domingo, 20 de novembro de 2011

Você que é feito de azul

Sempre fui pelo amarelo, mas o azul tem me conquistado ultimamente. O golpe final foi o disco Kind of Blue, clássico de Miles Davis que vim conhecer só agora, nos píncaros da terceira idade. Não que eu desprezasse os encantos azulísticos até então. Afinal, já havia o azul-liberdade-é-azul, azul-soneto-do-desmantelo azul, azul-fase-azul-de-Picasso, entre outras azulices, mas agora é diferente, agora, depois dessa obra prima, não há mais o que questionar sobre os motivos divinos-científicos-do-acaso para as cores do céu, do mar, da Terra e dos Smurfs.

terça-feira, 15 de novembro de 2011

Reconhecimento

Você deveria agradecer, dizem eles, enquanto apagam bitucas de cigarro nos meus olhos.

Estou amarrado a uma cadeira de barbeiro, dessas antigas, forrada de couro, apoiando meus pés em um suporte de ferro. Está muito calor, mas sinto lufadas de ar frio que me dão arrepios.

Tantos queriam estar sentados nessa cadeira, diz um deles, com um sorriso boçal desenhado nos lábios, que já não posso enxergar com meus olhos que já não passam de geleia.

Você precisa ver que ordens são ordens, completa o outro, esmagando a ponta do meu indicador com um alicate. Sabemos que isso tudo não é necessário, mas estamos fazendo só para garantir, continua ele, gentilmente.

Sinto uma pontada na perna e percebo que alguém começa a tirar a minha pele com uma faca, como se descascasse uma batata.

Você precisa ser menos intransigente, as coisas são assim mesmo, temos pesquisas que comprovam isso, ouço, pouco antes de ter minha orelha esquerda decepada com uma faca de lâmina quase cega.

O sangue morno molha meu corpo inteiro. A dor que sinto são muitas que se emendam numa poderosa combinação de ardência, pontadas agudas, desesperança, tremores, cócegas e suor frio.

Você tem que entender que nós temos responsabilidades, falam todos ao mesmo tempo. Se alguma coisa der errada, somos nós quem temos de responder a ele.

Apesar de ainda preservar minha língua comigo, há muito desisti de responder o que penso. As palavras já não significam mais nada aqui. Além do mais, é difícil fazer-se entender com o barulho dessa serra elétrica que usam para decepar meu braço direito, na altura do ombro. As faíscas que resultam do atrito entre minha clavícula e a serra giratória pinicam no meu pescoço.

Com o mercado como está, dificilmente alguém teria os privilégios que se tem aqui, diz uma voz longínqua, que ecoa lentamente.

Sei que o cara que está sentado na cadeira ao lado da minha concorda. Da última vez que vi, tinham-lhe feito no rosto um sorriso permanente, esticando-lhe a boca de orelha a orelha com um estilete, que dava a ele uma aparência ainda mais estúpida e subserviente.

Um volume de peso mediano é colocado sobre o meu colo.

Para mostrar o quanto reconhecemos o seu esforço, estamos lhe presenteando com essa cesta de produtos de...

A voz masculina e irritantemente aguda desaparece. O sumiço total das vozes coincide com a sensação de que uma broca atravessa meu crânio, de ouvido a ouvido. O silêncio me traz uma sensação de aconchego. Sinto-me massageado por todo o corpo.

Diria que estou no céu, não fosse o cheiro de carniça que impregna o ambiente.

terça-feira, 8 de novembro de 2011

Plantão de domingo

João tinha nas faces aquele rubor de quem vem correndo. Não corria, não. Andava sossegadamente, só com a pressa natural com que nascera, a impaciência de quem sempre está alguns segundos atrasado.

Apesar da mochila nas costas, carregava um livro com contos de Tchekov debaixo do braço, como fazem os crentes mesmo com as bíblias mais pesadas.

Descia a rua Augusta que, naquela tarde de domingo, fazia jus ao nome. Apesar do lixo, dos carros e do barulho, havia o sol brilhando, o raríssimo e fundamental céu azul; casais de velhos passeando de mãos dadas; adolescentes ruidosos competindo quem tinha o cabelo mais azul, vermelho, rosa, o maior piercing; amigos dando risada e bebendo cerveja; as pessoas sendo levadas pelos cachorros para passear.

Olhava as vitrines degustando as coisas antigas: chapéus, cachimbos, livros amarelados, roupas antiquadas, que as traças haviam mordiscado.

Dobrou à esquerda na praça Rooosevelt. Gente de teatro bebia nos bares, namorados se agarravam encostados nas árvores. No bar do Estadão, pediu um lanche de pernil, que de tempos em tempos regava com o molho de pimenta, antes das mordidas que enchiam-lhe a boca, para em seguida refrescar-se com goles da cerveja da garrafa verde, gelada e amarga.

Saiu de lá quase flutuando, o prazer da boa comida irradiando pelas veias. Atravessou a avenida São Luiz fora da faixa, pulou o mendigo que dormia no canteiro, cruzou a praça da República. Cortou caminho pela galeria do Rock, lotada de gente tatuada, carecas rascistas convivendo com os manos do rap, numa espécie de guerra fria, aliviada pelo frescor meninas bonitas e suadas que passavam.

Olhou o relógio. Sim, estava quase na hora. Afastou aquele pensamento da cabeça. Sabia que em poucos minutos chegaria ao prédio cinza. O azul do céu estava menos azul. Algumas nuvens montavam grupinhos no céu, cochichando.

Seguiu olhando para os pés, os tênis Adidas meio sujos, chutando latas, desviando de ratos mortos. Esbarrou com alguns zumbis que ostentavam cachimbos nas mãos. Ouviu dialetos, provavelmente africanos, completamente incompreensíveis. Evitou olhar qualquer um nos olhos com medo de vislumbrar o prédio cinza.

Quando já estava no limite, cérbero latindo nos seus calcanhares, abriu a mochila, jogou o livro lá dentro, pegou o crachá. Na foto, sorria um sorriso sem graça, parecido com o de Judas ao vender Jesus.

Ao entrar no edifício, os olhos demoraram a acostumar-se com a falta de luz. Encostou o crachá na catraca, que emitiu um som agudo e liberou o acesso. Esperou o elevador ao lado de um cara de rastafari. Entrou no cubículo metálico e apertou o sete.

A porta se abriu. Andou alguns metros até a máquina de café. Apertou dois botões: sem açúcar, longo. Quando o café ficou pronto, o letreiro agradeceu: obrigado. Com o copo de plástico na mão, pela primeira vez, encarou a redação vazia, fileiras e fileiras de mesas desocupadas.

Sentou-se na mesa desarrumada, coberta de papéis, canetas, copos plásticos de café vazios, embalagens de chocolate. Ligou o computador. A tela se acendia quando ouviu os passos atrás de si. Ficou imóvel, fingindo prestar atenção no brilho que aumentava à sua frente. Um barulho metálico ressoou nos ouvidos, antes do estrondo, a explosão nos seus tímpanos, os miolos voando sobre o monitor.

***

Quando abriu os olhos, haviam se passado 12 horas, notou pelo relógio no canto do monitor. Levantou a cabeça do teclado, ainda tonto, o sangue escorrendo-lhe da boca. Abriu o zíper da mochila, achou um saco plástico, onde guardou os miolos que haviam se espalhado pela tela e pela mesa. Com um guardanapo, limpou o que restava.

Desligou o computador, desceu o elevador, encostou o crachá na catraca e ouviu novamente o barulho agudo liberar a saída, sentindo alguma dor de cabeça. Ao pisar na rua, jogou o crachá na mochila, o saco plástico manchado de vermelho, e olhou para o céu. A lua estava enorme, amarela, quase totalmente redonda, crescente, cheia, não soube ao certo. Nenhuma nuvem.

Respirou fundo, o pulmão acostumando-se com o oxigênio novamente, e seguiu sem olhar para trás rumo à segunda-feira.