terça-feira, 15 de novembro de 2011

Reconhecimento

Você deveria agradecer, dizem eles, enquanto apagam bitucas de cigarro nos meus olhos.

Estou amarrado a uma cadeira de barbeiro, dessas antigas, forrada de couro, apoiando meus pés em um suporte de ferro. Está muito calor, mas sinto lufadas de ar frio que me dão arrepios.

Tantos queriam estar sentados nessa cadeira, diz um deles, com um sorriso boçal desenhado nos lábios, que já não posso enxergar com meus olhos que já não passam de geleia.

Você precisa ver que ordens são ordens, completa o outro, esmagando a ponta do meu indicador com um alicate. Sabemos que isso tudo não é necessário, mas estamos fazendo só para garantir, continua ele, gentilmente.

Sinto uma pontada na perna e percebo que alguém começa a tirar a minha pele com uma faca, como se descascasse uma batata.

Você precisa ser menos intransigente, as coisas são assim mesmo, temos pesquisas que comprovam isso, ouço, pouco antes de ter minha orelha esquerda decepada com uma faca de lâmina quase cega.

O sangue morno molha meu corpo inteiro. A dor que sinto são muitas que se emendam numa poderosa combinação de ardência, pontadas agudas, desesperança, tremores, cócegas e suor frio.

Você tem que entender que nós temos responsabilidades, falam todos ao mesmo tempo. Se alguma coisa der errada, somos nós quem temos de responder a ele.

Apesar de ainda preservar minha língua comigo, há muito desisti de responder o que penso. As palavras já não significam mais nada aqui. Além do mais, é difícil fazer-se entender com o barulho dessa serra elétrica que usam para decepar meu braço direito, na altura do ombro. As faíscas que resultam do atrito entre minha clavícula e a serra giratória pinicam no meu pescoço.

Com o mercado como está, dificilmente alguém teria os privilégios que se tem aqui, diz uma voz longínqua, que ecoa lentamente.

Sei que o cara que está sentado na cadeira ao lado da minha concorda. Da última vez que vi, tinham-lhe feito no rosto um sorriso permanente, esticando-lhe a boca de orelha a orelha com um estilete, que dava a ele uma aparência ainda mais estúpida e subserviente.

Um volume de peso mediano é colocado sobre o meu colo.

Para mostrar o quanto reconhecemos o seu esforço, estamos lhe presenteando com essa cesta de produtos de...

A voz masculina e irritantemente aguda desaparece. O sumiço total das vozes coincide com a sensação de que uma broca atravessa meu crânio, de ouvido a ouvido. O silêncio me traz uma sensação de aconchego. Sinto-me massageado por todo o corpo.

Diria que estou no céu, não fosse o cheiro de carniça que impregna o ambiente.

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