domingo, 9 de outubro de 2011

Clandestinos

Matéria minha para o jornal Agora SP



Clandestino cruza Atlântico em viagem mortal de 6 mil km

Em fuga, africanos acabam vindo para o Brasil escondidos em porão e buracos das embarcações

Semanas sem comida, higiene zero, parcialmente debaixo d’água no porão de um navio. Clandestinos vindos da África enfrentam jornadas de 6 mil km que duram até um mês atrás de oportunidades de emprego, refúgio e até um amor em outro continente. Alguns morrem pelo caminho.
Neste ano, a Polícia Federal no porto de Santos registrou 16 clandestinos em cargueiros vindos da África. “Num caso em 2010, cinco pessoas vieram no compartimento do leme. Só dois chegaram aqui”, diz o delegado da PF Vilton Gomes de Souza.
Os clandestinos têm perfil definido. São homens, jovens, para aguentar a viagem, sem vínculos familiares, de países como Nigéria, Camarões, Togo e Gana.
Eles se escondem em espaços diminutos, nos compartimentos do leme, da âncora e do guindaste dos cargueiros _que voltam vazios da África após saírem carregados de açúcar do Brasil.
Muitos decepcionam-se ao descobrir que, em vez de desembarcar na Europa, estão no Brasil. Por esperar uma viagem curta, a comida que levam acaba. “Ficam com fome e se apresentam à tripulação”, diz Souza.
Em Santos, na maioria das vezes, os clandestinos têm desembarque autorizado. Quem arca com o custo até que sejam mandados de volta são os navios. A multa é de R$ 827,75. Porém, os gastos podem chegar a R$ 40 mil com hospedagem, tratamento médico e passagens aéreas para repatriação. É raro que consigam o visto de refugiado para ficar.
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São inúmeros os motivos para encarar uma viagem que pode ser mortal. Há relatos de que, na Europa, alguns países dão dinheiro para que imigrantes voltem, o que gera clandestinos profissionais. Atualmente, há um estrangeiro preso em Santos por se recusar seguidamente a embarcar no avião de volta ao seu país. Queria o equivalente a R$ 17 mil para ir embora. “No Brasil, seguimos a legislação. O estrangeiro que se recusar a entrar no avião vai preso”, diz Maurício Alves, diretor da Proinde, empresa que cuida da hospedagem e repatriação dos imigrantes no Brasil.
Há africanos que fogem da guerra, da perseguição religiosa e da fome. Mas há também quem fuja da saudade. No começo de setembro, um camaronês de 22 anos chegou ao Brasil no leme de um navio de Cingapura. Havia viajado por duas semanas, passado fome por cinco dias neste período e sofrido com malária. Meses antes, já havia sido flagrado no Porto de Santos e mandado de volta à África. À PF disse que o motivo de encarar de novo a viagem tem nome: Luana, uma moça que conheceu em São Vicente. Apaixonado, já não consegue mais ficar longe dela. (Artur Rodrigues)


De imigrante ilegal a cantor de reggae
Aos 31 anos, o nigeriano Osas Destiny Onaiwu pode dizer que é mestre em escapar da morte. Quando conseguiu entrar como clandestino em um navio, havia acabado de tomar um tiro de espingarda calibre 12 .
“Parecia que haviam jogado areia quente nas minhas costas”, lembra.
Era fim do ano 2000 e a cabeça dele havia sido pedida por um militar, pai da namorada que engravidou dele e morreu em um aborto. “Um amigo meu era segurança do navio e me colocou para dentro”, diz ele.
O esconderijo foi o compartimento da âncora. Todo alimento eram pedaços molhados de pão. “A comida acabou. Fiquei três dias sem comer.” Com medo de ser jogado ao mar, foi o último dos oito clandestinos a se apresentar à tripulação. A hospitalidade surpreendeu. Após 35 dias, estava no Brasil.
Aqui, a sorte mudou. Legalizou sua situação e formou a banda de reggae Conexão Baixada. Fez sucesso e chegou a fazer turnê com Chorão, do Charlie Brown Jr.
Há dois anos, após disputa dos direitos autorais, saiu da banda. Hoje, para sustentar o filho de oito meses, vende lanches com a mulher brasileira.
Usando o nome Jamaicaboy, também faz shows solo (veja a agenda no site www.jamaicaboy80.blogspot.com). Fala português, mas compõe em inglês. O nome do último CD resume a vida do clandestino que virou artista: “My Dream Came True”, em português, “Meu Sonho Virou Realidade”.(AR)

Navios jogam invasor em mar por economia
Navios de países pobres costumam jogar clandestinos no mar para evitar arcar com os custos, segundo relatos de quem já viajou ilegalmente. “No porto de Lagos, na Nigéria, apareciam vários cadáveres de pessoas que haviam embarcado dias antes”, conta Osas Destiny.
Segundo ele, esse tipo de crime era cometido principalmente em águas africanas, onde há pouca fiscalização. A tática seria mais adotada por navios indianos, africanos e chineses.
Também há capitães de navio que jogam os invasores em barcos. Dessa maneira, os clandestinos são recolhidos por outros navios, mas como náufragos, cujos custos são pagos pela ONU.
No Brasil, os navios também têm suas táticas para tentar evitar pagar o custos dos estrangeiros. Em 2009, a Polícia Federal autuou um capitão que foi flagrado tentando despejar um imigrante numa favela de Santos.(AR)

'Eles chegam com o cheiro dos mortos’

Imigrantes ilegais em compartimento do leme de embarcação são resgatados no porto de Santos “Os clandestinos chegam com pés inchados, desidratados, a pele descolando, algumas vezes com malária e cheiro de podre, como se estivessem mortos.” A descrição foi feita pelo escrivão da Polícia Federal Marco Antonio Scandiuzzi, que se inspirou nas histórias que ouviu dos imigrantes africanos para escrever o livro “Clandestino”.
Lotado em Santos, ele atuou nos anos em que mais clandestinos chegavam ao Brasil, de 2003 e 2006. “Houve alguns anos em que chegaram mais de cem”, conta Scandiuzzi.
Naquela época, o que mais chocou foi o grau de pobreza dos homens que entrevistava. “Eles vinham de lugares em que costumavam varrer o arroz que caía no chão do porto para comer. Era muita fome”, conta.
Segundo ele, durante a travessia, a maioria leva pouca coisa na viagem. Muitos sucumbem e acabam bebendo a água do mar.(AR)