulher que até então fora boa mãe se justificou. Matou por amor ao marido. "Ele tinha uma amante".
Coluna Arquivo do Crime, publicada em 2006 no Diário do Grande ABC