quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

Nuvens, cantem o barulho da chuva



As nuvens estacionaram há 20 dias sobre o Recife, sob a justificativa de um vórtice ciclônico. Os nativos tiram suas blusas do armário e gripam quase que por obrigação. Parece que a iminência da chuva oprime os filhos da claridade extrema.

Limito-me a um sorriso cifrado, daqueles que surgem quando torço para os bandidos nos filmes, enquanto todos ao meu lado choram pelo mocinho em perigo. Torço por elas, pelas nuvens. Tão etéreas que poderiam ser sugadas por aspiradores de pó, elas justificam-se. Mandam cartas com remetente e endereço: frente fria, da Argentina; vórtice ciclônico, do Atlântico; massa de ar quente, do Caribe.

De natureza gentil e delicada, mesmo tendo nas mãos os trovões e temporais, as nuvens amansam a tirânia do Sol, que penetra nas frestas, rouba a sombra, cega com sua luz até os olhos mais fechados. É possível sentir a textura macia de algodão ao pronunciar: nuvens, nuvens, nuvens. Fiquem aí, só mais algumas manhãs, tinjam o céu de cinza, encham as ruas de poças d'água, cantem o barulho da chuva.

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

À deriva

À deriva, sem vontade de ligar o motor ou tocar no remo, sem vontade de chegar. Tanto faz se à deriva no Triângulo das Bermudas ou a poucos metros da praia, tanto faz, a terra sempre pareceria longínqua e pouco atraente. O sol corrói a pele e me refresco com pequenos goles de água salgada, ao mesmo tempo rasgando e afagando minha garganta. Estou suando frio. Corto pedaços da vela e transformo em cobertor. Cubro-me até a cabeça, esquecido de rotas, mapas, pontos cardeais, destinos. Mesmo de olhos fechados, a luz me persegue, atravessa minhas pálpebras, violando a escuridão à qual até os mais miseráveis têm direito. Penso: quem dera estivesse dentro de uma garrafa para ser achado por alguém.

domingo, 17 de janeiro de 2010

Psicografia

Idéia nenhuma. Idéia nenhuma passa pela minha mente. É só um poço, cheio de ecos e estampidos de memórias. Sonhos que pedem socorro, amordaçados, eles parecem ridículos, ridículos. E aqui estou psicografando, psicografando esse vazio que só pode vir do além. Dramas longínquos cospem desaforos na minha cara. E eu escrevo a lápis, a lápis.

Acendo dezenas de cigarros e sinto o meu pulmão se esvaindo e o acendo também. Acendo uma tocha e boto fogo na casa e saio apagando as faíscas só pra passar o tempo.

Eu espero por ele. Sempre tenho que esperar. Mas ele nunca chega na hora, jamais. Diz que o tempo é muito diferente lá de onde vem. Diz tudo isso muito galantemente. De uma forma que faz toda essa minha impaciência parecer criancice. Me masturbo só pra passar o tempo também.

O melhor é ir até a cozinha e esquentar um café. Se ele vier agora terá de esperar, ou toma café comigo, ou nada feito. No ínfimo espaço de tempo em que coloco a água para esquentar, vejo minha vida passar sob uma trilha sonora de estalos até que me sinto esguio e poderoso, flutuando no gozo de alguém que não cheguei a conhecer. Eu tenho vontade de voar e o meu rabo rema vertiginosamente. Não posso controlar minha velocidade. Sou o mais rápido, não posso parar. Mas eles estão me alcançando, então eu volto, volto, volto, até uma caverna escura que acaba numa explosão. Meu visitante, certamente, tem noção do que é essa plenitude, a plenitude do big-bam, dos drive-ins, das coxias, dos cantos escuros.

Meu café ficou horrível.

Fico relendo os capítulos anteriores. Magníficos. Pena que dependo dele. Gostaria eu de poder fazer isso quando quisesse. Ligaria um interruptor no meu umbigo e escreveria as sentenças mais criativas e trama mais envolvente se encadearia sob custódia da irracionalidade dos meus dedos ágeis, que trotam irregulares pelo teclado do computador. Mas ele não usa computador. Só escreve a lápis. Não consigo, sinceramente, me conformar que um ser tão evoluído não tenha se acostumado com o computador.

Lembro que da primeira vez ele insistiu que eu comprasse uma pena e um tinteiro. E eu ainda não fazia idéia de como ele podia ser cabeça dura. Ainda estava pasmo com o abismo de possibilidades que ele me abriria com aquele gesto estranho que sempre faz. Uma coçada no nariz, sem o uso das mãos. Um cacoete deveras interessante, tenho que admitir. Ouço um barulho lá embaixo, mas não é ele. Ele chega sem barulho algum, sem o menor aviso, e envolve o ar com seu cheiro de eternidade. Sei que ele está perto, posso senti-lo. Então desço e vou preparar o seu jantar. A noite está gelada e os cachorros latem. Abro o quartinho dos fundos e acendo a luz. Dessa vez arrumei-lhe um belo jantar. Não há motivos para reclamações. Levanto aquele corpo amolecido e carrego-o nos ombros. Suas pálpebras piscam, mas sei que não vai acordar. Subo as escadas e coloco-o na cama - sinto sua presença no ar. As paredes mudam de cor. Minha mão coça para escrever. Meus nervos sabem muito bem, agora, o caminho para posteridade.

Como sempre, está muito bem vestido. Faz um sinal de aprovação ao olhar sua presa em cima da cama. Digo-lhe para retribuir em mais um capitulo fenomenal. Mas ele já está ocupado, devorando sua refeição. Come sem fazer barulho e chupa as entranhas com gosto. Rói cada osso e, como sempre, me espanto com o jeito com que enfia o fêmur pela garganta, feito um engolidor de espadas.

Encosta ao meu lado, lambendo os beiços finos, e elogia minha escolha, sem abrir a boca. Poderia explicar o trabalho que me deu, mas ele sabe, sabe de tudo. Posso sentir toda sua sabedoria quando coloca as mãos sobre meu ombro e eu começo a escrever vertiginosamente. Página após página é como se fosse o jorro inicial, como se ele tivesse o dom de arrebentar a comporta dos pensamentos do universo e todos estivessem ali, à minha disposição. As horas passam e eu vou me sentindo cada vez mais pleno e as páginas vão se empilhando à minha frente. Até que me sinto vazio, a comporta se fecha, e eu caio no choro, num choro de soluços desesperados, na abstinência de sua presença. Apago sobre as folhas, com lápis na mão, apago como se estivesse morto.

Acordo grogue, e sinto ânsia do cheiro acre que desprega do quarto. Minha cama desarrumada, meus pensamentos também, a tentação do suicídio na primeira mijada, o banho quente que parece lavar minha alma, se é que eu ainda tenho uma. As folhas empilhadas.

segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

AS BELAS DO TRÁFICO *

Georgeta, em ensaio na prisão. Foto: Marcos Michael/JC Imagem

Há um ano, a romena Georgeta Albu, 20 anos, estava prestes a acabar o ensino médio. A bela jovem estava namorando e planejava fazer faculdade de direito. Fluente em seis idiomas, poderia escolher qualquer país da Europa para trabalhar quando formada. Nessa época, nem de longe suspeitava que se envolveria em uma trama na qual terminaria em uma cela com dez detentas, no Brasil, condenada por tráfico internacional de drogas.
Traficantes nigerianos viram na jovem a chance de lucrar mais de 1.000% ao levar cinco quilos de pasta-base de cocaína do Brasil para a Itália. Mulheres bonitas, de classe média e sem envolvimento com o crime, como Georgeta, são alvos cada vez mais frequentes dos aliciadores, diz a polícia. “Os traficantes procuram pessoas acima de qualquer suspeita, de boa aparência, que não despertem desconfiança”, diz o delegado do Departamento de Repressão ao Narcotráfico (Denarc) da Polícia Civil Luiz Andrey.
“Foi a tentação que me trouxe até aqui”, conta a romena, em português quase perfeito, aprendido no Brasil. Por tentação, entenda-se a chance de ganhar 2 mil. Mesmo recebendo mesada da mãe que foi para a Itália trabalhar para pagar seus estudos, Georgeta arriscou. Viajou a Itália, São Paulo e só viu o mar da costa pernambucana pela janela do avião. Acabou presa pela Polícia Federal (PF) no Aeroporto Internacional do Recife, há oito meses.
Vestindo calça jeans justa, uma regata branca e maquiada, ela e outras duas reeducandas, como preferem ser chamadas, despertaram olhares de inveja – e até de cobiça – dentro da Colônia Penal Feminina do Recife, na última quarta-feira, durante sessão de fotos. “A gente já sofre tanto aqui dentro que se arruma só para mascarar a tristeza”, diz Georgeta, que tenta manter a beleza mesmo sem os cremes e xampus que enchiam a penteadeira de sua casa, em Suceava, na Romênia. A maior saudade, porém, não é dos cosméticos, mas da família. Mesmo ganhando pelo trabalho como secretária na colônia, Georgeta ainda recebe mesada da mãe.
Vestindo um curtíssimo vestido preto, A.C., 24, também faz da vaidade seu consolo. O salão de beleza da colônia dá conta da escova no cabelo e da pintura das unhas, que paga com o salário que ganha trabalhando na lanchonete, mas ela ainda sente falta da depilação. “Só tem o básico aqui”, diz a moça, que, por necessidade, trocou a cera quente pela gilete na prisão. Antes de ser presa pela PF com dois quilos de cocaína, a então aluna de pedagogia transportava a droga com a confiança de quem nunca havia sido parada pela polícia. “Acho que entrei nisso por causas das amizades. Era muito dinheiro”, justifica-se.

AMOR BANDIDO
Patricinhas do tráfico, Georgeta e A. são exceções. Entre as detidas por esse tipo de crime, a maioria é pobre e tem na sua história um amor bandido. “Os criminosos, mesmo os assaltantes, passam a lidar com tráfico quando são presos. Isso porque quem vai correr o risco são terceiros, que muitas vezes são mulheres”, afirma o delegado Carlo Marcus Correia, da PF. Essa estratégia pode ter ajudado no aumento de 233% da população carcerária no Estado, que passou de 300, em 2002, para cerca de 1.000 este ano. Entre essas detentas, uma em cada seis foi detida por tráfico.
O livro Amor bandido - as teias afetivas que envolvem a mulher no tráfico, da professora da Universidade Federal de Alagoas Elaine Pimentel, confirma a tese. “Não é só uma questão econômica. As mulheres entram para o crime também por afeto, pelo homem que amam, pela família”, afirma. Ela revela que, ao traficar, há mulheres que acreditam não estar cometendo crime algum. “O discurso mais comum é: ‘Crime é matar e roubar. Vendo a minha droga, só compra quem quer’”, diz.
A história de Ana Paula Silva, 25, parece ter saltado do livro de Elaine. Ela apaixonou-se por um criminoso aos 14 anos. Acusado de assalto e homicídio, o marido passou só o primeiro dos 11 anos do casamento em liberdade. “Nunca quis abandoná-lo para não ser covarde. Não precisava do dinheiro, só queria ajudá-lo”, diz. Com dois filhos e uma década após o início do romance, foi presa no fim de 2009. “Escutas me flagraram falando com meu marido no telefone. Eu não traficava diretamente, só levava um telefone ali, fazia depósito bancário”, conta ela, hoje a padeira da colônia, que garante ter posto um fim no amor que a levou para trás das grades.

* Matéria minha publicada na edição de domingo do Jornal do Commercio do último domingo