sábado, 30 de abril de 2011

Vivendo sem operador de pare e siga

Eu vivo recomeçando. Geralmente, o início é sempre lá embaixo e, aos poucos, você vai subindo e entrando na zona de conforto novamente. Dizem que a vida está onde acaba a zona de conforto. Mas e quando a zona de conforto vira uma busca incessante por eliminá-la da sua vida? Complicado.

Eu só vivo recomeçando coisas porque vivo terminando outras. Mudo de vida, de casa, de trabalho, me afasto das pessoas que amo para me juntar a outras, parto-me ao meio, faço-me em retalhos na luta para me manter inteiro. É preciso aprender a continuar também. A juntar os cacos e lembrar que, mesmo sendo muitos, também sou um.

Quero aprender a hora de parar e a hora de seguir. Mas a vida não vem com sinais de trânsito. É um tráfego caótico, sem guardas, regras, mão ou contramão, cheio de sentimentos buzinando desesperados, de surpresas saindo desenfreadas das esquinas, lembranças amassando a sua lataria, o combustível quase acabando e nenhum posto de gasolina à vista. Tudo ficaria muito mais fácil se houvesse um único sujeito operando uma placa de pare e siga no nosso caminho.

Quando você toma a decisão de viver em movimento, não há mais um lugar seguro. O lugar para onde se volta buscando o que estava perdido vive mudando de endereço. Você chega lá e quem atende a porta é um sujeito de bigode, contrariado porque interrompeu o futebol para falar com um estranho estúpido. Não, não sei onde quem você está procurando foi morar e, agora, me deixe em paz.

Às vezes as coisas não fazem mais sentido. Isso geralmente acontece quando a gente as coloca à prova o tempo todo. Quando a gente as vira do avesso e as disseca para saber se elas são de verdade. O problema é que depois o que sobra na mão da gente são só restos do que tínhamos, uma perna, um dedo, uma orelha, um tufo de cabelos. A gente coloca tudo isso na mão, olha, finge que é a mesma coisa, mas não dá pra se enganar para sempre. Nessas horas, a gente percebe que a verdade tem prazo de validade. Quando passamos a procurar demais por ela, é sintoma de que já a perdemos, a essa altura ela já derreteu e seguiu para o ralo pra sempre.

O que fica disso tudo é que sempre podemos encontrar uma nova verdade. Só temos de torcer para que isso seja tão casual, tão gradativo, delicado, verossímil que não nos demos conta disso tão cedo. Porque o que vale na vida é aquela hora que a gente acha que não tem nada, mas tem tudo. Não há medo de perder nada, não há auto-crítica, há apenas algo que está no ar e que a gente sente na pele, uma coisa que faz os olhos brilharem e as coisas feias se esconderem da gente, e é tão bom estar respirando quando isso acontece.

domingo, 24 de abril de 2011

Anacrônica


Até aturaria o céu indecentemente sem nuvens
Essa cópia descarada da noite estrelada
O que me dói mesmo é essa coisa enorme, amarela e quase tocando o chão
Uma lua descaradamente nossa, que estacionou ali justo agora
Quando nós já não existimos além das cartas, dos álbuns de fotografias

segunda-feira, 18 de abril de 2011

Das coisas que deixarei de fazer

Não vou mais flagrar as simpáticas lagartixas rastejando pela ruas cobertas de musgo ou acordarei com a certeza de ter um céu azul sobre minha cabeça. Não cruzarei mais o Rio Capibaribe durante a noite, embasbacado com as luzes das pontes refletidas em suas águas, nem garimparei os casarões antigos poupados pela especulação imobiliária. Não amaldiçoarei mais a feiúra da avenida Norte ou reclamarei do cheiro de mijo no Bairro do Recife. Não vou mais de mesa em mesa, revezando entre central, frontal e lateral, falando com um e com outro sobre desimportâncias, e muito menos tomarei cerveja meio quente no copo de plástico do bar do Seu Vital, no Poço da Panela, o bairro de aura mais fantástica do Norte e Nordeste, incluindo a Bahia. Não ouvirei mais as boas histórias contadas pela incomparável boemia pernambucana e não, nunca mais, serei acusado de carioca por alguém que não tenha o mínimo tino para diferenciar sotaques. Não farei mais piadas sobre maiores avenidas, pessoas ou qualquer coisa em linha reta da América Latina, e deixarei de me impressionar com a parcialidade rubronegra da crônica esportiva recifence. Os poemas de Carlos Pena Filho não se repetirão na minha mente enquanto passeio pela cidade dele e não fugirei mais para um passeio de bicicleta nos sobrenaturais domínios de Francisco Brennand. Está fora de questão, a partir de hoje, comer uma tapioca no Alto da Sé, em Olinda, um almoço no bar do Brilhosinho, naquele beco de Boa Viagem, ou um caldinho de feijão no Fernandos, o melhor da cidade, nos Aflitos. Depois de quase dois anos, entre idas e vindas, o Recife deixa de ser minha casa. Sentirei falta de tudo, das pessoas e das coisas, demais. No tabuleiro da minha geografia sentimental, sempre deixarei um peãozinho amarelo de guarda sobre o Recife.

sexta-feira, 15 de abril de 2011

Desmantelo

Para Diana

Meu desmantelo não é azul
Qualquer cor tivesse seria insensato
Na despedida do amarelo-Recife, desbotado
Pela total falta de luz

Meu desmantelo não é azul
Mesmo que me dilua no sorriso dos retratos
Que perca o mar de vista, afogado
Que troque meu norte pelo sul

Não, meu desmantelo não é azul
É quando tudo pela sombra foi tragado
Da ausência do teu olhar assentado
A velar meu sonho nu

quinta-feira, 7 de abril de 2011

Poema sem nome

Começa como quase tudo começa
Da pequenez dos gestos automáticos interrompidos
O choque dos dedos desprotegidos contra uma pedra
Uma intromissão que se repete até virar vício
A liberdade de mergulhar na falta de futuro
Que faz-se desespero ao vislumbrar o fim da linha
A chama que cresce mesmo sem oxigêncio
Que desafia a física, brilha em pleno dia
Tamanha é a habilidade em ludibriar os limites
Que passa a alimentar-se do impossível para existir
Como respira, esculpe o tempo e o espaço
Encurta ou estica, com naturalidade infantil
Até que a translucidez engrosse no pó do real
O sofá é o padrinho, a cobrança é a madrinha
O sonho é um enfeite na estante