Todos os dias, acordo de manhã para escrever, como se tivesse de bater a catraca antes de sentar na mesa no meu quintal. Tomo café com pão, sintonizo na única rádio FM de música clássica (sem palavras para atropelar as minhas) e começo um processo quase psicográfico de escrita, sem pensar em nada, porém também sem espíritos apoiando-se nos meus ombros. Às vezes, sou surpreendido por uma boa prosa saindo do automático apertar de parafusos mentais. Em outras ocasiões, por mais elaborado que seja o pensamento, a frase não sai, morre lá mesmo, no cérebro, mais um cadáver pra empatar o caminho.
Já escrevi quase 60 páginas do que seria ou será o meu primeiro romance. O problema é que, assim como acontece na vida, a ficção não depende só de nós. Ela tem vida, pode ser abortada antes de nascer ou nascer defeituosa. A luta contra todas as coisas que podem dar errado é dura e, por vezes, nos faz querer desistir. Há três dias, ando muito desesperançoso com o meu trabalho, achando meus personagens rasos, minha trama tediosa, minha temática superficial. Espero encontrar saídas para esses problemas.
A ideia de toda boa obra de arte é criar estranhamento e busca por uma atmosfera diferente, que faça o leitor sentir-se desconfortável e ao mesmo tempo hipnotizado, como quando alguém se descobre apaixonado por alguém pelo qual jamais imaginou que nutriria esse tipo de sentimento. É isso que eu busco, mas às vezes o máximo que consigo é a sensação de se estar beijando um desconhecido em uma micareta.
Para desanuviar, aprender a olhar de longe a minha própria ficção, tento ler, ver filmes, ouvir música e conversar para desfazer os nós que eu mesmo causei na minha trama. Os escritores experientes dizem que imaginar o seu romance em pequenas cenas, cada uma com sua trama particular, é uma ótima saída. Apesar de isso funcionar na maioria do tempo, sempre há a sombra sobre minha cabeça da tarefa homérica que é escrever um romance. Lá em cima estão os dons Quixote e Casmurro para me lembrar que não basta apenas vontade para escrever.
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