quarta-feira, 27 de outubro de 2010

O nobre e a paisagem


Passando por Richmond Hill, uma paisagem linda, que mostra o Rio Tâmisa e toda a cidade de Londres, fiquei intrigado com uma plaquinha explicativa bem discreta. O texto dizia que aquela paisagem era mundialmente famosa e que só havia sido preservada graças à iniciativa de um nobre do século 19. Diante da especulação imobiliária, que transformava todos os campos em novas construções, impulsionadas pela revolução industrial, o tal nobre simplesmente comprou a área toda só para preservar aquela visão da qual ele tanto gostava. Hoje, a área faz parte de um dos maiores e mais bonitos parques de Londres (onde não faltam enormes e bonitos parques). Fico pensando como seria bom se os ricos brasileiros pensassem desse jeito, mostrando que certas coisas não têm preço, em vez de seguir apenas as ordens ditadas pelo bolso. Mas, claro, obviamente isso tudo soaria pueril aos ouvidos deles.

domingo, 24 de outubro de 2010

Considerações desconsideráveis

Era pra eu ter tudo para escrever, mas acho que é mesmo na falta de acontecimentos, no intervalo, no tédio, que a literatura cresce. Aqui, andando pelo mundo todo, conhecendo gente e costumes que jamais imaginei, sobra pouco tempo para escrever qualquer coisa. Talvez, se o inverno conseguir me acuar dentro de casa, eu passe a escrever mais por aqui e em qualquer outro lugar, mesmo que seja para deixar perdido nas folhas de um caderno qualquer. Por enquanto, minha alma permanece sendo apenas uma esponja do mundo.

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Para os manos daqui, para os manos de lá

Você pode sair da Zona Leste, mas ela certamente não sai de você. Em Londres, não sei se por acaso, acabei no East End, que tem muito mais similaridades com a ZL em que cresci em São Paulo que a direção na Rosa dos Ventos. A grande diferença aqui, além do feliz fato de não haver tantos corintianos, é que cada tijolo da ZL tem pelo menos mil anos de história.

East é o lugar dos imigrantes desde a idade média, uma Cohab medieval. Primeiro, vieram os tais dos huguenotes, fugindo da perseguição religiosa, depois isso aqui se encheu de judeus, indianos, uma galera de Bangladesh (quem nasce lá é...), jamaicanos e, claro, uns brasileiros feito eu. Pelo censo, só 37% da população é formada pela categoria denominada "branco britânico". Por isso que eu digo, meu bairro é dos manos, dos muçulmanos (e das muçulminas também, aquelas que escondem toda a sua graça debaixo das burkas).

Depois de funcionar como uma espécie de fazenda de Londres, fornecendo vegetais para metrópole, o lado leste da cidade acabou virando um depósito de famintos falantes de todas as línguas. No século 19, aproveitando-se da quantidade de indigentes pelas ruas, Jack, O Estripador (aqui, The Ripper), começou a atacar na região de Whitechapel, aqui do lado de casa. Matou cinco e nunca foi pego, tornando-se o serial killer mais famoso de todos os tempos.

O metrô mais perto de casa, Bethnal Green, foi cenário da maior catástrofe coletiva da Inglaterra, quando 173 pessoas morreram esmagadas lá dentro. A confusão começou porque os metrôs eram usados como bunkers, esconderijos úteis durante o tempo em que os bombardeios de Hitler eram mais frequentes do que a chuva londrina. Metade do bairro foi destruída durante esses ataques, mas sobraram ainda muitos predinhos centenários feitos de tijolinhos vermelhos. É interessante ver como a história vai se ajeitando onde dá. Uma das igrejas do bairro, Bow Church, foi parcialmente destruída. Reconstruída, é possível notar a metade antiga e a recente, tanto pelas diferenças arquitetônicas como pelas marcas do tempo mais evidentes em um dos lados.

Meu minha casa, postcode E3 2QY, fica no bairro de Bow. Aqui, será o cenário das próximas Olimpíadas. Da janela do ônibus número 8 consigo ver o estádio enorme em construção. Ao lado de casa, tem o centenário mercado da Roman Road Market, onde posso comprar uma calça Levis usada por 8 libras ou meio litro da sagrada Guinness de cada dia por uma libra. Andando por lá, dá pra notar uma verdadeira integração de raças. Acessíveis, as ruas daqui se enchem de velhinhos em cadeiras de rodas elétricas e mães com bebês. Desconfio que alguns usem essas cadeiras de rodas mais por conveniência que por necessidade, caso contrário teria de dizer que esse país está mal das pernas, dada o congestionamento de veículos do tipo pela rua.

Os negócios na Roman Road são todos de família. Tem uma peixaria que representa bem isso, onde três gerações trabalham juntas. Os três, provavelmente de origem turca, são parecidíssimos e ostentam o mesmo bigodom. Apesar de haver muitas peixarias, muitos supermercados e lojas indianas que vendem tudo que é tranqueira, o principal negócio por aqui são as casas de aposta. São pelo menos umas oito ao longo de um trecho de rua que não ultrapassa cem metros. Os caras apostam em tudo: cricket, golf, rugby, futebol e até em tênis de mesa. Em inglês, jogar apostando é gambling. Todo jogador mira o jackpot, que é o prêmio principal. Eu vivo alheio a esse mundo cheio de cifras, já que jamais perderia uma Guinnezinha que fosse jogando.

A minha casa, descobri depois, também tem história. Hoje, uma respeitável residência estudantil, onde vivem empilhados nove estudantes, já foi um ponto de tráfico de drogas. Os moradores chegaram a incendiar a casa, parcialmente feita em madeira, ao final de uma festa. Assim como o bairro ostensivamente atacado por Hitler, a casa sobreviveu, mostrando que é ZL de verdade e que as outras zonas só servem para completar o espaço que resta na bússola.

PS. E não, claro que não sou bairrista, esse texto nada mais é do que uma tentativa revisionista de colocar os ponteiros nos seus devidos lugares, depois de tantos e tantos anos de privilégios ao Norte entre os pontos cardeais.

domingo, 3 de outubro de 2010

A vida estranha no East End

Cena um: eu na minha cama, mexendo no meu computador, no aconchego do meu (quase) lar em Bethnal Green. Cena dois: eu e um sujeito parecido com o Borat tentando entrar com uma televisão enorme num ônibus, o que razoavelmente é proibido pelo motorista. Cena três: estou em uma casa de uns chapados em Whitechapel, onde um italiano doidão toca um instrumento africano que eu nunca vi antes. Cena quatro: bebendo cerveja com um inglês que, depois de sair para buscar leite, voltou apenas com uma caixa de 24 cervejas e apanhou da mulher. Cena cinco: estou todo encharcado, em Mile End, procurando uma festa onde seria servida uma sangria espanhola, tendo Borat como guia. Cena seis: estou na minha cama, mexendo no meu computador, pensando que às vezes a vida em Londres tem algo de surreal.