sábado, 26 de dezembro de 2009

A partida

Partir de onde se nasceu é se tornar estrangeiro em todos os lugares. É como se o chão em que se pisa depois de descer de cada avião fosse gelatina.

Partir é, ao mesmo tempo, estar em casa em vários lugares, dependendo da ocasião, do humor, do tempo e sabe-se lá do que mais. Afinal, não há os íntimos de todos e os esquivos até de si mesmos? E nós não somos simultaneamente ambas as coisas?

Partir é mergulhar nos paradoxos. Voltar é chegar. Chegar é voltar. É ser turista na cidade natal e nativo na terra longínqua. Há quem se estilhace; eu me multiplico. Há quem se mutile; eu renasço, alienígena no meio de um faroeste.

Partir é respirar saudade, sentir os cheiros das lembranças misturarem-se com o odor do desconhecido cada vez que se enche o pulmão.

Partir é partir-se ao meio porque se quer ser inteiro.

domingo, 6 de dezembro de 2009

Aos 30

É, chegaram os 30 anos. E você não viajou o mundo, não teve filhos, não escreveu seu livro nem aprendeu a tocar instrumento algum. Passou muito tempo na frente da TV, mais do que gostaria. Para piorar, estudou menos do que havia planejado, trabalhou muito e ganhou pouco dinheiro.

Os 30 estão aí. E você percebeu que é menos inteligente do que achava que era. Que é menos talentoso do que lhe diziam por aí. De quebra, descobriu que tinha menos amigos do que pensava, embora saiba hoje que os que restaram seguram qualquer bronca. Foi obrigado a ser humilde, quando isso lhe parecia odioso. Foi obrigado a ser paciente, você, que achava que paciência era conformismo.

Entrando em três décadas, você ficou mais tolerante. Logo você, que não aguentava gente burra, agora dá risada das piadas preconceituosas da classe média que tanto negava. Claro, depois você renega tudo isso, afinal, não ficou tão tolerante assim.

Trintão, você percebeu que envelhecer pode ser tropeçar nas próprias pernas. Pode sentir que a migalha de atenção das festinhas de aniversário não passa da cerimônia em que alguém amarra seu cadarço esquerdo no direito, enquanto todos aplaudem o seu tombo. (No começo, é divertido, admita. Mas sabe que o tombo nunca encontra o mesmo corpo, assim como o corpo nunca encontra o mesmo chão. No princípio é um corpo cheio de elasticidade caindo num belo gramado. Mais tarde, torna-se uma estátua de gesso desabando no mais puro e vigoroso concreto.)

Você, 30, sente o tempo na pele. Ele te paralisa, às vezes. Mas, no fundo, sabe que não perdeu tanto tempo assim. Se aprendeu alguma coisa de útil foi a dar risada do tempo, apesar de, às vezes, o senso de humor não ajudar. Descobriu na prática que a melhor coisa do mundo é jogar o tempo fora ao lado de alguém que você gosta.

Você viu muita coisa nesses 30 anos. Gente nascendo, gente morrendo, gente casando, gente separando, gente crescendo, enquanto você envelhecia. Ruas novas foram abertas, mas aquelas antigas ainda continuam te fazendo sorrir. Aquela mudinha de árvore na sua rua agora tem quatro metros de altura e, por mais pessimista que você possa ser, não pode negar como a sombra que ela faz é refrescante.

A morte, aos 30, parece tão longe. Muito mais distante do que aos 15 ou 20, quando você pulava do alto das cachoeiras e quase se arrebentava nas pedras, dirigia completamente bêbado e se metia em tantas brigas. Muitos não tiveram tanta sorte e ficaram pra trás.

Sim, 30, você ainda é mais novo que a maioria. Pode aprender a tocar o instrumento que queria e viajar pelo mundo. Escrever seu livro e ter seu filho. Agora, você provavelmente fará tudo isso melhor, mais cuidadosamente, com mais firmeza. Isso se não quiser ter essa mesma crise aos 40, 50, 60 ou no leito de morte.

Aos 10.950 dias de vida, exatos 30 anos, se for esperto, já terá começado a fazer essas coisas que tanto queria e outras que nunca pensou que faria. Será um cara mais seguro, sereno, realizado. E dará risada dessa carta ingênua que escreveu para si mesmo um ano antes, aos 29, numa tarde de domingo em que não tinha nada para fazer.

quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

Amor incandescente

Maria Jovelina puxou a mangueira do botijão de gás. Ficou esperando. O cheiro se alastrava pelo pequeno barraco no Jardim Irene, Santo André. Perdeu a noção do tempo. Foi para o quarto improvisado no barraco, formado por tênues divisórias, e ficou observando o marido dormir. Chegara à conclusão de que era melhor acabar com tudo agora. Antes que lhe tomassem tudo depois.
O odor forte havia dominado o ambiente. Pegou a caixa de fósforos. tirou um palito e riscou. O fogo tomou conta. O calor insuportável em todas as partes do corpo não impediu que ela se deitasse na cama e abraçasse com força o corpo de Francisco.
A sensação dos pés pegando fogo acordou o homem forte, que, naquele momento, se sentiu imobilizado. Ouvia alto – e nunca conseguiria esquecer daquilo – o choro. As três vozes se fundiam em uma só dor.
Francisco gritou o mais alto que pôde. Tentou se livrar de Maria, que o agarrava com uma força que não tinha. "Vamos morrer todos juntos", gritava a dona de casa em chamas. Os vizinhos ouviram. Mas demoraram a sair. A explosão do botijão de gás, o barulho de coisas caindo, os gritos. Parecia um tiroteio.
Mas, enfim, o primeiro que botou a cara para fora viu que era incêndio e chamou outros três para tentar o resgate. Todos eles demoraram a conseguir que Maria soltasse o marido. Tempo suficiente para os filhos do casal, Jeferson, 6 meses, Jéssica, 2 anos, e Rodrigo, 6, morressem carbonizados.
O casal foi salvo. Maria correu para não ser linchada e acabou 'escoltada' pela polícia até a cadeia. Detida, a mulher que até então fora boa mãe se justificou. Matou por amor ao marido. "Ele tinha uma amante".
Coluna Arquivo do Crime, publicada em 2006 no Diário do Grande ABC

quinta-feira, 26 de novembro de 2009

Falta

O que me falta é falta do que fazer. Me falta é a falta, fazer o quê? O que falta fazer. O que falta? O quê.

domingo, 15 de novembro de 2009

Olhar da Lua

Petrificados de felicidade, imóveis na rede, ficaram vendo a Lua balançar, esquerda e direita, esquerda e direita, cada vez mais lentamente, até que ela parou bem no meio do céu, e retribuiu o olhar.

sábado, 7 de novembro de 2009

Teatro, adultério e uma arma carregada*

Marcelino engatilhou a arma e colocou na cabeça. Sua vida chegara a um extremo que via só nas peças em que atuava. Tramas marginais, do dramaturgo Plínio Marcos, em que gente era moída pelo mundo e devolvia com o pior que tinha dentro de si. Agora, só lhe restava acabar com tudo, apertar o gatilho. Foi o que fez.
A história que terminou em tragédia começou como história de amor. Numa terra distante, com muitos sonhos e planos. Ele, o ator brasileiro, conhecera ela, a fotógrafa francesa, em Paris. Era 1973. Paralelamente à fotografia, Anne Marie Hellen dava aulas de português e espanhol. Tinha, então, 29 anos. Marcelino era quatro anos mais novo e tentava a sorte no teatro francês. Ia razoavelmente bem, atuava em peças do circuito parisiense e trabalhava também criando trilhas sonoras para os espetáculos.
Brasileiro, artista e negro, Marcelino não era bem o que a família de Anne Marie tinha como um bom partido. Os dois sofriam com a pressão dos parentes da francesa, mas estavam apaixonados e seguraram a barra. Três anos depois, casaram-se.

***

Não duraria muito a felicidade do casal. A fotógrafa parecia ter uma certa predisposição a fazer confidências um tanto perturbadoras ao ator. Ela revelou que costumava fazer sexo com os amigos dele, mesmo depois de casados. Marcelino revidou e confessou que também a traía. Ela foi mais longe: contou que um outro namorado brasileiro, na época em que vivera no Brasil, havia se suicidado porque, assim como Marcelino, não conseguia dar o conforto que ela exigia. As brigas multiplicavam-se.
O relacionamento caminhava para o fim quando decidiram mudar para Nova York, nos Estados Unidos. Era um jeito de se verem longe da pressão da família dela. Sem sucesso. Meses depois da mudança, os pais de Anne Marie desembarcavam na América. Era demais para Marcelino. Voltaria para o Brasil. Ela, para a França.
Não conseguiram ficar muito tempo separados. Logo chegava à casa de Marcelino uma carta de Anne Marie. Ela pedia que o ator voltasse à França, para que pudessem tentar novamente. O pedido foi atendido e, novamente, os familiares da fotógrafa voltariam a atormentar o casal. A solução encontrada pelos dois foi uma nova mudança. Dessa vez, o destino era o Brasil.
Marcelino e Anne Marie viveram por um tempo na casa dos pais do ator. Depois, alugaram um apartamento no Centro de São Paulo. A francesa começava a montar seu estúdio de fotografia. Ele conseguiu um papel na peça Barrela, obra de estréia de Plínio Marcos.


***

A arma que o ator mantinha apontada para a cabeça naquela tarde de domingo era usada na peça. A história era sobre um jovem de classe média que, preso, divide a cela com mais quatro. O rapaz é estuprado por todos e, quando sai da cadeia, resolve se vingar. Mata um por um. O papel de Marcelino era de menor importância, mas seu personagem tinha uma arma, de verdade. As balas ele arrumou com um amigo. Queria dar uns tiros, só para saber como era.

***

Era outubro de 1980. Marcelino e Anne Marie foram a uma festa na casa dos pais do ator, na Vila Olga, em São Bernardo. Os dois beberam bastante e, novamente, a francesa retornara ao assunto financeiro. Dizia que, pela experiência do marido, ele deveria estar ganhando mais e, conseqüentemente, oferecendo um padrão de vida melhor a ela. O ator tentou acalmá-la, dizendo que as coisas não eram tão fáceis.
Os dois estavam sós no quarto e a briga esquentou. Ela, novamente, confessou mais casos extra-conjugais. Que ele soubesse, aqui, no Brasil, já andava transando com os amigos dele. E o pior, dizia ela, é que, mesmo depois de ouvir todas aquelas verdades, ele não tinha coragem de se suicidar.
Sim, a arma estava na cintura. E ele a usaria. Apontou o revólver para Anne Marie e descarregou o tambor. Sim, ele tinha coragem. Com ela ali, morrendo na frente dele, apontou a arma para a cabeça e atirou. Mas, por falta de balas, ali estava ele, vivo, com um corpo na sua frente, uma arma na sua cabeça.


***

O ator fugiu da cena do crime. Dias depois, se entregou.

* História real, publicada em minha finada coluna Arquivo do Crime, no jornal Diário do Grande ABC, há muito, muito tempo atrás. Postarei outras aqui neste blog

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Incompletude

Gosto muito mais da ficção que da realidade. Mais interessante e sedutora, a primeira me deixa louco com sua indiferença, um flerte dissimulado e cruel. Me faz esquecer do mundo.

Prática e muitas vezes justa, a segunda me cerca de um jeito que me deixa sem saídas. Cheia de si, despeja na minha cara: "Você tem fantasias com ela, mas só sobrevive no meu colo". Com medo de ser rejeitado, caio nos braços da pragmática realidade.

Sempre quis ser escritor, desde que aprendi a ler, antes de muita gente da minha idade. Edito e reedito um livro desde 2002. Ficção que continua impressionantemente impublicável e que, graças aos devidos cortes, nunca passa das 50 páginas. Largo dela por anos, não coincidentemente nos períodos em que mais trabalho como repórter. Chego a sentir estar no caminho certo até tropeçar no cansaço e na frustação. Me pego sonhando com as delícias da cama da outra.

Realidade e ficção são, na minha vida, duas irmãs lutando por atenção. Suas motivações são diferentes como uma é o avesso da outra. A realidade me quer porque tem certeza que pertenço a ela. A ficção, por sua vez, pretende apenas me tirar os braços da outra, sem dar a mínima garantia.

Às vezes, tenho vontade de matar as duas. Só não o faço por puro egoísmo.

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Doce ignorância

Pode acabar o café do pote. Pode acabar o amor do pote. O futebol pode acabar. A cerveja pode azedar. O céu, o mar, a lua. As senhoras gordas podem estampar as revistas de mulheres nuas. Clarear para sempre a noite pode. O silêncio pode trancar os dentes e o estômago ficar cheio de serpentes. Desde que eu não saiba, tudo pode.

sexta-feira, 9 de outubro de 2009

Semelhanças

A morte lhe parecia um fim louvável. Menos dolorosa do que as amenidades que assolavam o juízo costumeiramente. O calo que doía no pé, o medo de morrer de câncer, a saudade de um tempo que sequer existiu de verdade, os juros dos agiotas que comiam os reais que não tinha, o pressentimento repetitivo de ter deixado o fogo ligado em casa, os pêlos que nasciam no nariz, a barriga que teimava em crescer, o time que perdeu a garra. Não, não aguentava mais aquilo. Sacou a pistola do bolso. Tirou o pente, conferiu: 16 balas. Colocou de volta. O suficiente para acabar com calos, pêlos no nariz, porém, sem poder de fogo contra os juros ou o câncer ou a saudade. Limpou a arma com a camiseta. Pegou o telefone celular. Mensagem recebida: a grana está na mão. Apontou para a cabeça e atirou sem olhar. Um baque seco. O barulho do corpo caído no chão. Pareceria um boneco, não fosse pelo tremor das mãos. Era como assistir a própria agonia. Aqueles olhos castanhos claros iguaizinhos aos seus, mesmo por debaixo da venda, o espreitavam, o julgavam e condenavam. A boca tentava morder o pedaço de fita adesiva que a lacrava. Conversando com o outro mentalmente, dizia, não foi só o dinheiro. Sabia que ele ouviria, sempre ouvira. É a minha liberdade também. Você faria o mesmo que eu se estivesse no meu lugar, sabemos disso. Eu, por minha vez, também te julgaria, assim como você fez comigo, e o condenaria. Afinal, fomos iguais, desde o ventre apertado que dividimos, desconfortavelmente iguais. Mas, agora, ambos estamos livres, irmão, posso dizer sem ódio nenhum, irmão, livres.

segunda-feira, 28 de setembro de 2009

O homem e seu sonho

Deus dá o poder de sonhar o infinito. Junto com ele, uma pá e uma cova já cavada para enterrar o sonho. Se o homem tiver preguiça de carregar o pesado sonho até o buraco e jogar a terra já afofada sobre ele, num estalar de dedos, faz aparecer um coveiro bem disposto a fazer tudo sozinho. O homem só precisa esperar. Se for impaciente, faz aparecer uma cadeira confortável, uma revista e um uísque para matar o tempo. Caso esteja indeciso, lhe dá um amigo para conversar, talvez até o desaconselhar a enterrar o sonho. Se o amigo só servir para deixá-lo mais em dúvida, lhe dá um amor, uma família, um cachorro, um terapeuta e dinheiro comprar o que quiser. A maioria dos homens, espreguiçando-se sobre as delícias da espera, nem nota o trabalho do coveiro que nunca para. Alguns despertam sonolentos, no fim da vida, sentindo-se injustiçados ao presenciar o pomposo funeral do sonho. Outros simplesmente esquecem o que estão enterrando. Há um tipo de homem, porém, que faz o mais difícil: joga o coveiro, o uísque, a revista, a cadeira, o amigo, o amor, a família, o cachorro, o terapeuta e o dinheiro dentro do buraco. Por fim, para eliminar qualquer tentação de mudar de ideia, joga a pá. Agarra punhado por punhado de terra e os despeja sobre a profunda cova. Quando termina, tem as mãos em carne viva, nem um copo d'água para matar a sede ou uma sombra para descansar. É só começo. Está nu e a sós com seu sonho, uma bagagem que só não pesa mais que as dúvidas que esqueceu de enterrar.

domingo, 30 de agosto de 2009

A morte da história

A história estava dentro dela. Era escrita, reescrita, editada, entre nervos, pele, sangue. Memória? Mais que memória. Quem sabe um órgão? Coração, estômago, pulmão e a história. Negava a história, cutucava a história, matava a história, tirava-lhe o H na tentativa de transformá-la em estória, causo, piada, fantasia. Quimioterava a história, para torná-la frágil e pelada, para que ficasse com vergonha e fosse embora. Só infeccionava o que era óbvio: não se arranca a história feito tumor, apêndice, verruga. A história continua a se repetir dentro do coliseu de ossos e músculos. O único jeito de matá-la é não morrer com ela. Embalsamá-la em palavra morta, entre vírgulas e pontos, estrangular até imobilizá-la em duas dimensões, epitáfio de si mesma.

terça-feira, 25 de agosto de 2009

Eu, a torcida independente e a tiazinha mais corajosa do mundo

Ilha do Retiro. A multidão se aglomera em volta do estádio para assistir o glorioso tricolor paulista contra o decadente alvirrubro pernambucano. Era o início de um domingo inesquecível.

Apesar de saber que se tratava de uma inequívoca roubada, resolvi ir ao jogo, sei lá, para matar a saudade da terra natal por meio do futebol do melhor time do Brasil.

O torcedor do time da casa tinha camarote, cadeira numerada, espaço até pra soltar pipa. Na torcida do São Paulo, eram uns cinco mil no espaço onde caberia, no máximo, dois mil. Mas sou um homem valente, vamos lá, fui criado por uma família de lobos!

Bastou eu entrar no estádio para eu perceber que seria impossível ver o jogo. Mas, diz o consultor empresarial, o bem sucedido é o que vê oportunidade quando está tudo uma merda completa. Pois bem, a merda estava lá, só faltava a oportunidade.

Pois não é que ela apareceu. Começou uma briga, daquelas que todo mundo sai correndo e deixa só os encrenqueiros se estapeando. E lá fui eu, bem para o meio da briga, subindo as arquibancadas até um ponto onde poderia ver a partida perfeitamente.

Começa o jogo. Descubro que meus vizinhos de torcida são os educadíssimos integrantes da torcida independente. Decubro que os educadíssimos torcedores vão agitar suas bandeiras bem na minha frente, o que jogaria no lixo todo meu esforço para chegar a posto tão privilegiado.

As bandeiras se agitam e... De repente, eles começam a gritar: "Solta essa porra dessa bandeira, solta, solta sua puta!" Olho para o lado e vejo uma tiazinha agarrada à bandeira da torcida.

A mulher, talvez por não conhecer as boas maneiras da torcida independente, devolve: "Seus filhos de rapariga! Filhos de rapariga! Estão pensando que são quem!"

A coisa esquenta. Os torcedores, muito sensibilizados com a situação da mulher, gritam: "Quer assistir o jogo vai pra casa! Estamos aqui pra torcer!" E seguem para cima da valente torcedora da terceira idade, prontos a mostrar a ela por que a torcida independente é tão bem vista pela polícia de São Paulo.

Quando a tragédia se anuncia, eis que surge a tropa de choque da PM. Altivos, vão subindo a arquibancada em direção à confusão, com seus escudos e cassetetes. Entram na muvuca e saem de lá com... com a tiazinha revoltada! A independente, que estava acuada por aquela baderneira violentíssima, vibra.

Um dos sujeitos que estava pronto a mostrar o caminho do IML à brutal senhora
grita: "Ela me mordeu!"

Um gigante sem camisa do meu lado fica tão feliz que me abraça. Detalhe: ele estava sem camisa. Detalhe: minha cabeça ficava na altura do suvaco dele. Detalhe: ele gostou tanto de mim que me abraçou o jogo inteiro.

Ah, o São Paulo ganhou de 2 a 1. Fico me perguntando até hoje onde estava aquela truculenta tiazinha na hora que Hugo marcou o gol da vitória aos 48 do segundo tempo. Uma coisa é certa: ela estava longe demais para me proteger do último abraço da partida.

sábado, 15 de agosto de 2009

Leveza

Às vezes, acontece. Não há circunstância externa aparente. Tudo, de repente, curiosamente, fica leve. Você acorda flutuando sobre a cama sem se dar conta de peculiaridade alguma no dia que nasce como todos os outros insistentes dias.
Os sentidos, aguçados, alertam para o que não há sentido. A pasta de dente parece surpreendentemente saborosa, como o café morno, o pão borrachento, o cigarro amargo, a cerveja demais, o filme desnecessário. Até a dor de cabeça crônica torna-se uma cócega levemente dolorida, um coceira gostosa no juízo.
Há quem passe a vida buscando a leveza. Não, não... não se engane, ela é arredia, feito o sono, cheia de curvas. Só vem à custa da mais distraída distração. Ou à base da trapaça farmacêutica tarja rubronegra.
Praticantes de um profundo desapego a agarram nas mãos com tanta força, deixando nóduas tão resolutas, que transformam gás helio em chumbo. Despencam do céu convencidos de que vão aterrissar nas nuvens. Enganadíssimos estão.
Em vidas marcadas a ferro com o signo da responsabilidade e das obrigações, encarceradas na obesidade do cotidiano de um adulto nem mais nem menos, é capaz de transmutar os círculos infernais ou as sonolentas paragens paradisíacas em charmosos recantos do purgatório. O prazer de tirar os sapatos apertados do espírito, sabendo que vai ter de calçá-los no dia seguinte.

sábado, 8 de agosto de 2009

O silêncio no meu vocabulário

Eu não sei o que dizer. Tem quem saiba o tempo todo, mas eu não sei. Tem quem viva sincronizado em um diálogo escrito, reescrito, revisado e ensaiado. Não eu. As palavras saem, mas antes ou depois do momento certo. Saem desmedidas, distorcidas, desastradas. Não me arrependo do que digo, mas de ter dito. Não invejo os que vivem com a palavra mais certa na ponta da língua, mas os que a guardam na boca, mastigam, engolem, transformando-a em silêncio. Gostaria de ter o silêncio no meu vocabulário. Não qualquer silêncio. Há falsos silêncios circulando pelo ar: é possível ouvi-los. Alguns são como tagarelice, não querem dizer nada, apenas fazer barulho. Outros são moralistas, a quietude cheia de significado, quase um grito de guerra. Até a mudez não é o silêncio completo, cheia de murmúrios que é, a mão de Deus tapando com força a boca do homem. Quero o silêncio natural, em estado puro, que nada quer dizer, aquele que passa despercebido a todos, inclusive a mim.

terça-feira, 4 de agosto de 2009

Falência múltipla dos órgãos

Começa coceira no cérebro. Tecido nervoso que não tem dedos para dar alívio a si mesmo. Inquietude escorrega pelas veias, vez por outra, arranhando suas paredes com garras afiadíssimas, a esmo. Vira diarréia no intestino. À esquerda, cirrose no fígado. Num desatino, erra o caminho e faz o retorno, úlcera no estômago. Desacelera para estacionar enfisema no pulmão. Arrisca passos de dança fora do ritmo, contaminando o bate-bate do coração. Infarto certo irradia pelo corpo e atordoa a visão. Olhar vidrado espatifa para todos os lados, baço. Finalmente, a calma. O corpo caído no terraço, escorado na sacada da alma.

domingo, 2 de agosto de 2009

O mar, caprichoso e distante

O mar, magnífico e injustificável, cruel e mágico, tem vontade própria e brinca comigo, com a gente. Acelera o barco rumo à terra, mais rápido do que nunca. Quando a tripulação se prepara para jogar a âncora, arruma as malas, come os chocolates que havia guardado para os períodos de fome, quando nossos pés já sentem o cheiro da terra grudada na borracha dos sapatos, as ondas levantam-se maliciosas e sorridentes e atiram o barco para tão longe, tão longe de qualquer lugar, que ficamos tontos; perdemos o foco e já não sabemos mais onde estamos. O céu se escurece sobre nossas cabeças.
A memória passa a ser como um membro amputado, conseguimos senti-lo, quase tocá-lo, dolorido, em chamas, latejante. Lá vai a lembrança inquieta tocando os dedos no nosso ombro, pedindo atenção feito fazem as crianças.
Mas crianças não vão para o mar nem têm lembranças lindamente inconvenientes como as nossas. Somos adultos, marinheiros, sempre soubemos que uma vez no mar teríamos de ter paciência. Teremos de domar nossas memórias, nossa fome, nosso cansaço, teremos de adestrar as lágrimas, acostumar nosso paladar aos gostos diferentes, carregar punhados de paciência em todos os bolsos e tragar longamente o fumo salgado da maresia. O mar, um dia, cede, melhr, concede, por pena ou divertimento, sabe-se lá, talvez demore mais ou talvez não.

quinta-feira, 16 de julho de 2009

Sexo-jornalismo: a primeira a gente não esquece


Foi a minha primeira vez. No jornalismo, que fique claro. Sem nada pra fazer, achei essa matéria, publicada em 2002 na Revista Crocodilo _ com certeza a mais trabalhosa que já fiz. Por mais doido que pareça, é tudo, tudo verdade.

*Zona vertical
São Paulo, 10 milhões de habitantes, a segunda maior população da América Latina, só perdendo para a Cidade do México. Detalhe: mais da metade desse povo todo é mulher.
Teoricamente, os homens casados deveriam estar felizes, cada um com a sua. E os solteiros, esses estariam seguros de que não faltaria mulher no mercado. Mas nem tudo é tão simples assim. Desde que o mundo é mundo, o sexo pago é um negócio rentável.
E como em toda metrópole, São Paulo oferece uma gama enorme opções quando se fala de prostituição. Na zona nobre da cidade, o sujeito que quiser “tirar a barriga da miséria” com beldades que parecem ter saído direto da passarela para a cama (redonda, é opcional) pode ter de desembolsar entre 300 e 1000 reais. Mas a putaria é democrática.
No centro de São Paulo, mais precisamente perto da famosa Estação da Luz, fica o “meia-nove”. Bem localizado na região conhecida como “boca do lixo”, o prédio discreto abriga uma das maiores “zonas verticais” da city – uma espécie de Galeria Pagé do sexo.
São 9 andares povoados de centenas de garotas para você escolher. Ou ser escolhido, porque elas agarram e não largam mais (este repórter que o diga). Munido de um vale alimentação de R$8 e muito amor para dar, eu conheceria o carinho e o ódio das moradoras do número 69 da rua Andradas, quase de esquina com a av. Cásper Líbero.

“É hoje!”
Sexta-feira, 18 horas. Estou na pequena fila que se forma em frente ao prédio. Homens de todas as idades esfregam as mãos, ansiosos. Afinal, este é o desfecho para mais uma semana de trabalho duro.
“É hoje”, exclama um rapaz moreno, que aparentava uns trinta anos. Ele me conta que freqüenta o “meia-nove” há cinco anos. Há três, se mantém fiel a uma das garotas. “Ela é meu escape”, confessa.
Logo na portaria, deixo a mochila no guarda-volumes (R$1). Só se sobe com essencial, no caso, a carteira. “Para evitar alguma tragédia”, explica de trás do balcão um negro alto, cheio de jóias no pescoço, enquanto checa meus documentos para se certificar que sou “de maior”.
Um cara de meia-idade, que acaba de voltar de sua empreitada pelo prédio, reclama das meninas do nono andar. “Isso é selvageria! Olha o que elas fizeram com a minha roupa”, diz, mostrando a camisa rasgada no colarinho e o pescoço arranhado.
No elevador, ninguém aperta o número 9, não sei por quê. Eu, por precaução, também fico no oitavo. A porta se abre. Daqui pra frente, não tem mais volta.
“Vem cá, gostosão, vamos foder bem gostoso”, convida uma dezena de garotas. Todas, seminuas, me agarram pelo braço, enquanto eu tento fugir, um tanto assustado com o assédio repentino.
“Ah! Esse gosta de uma rola bem grande”, grita uma delas, apontando pra mim, que já conseguia descer a escada estreita, mal iluminada e lotada de mulheres.

A concorrência
Não há luzes néon nem música ambiente, só mulheres de todos os naipes. Gordas e magras, coroas e garotas que acabaram de sair da adolescência, todas quase saindo no tapa para ganhar a clientela. Algumas xingam, outras agarram. Mas o principal argumento das moçoilas para conseguir um programa é botar defeito nas mulheres dos outros andares.
“Nem adianta descer, este é o melhor andar”, me disse uma delas, que, pela cara, já beirava os 40 anos. Já no quinto, algumas fizeram questão de mostrar como o chão era limpo e insistiam: “Daqui para baixo, é só puta porca. Por isso que elas não gostam da gente.”

“Dez minutos ou uma gozada”
Continuo descendo. No quarto andar, não cabe mais ninguém. Uma mulher de quase um metro e oitenta, vestida com cinta-liga, me puxa pelo pescoço e diz: “Agora cê vai ver o que é bom”, enquanto me arrasta para um dos cubículos, separados um dos outros somente por biombos que mal chegavam até o teto. Na parede, um pôster da Kelly Key com uma camisinha na boca diz: “Mostre que você sabe o que quer”. Em cima do pequeno criado mudo, pelo menos umas trinta camisinhas daquelas da prefeitura.
Ela diz que pra mim vai fazer só R$10. Engraçado, já tinha ouvido isso dezenas de vezes naquela noite. Tentando escapar da investida, já meio arrependido de estar ali, eu aviso que só tenho um ticket de R$8 no meu bolso. “Não faz mal, não, gatinho. Eu gostei de você”, responde, me jogando com tudo na cama pequena, de solteiro. E pergunta: “Você prefere ‘por baixo’ ou ‘de quatro’?” Mal tive tempo de responder e ela já colocava a camisinha em mim, enquanto explicava:”O sistema aqui é o seguinte: dez minutos ou uma gozada”.
Saí de lá suado e quase derrubei o biombo que separava o cubículo em que eu estava do quarto ao lado. Algumas mulheres ainda tentaram me agarrar na saída, mas quando eu chegava mais perto percebiam que daquele bolso não sairia mais nada. “Ihhh...esse aí já era”, diziam algumas.
Outras, porém, ainda insistiam quando eu explicava que já tinha feito o que tinha de fazer por ali.
“Eu trabalho aqui das 8 da manhã até 9 da noite e quando chego em casa ainda dou umazinha com o meu marido e você não agüenta dar duas na mesma noite”, me esculhambou uma mulata, vestida só de calcinha. Então, respondi que não queria nada com mulher casada. Ela apagou o cigarro, nervosa, e me mandou praquele lugar. Calma, pensei, poderia ser pior, eu poderia ser o marido dela.
Quando finalmente consigo chegar ao térreo já eram 19 horas. Uma multidão de homens continuava a entrar. O “meia-nove” fervia, como sempre.

quinta-feira, 9 de julho de 2009

Estrangeiro

O estrangeiro é aquele que passa pela rua e observa todos os demais levando os livros das histórias de suas vidas debaixo do braço. Sentadas nos cafés e fumando seus cigarros, andando apressadas a caminho do trabalho, simplesmente passeando sem destino ou coçando o nariz, as pessoas abrem seus livros, contam suas histórias para si próprias e para os outros, mesmo sem necessidade, já que os ouvintes conhecem a ladainha de cor. O forasteiro também carrega seu livro. Mas não adianta: chega a passar vexame quando faz menção de abri-lo e ninguém vê o volume encadernado caprichosamente em couro, que encerra tantas aventuras que quase chegam a pular das páginas para o mundo. Aos olhos nativos, é como se ele tivesse acabado de nascer, ali mesmo, já no auge da maturidade, sem um pingo de passado. O próprio estrangeiro passa a não querer carregar mais aquele calhamaço que lhe parece cada vez mais pesado e inútil. Uma noite, com saudade da familiaridade, abre o volume e percebe que o texto ali escrito está em um idioma totalmente desconhecido para ele. Aquela intraduzível história é, no entanto, tudo que ele tem.

domingo, 5 de julho de 2009

O homenzinho que vive na minha cabeça

Às vezes, me dou conta do homenzinho que vive na minha cabeça. Um workaholic, esse homenzinho. Enquanto eu durmo, ele trabalha. Quando estou distraído, ele está atento. Cientificamente falando, uma mistura de subconsciente, sonho, reflexo e mágica formam o corpo desse sujeito que, por ter nascido na minha cabeça, é de certa maneira irmão dos meus neurônios.
A primeira vez que percebi a existência dele foi durante um jogo de sinuca, esporte nobilíssimo no qual sou um zero a esquerda, apesar das minhas pretenções malandrísticas. Vez por outra, entre tacadas ridículas que arremassam bolas da mesa, ele aparece. É como se por um momento eu estivesse fora e ele assumisse o controle. Pá, pá, pá, três bolas seguidas na caçapa. Detalhe: pelo menos duas eram impossíveis.
Como ele trabalha com qualidade, não quantidade, geralmente acabo perdendo mesmo essas partidas em que ele dá as caras, por total incompetência de fazer desaparecer as bolas que restam.
Aos poucos, fui percebendo que ele é muito mais que um mero jogador de sinuca. Já salvou minha vida algumas vezes, desviando-me de balas de revólver e de ônibus em alta velocidade. Até, certa feita, dando-me força sobrehumana para acertar um direto no queixo de um grandalhão que me estraçalharia com um suspiro.
Vaidoso, ele assume, vez por outra, a tarefa de conquistar mulheres (claro que hoje em dia, por conta do meu estado de seríssimo comprometimento, não lhe dou mais essas liberdades!). Mas, voltando ao assunto, ele, com seu papo mole, várias vezes me viu imerso em minha timidez e assumiu o controle da situação com maestria, gerando consequências que não é de bom tom espalhar.
Fico pensando se foi ele que bateu aquela falta no ângulo, um petardo de direita, meu ponto fraco no esporte ludopédico. Mas, não, isso não importa. O que tem, de fato, importância é que o tal homenzinho guarda no bolso do seu terno um pozinho que faz o impossível parecer piada. Fico imaginando o problemão que vai dar a hora que me fizer sair voando por aí.
Ser pretensioso esse homenzinho que resolveu ser escritor e escrever um texto cheio de elogios a si próprio. Pois é, quem escreve aqui, na maioria das vezes, é ele. Eu fico com o arroz feijão das matérias de jornal. Fulano de Tal, como eu o chamo por falta de nome melhor, prefere investir na literatura, o terreno do impossível.
Um dia, ele ameaça, chega pra ficar e não me deixa mais dar um pio na minha vida. Não acredito. O que me dá esse sossego é saber que ele enjoa rápido de tudo, como aconteceu com esse texto, que abandonou perto do fim. Sujeitinho cheio de gostos e desgostos que é, sempre me deixa seguir em frente, por mais desajeitados que lhe pareçam meus passos.

segunda-feira, 29 de junho de 2009

A batalha dos dedos contra os neurônios

Os dedos conspiram contra os neurônios, tinhosos que são. Não suportam uma grande ideia por saberem-se meros realizadores, incapazes de criar o que quer que seja. Cabe ao escritor domar seus dedos para que sirvam à mente feito cavalos puro sangue, ostensivamente adestrados, de trote suave e seguro. Para que a obra-prima não se desmanche no galope entre a cabeça e a tela do computador. Grandes ideias sem dedos obedientes são mantimentos apodrecendo dentro de contêineres num porto longínquo. Dedos bem educados, sem grandes ideias, viram carimbos de escritório de advocacia. Aleijados e excêntricos trocam seus dedos pelas cordas vocais, mas essas são tão conservadoras que suprimem o novo assim que convertem palavras em som. Sem o casamento obrigatório entre tão mortais inimigos, dedos e neurônios, não nasceriam a Bíblia nem Hamlet, Dom Quixote jamais conheceria Sancho Pança, Raskolnikov nunca mataria e remoeria em culpa, Gregor Samsa continuaria pisando nas baratas sem o menor remorso.

quinta-feira, 25 de junho de 2009

Adoráveis mentirosos

Eu tenho um costume muito questionável: roubar as histórias alheias. Sabe aquela história tão boa, tão boa que você queria que tivesse acontecido com você? Pois é, aquela história que talvez sequer tenha acontecido com o sujeito que lhe contou? Então, descaradamente, roubo esse tipo de história.
Não saio simplesmente contando a história do outro. Me coloco no papel dele. Foi comigo que aconteceu aquilo, não com ele. Com o tempo, passo a acreditar na minha própria mentira a ponto de contá-la ao dono do causo.
Minto pouco, se comparado aos mentirosos profissionais. Aqueles simpáticos, que, quando sentem que o papo vai murchando, tratam logo de inventar uma história boa pra passar o tempo _ não os que mentem pra contar vantagem, claro, que esses são do tipo mais comum e insuportável. Ariano Suassuna conta que o Chicó, aquele do Auto da Compadecida, existiu de verdade. Quando alguém começava muito a questionar-lhe as mentiras, retrucava: "Você quer ouvir história ou quer discutir?".
Tenho vários amigos mentirosos da melhor qualidade. Não vou citá-los aqui pra não acabar não acabar com a magia que os cerca. Por excesso de talento, os "acontecimentos" contados por eles chegam a ser irroubáveis. Explico: de tão absurdos, soariam ridículos se não saíssem da boca de profissionais.
Tem um camarada que trabalhou comigo no jornal que é assim: até o sobrenome dele é inventado. Basta fulano reclamar que uma pomba lhe cagou na cabeça pra ele desandar a contar o dia em que uma águia careca americana pousou na cabeça dele e botou um ovo. A descrição conta com tamanha riqueza de detalhes que, apesar de ninguém acreditar em nada daquilo, todos se espantam de ter passado 40 minutos ouvindo tamanha maluquice.
Para isso, porém, é preciso talento. Qualidade que não me veio de berço, mas que, com muito suor, pretendo conquistar. Aos 80 anos, quero ser um grandissíssimo mentiroso. Ando treinando, ainda timidamente, roubando uma história aqui, inventando uma meia verdade ali, exagerando mais um pouco acolá, quase nem se nota. Por isso, se você perceber que recontei uma história sua, tenha paciência com um mentiroso em formação. Um dia, passará despercebido.

quarta-feira, 24 de junho de 2009

Aspas

"Cresce-lhe a intracefálica tortura,
E de su'alma na caverna escura,
Fazendo ultra-epilépticos esforços,
Acorda, com os candieiros apagados,
Numa coreografia de danados,
A família alarmada dos remorsos."
Monólogo de uma sombra - Augusto dos Anjos

segunda-feira, 22 de junho de 2009

Humildade

Esqueça o papo bíblico, cristianismo, caridade. Ser humilde é questão de necessidade: canivete, lanterna, miojo, camisinha... tudo no mesmo estojo. Antes de cair/pular no abismo, vira questão de praticidade, mola propulsora, paraquedas, capacete ou pedra amarrada no pé, você escolhe. Tá certo, na infância, talvez seja um brinquedo sem utilidade. Roupa no aniversário, material escolar no Natal, lavar a mão, por que?, se a gente come com colher. Também, na adolescência, é coisa estranha, uma falta de elegância?, não, quem sabe uma excrecência?, é tanta confusão que não é justo cobrar coerência. É coisa que vem com a idade, apesar de soar, às vezes, de uma certa arrogância, sei lá, falsa magnânimidade, vai saber. A decisão é de quem vê. Podem achar que é pragmática distorção da realidade, o enganoso desprendimento do suicida. Para mim, tornou-se, depois de tantos sacolejos, o air bag da vida, a humildade.

segunda-feira, 15 de junho de 2009

Sorriso de fotografia

Érica passara a infância embelezando as bonecas, não por espírito maternal, mas como uma projeção de si mesma. Sabia que, assim que as pernas esticassem, os peitos crescessem, as curvas se fizessem no seu corpo, seria uma delas.
Talvez tivesse ficado assim por conta do elogio, aquele sempre e irritantemente repetido: “Parece uma boneca essa menina”. Nas fotos, forçava os sorrisos, dentes brancos brilhando, olhar no seu futuro. Quem a via posando dizia pra ser mais natural. Mas o resultado, revelado pelo papel, era sempre magnífico. Era como se não houvesse mais ninguém na foto, só ela, o Sol que transforma todo o resto em sombras.
Na puberdade, como previa, virou uma versão melhorada de todas as suas bonecas. Um corpo mais torneado que o da Barbie, um sorriso mais bonito que o da Susy e o cabelo mais liso que dos poneizinhos que vivia a pentear. Para namorado, escolheu o príncipe da escola. Roger, rico, lindo, bem-humorado e leal, ainda por cima um dos mais inteligentes.
Aos 20 e poucos, os dois se formaram e, naturalmente, veio o casamento. Uma festa que custou quase o preço do apartamento que compraram para morar. Eles formavam o tipo de casal que parece mais feliz do que é. Ricos, filhos lindos, ambos bem-sucedidos (ele como publicitário e ela como decoradora). A inveja, enfrentavam com desdém de quem nasce para estar lá em cima. Tanta perfeição, por vezes, beirava o marasmo.
Roger não tinha tempo para se entediar, já que sua vida fora do trabalho era apenas uma moldura. Érica trabalhava em casa por conta própria, às vezes, em dias muito lentos, tentava espantar o tédio. Outras vezes, o acolhia como um conhecido indesejável, porém, necessário. Não queria para ela aquela felicidade montanha-russa. Melhor que fosse assim, uma mansão com cercas eletrificadas no purgatório.
Sentada à beira da piscina, lia uma revista feminina que havia publicado fotos de uma casa decorada por ela. Já se habituara a ver seus trabalhos nas revistas: ela estava na moda. Em uma das páginas, uma matéria lhe chamou a atenção. Dizia: “Quem não sorri nas fotos, tem maior tendência a se separar”. O texto tinha uma entrevista com uma pesquisadora sueca que analisou o arquivo fotográfico de 1.750 casais durante dez anos. “Isso pode ser explicado por uma tendência à interiorização dessas pessoas, mais sujeitas a serem a afetadas pelas crises existenciais que culminam nos fins dos relacionamentos”, dizia a estudiosa Susan Shultz.
Érica fechou a revista e passou o dia todo inquieta, como se tivesse sido cutucada por alguém que se escondeu. De noite, jantou com o marido e os dois filhos. Depois, o casal fez o usual sexo confortável e burocrático que tanto a excitava.
No outro dia: os filhos na escola, o marido no trabalho, a empregada no mercado. Sentou-se na sala e, plam, deu de cara com a foto dela e de Roger no dia do casamento. Ela: com seu mesmo sorriso cristalizado. Ele: sério. Deu uma risada nervosa. Em seguida, abriu as gavetas de fotos e vasculhou tudo. Nada, nenhum sorriso. Roger era uma estátua de gelo nas fotos, apesar de ser tão sorridente no dia a dia.
Pegou o carro e correu para a casa da sogra. Na infância, havia de resgatar um sorriso que fosse. A mãe de Roger estranhou o pedido das fotos, sob o pretexto ridículo de que ela pretendia digitalizá-las, mas emprestou todos os álbuns fotográficos em que o filho aparecia.
Não era nem hora do almoço e Érica já se encontrava chorando loucamente, cercada por milhares de fotos, no sofá da sua sala. Passou meses em depressão, mas se recusava a contar o motivo de tanta choradeira. A pedido do marido, passou a fazer análise. Com isso, vieram os anti-depressivos, que só serviram pra lhe diminuir ainda mais o apetite sexual.
Só contou seu drama à melhor amiga, Jaqueline, fotógrafa.
_ Acho que essa teoria deve ser mais uma dessas bobagens, coisa de revista de mulher. Eu trabalho em uma, sei como é _ disse Jaqueline. _ Tá, mas posso te ajudar.
_ Como?
_ Não vou adiantar, não, quero ver se vai dar certo antes. Pode deixar comigo, só preciso das fotos. Daqui uma semana, trago tudo pra você.
Jaqueline cumpriu a promessa. Uma semana depois, trouxe tudo de volta.
_ Pode olhar _ disse, entregando uma grande caixa de papelão à Érica.
Ela rasgou a caixa, depois de se atrapalhar para abri-la, e se pôs a ver as imagens, uma a uma. Em todas elas, Roger sorria um sorriso de galã de cinema. Sorriso idêntico ao dele, aquele que nunca havia sido fotografado.
_ Amiga, eu te amo tanto! Como você fez isso?
_ Foi trabalhoso, mas simples. Do mesmo jeito que a mulherada sai nas revistas sem celulites, estrias, peito caído. Não tem segredo. Tudo pra manter seu casamento liiiindo, gata!
Roger chegou cansado naquele dia e nem deu bola para Érica, toda arrumada, sorridente e ronronante. Ela não ligou para o desprezo: acontecesse o que acontecesse, de agora em diante, seriam completamente perfeitos, sem nenhuma rachadura ou cicatriz que pudesse separá-los. Mais que amor, queria segurança. Mais que isso: perfeição com seguro quitado.
Em uma festa badalada, à qual Roger havia se recusado a ir e só mudou para fazê-la parar de chorar, foram fotografados para uma coluna social. Ela, tão preocupada com o sorriso do marido, pela primeira vez na vida saiu feia numa foto _ mordendo os lábio inferiores, os olhos um tanto tortos mirando o sorriso de Roger. Afinal, uma foto no jornal era uma evidência pública de um futuro divórcio.
Fato inédito: no dia seguinte, ela pegou o jornal correndo sequer olhou pra si. No rosto do marido, aquele lindo sorriso. Roger chegou em casa e viu o jornal em cima da mesa, follheou, não falou nada. No jantar, olhava fixamente para ela.
_ O que foi? Você está olhando tanto?
_ Nada, amor, você viu nossa foto no jornal?
_ Vi. Naquele dia tão tenso, você com esse sorriso tão lindo...
_ Sempre sorrio nas fotos. Só você olhar nos álbuns _ ele respondeu, para depois ficar calado a noite toda.
Ele não conseguia tirar da cabeça aquela foto. Passou a olhar, a todo instante, o rosto de Érica, sem nada dizer. Vez por outra, num descuido dela, encontrava a mulher da foto. Depois da curiosidade inicial, começou o desconforto. Passou a evitar olhar para ela. Já esquecida daquela baboseira dos sorrisos de fotografia, Érica não percebeu nada de estranho, achava que era uma nova onda de paixão do marido, a persegui-la com o olhar o tempo todo.
Marcela apareceu na vida de Roger numa campanha publicitária para uma marca de pasta de dente. Era a mulher com o sorriso mais lindo que ele já vira. Começaram a sair, a coisa ficou séria e, meses depois, eles estavam morando juntos.
Roger não soube explicar o motivo do rompimento para Érica, mas, durante a derradeira discussão, teve certeza. Tensa, chorando, com tiques nervosos, Érica era uma estranha. Para ele, permanentemente, uma estranha: a mulher dos olhos tortos que mordia os lábios na foto da coluna social.

sábado, 13 de junho de 2009

A formiga e o menino

O menino vê a formiguinha carregando uma folha para o formigueiro. Pega uma régua e coloca na frente dela. Distraída, ela sobe e nem percebe que o garoto virou a régua para o lado oposto.
Quando se dá conta que o formigueiro que estava tão perto sumiu de vista, o inseto, confiante, acelera o passo rumo ao desconhecido.
Mesmo perdida, é tão arrogante essa formiga, caminhando rápido e sem olhar para trás, pensa o moleque. Para dar uma lição nela, pega um copo d'água, abre a torneira apenas por um segundo e despeja um pouco do líquido no caminho dela. O inseto vê aquele mar à sua frente e quase morre afogado, mas contorna o obstáculo, agora cheio de cautela.
Anda devagar demais, é muito medrosa essa formiga, conclui o menino. Ele joga mais água, dessa vez, atrás dela. A formiga deixa a folhinha que carregava pra trás e acelera o passo, penando para não ser engolida por aquele tsunami.
Abatida, após escapar do perigo, ela para e descansa um pouco. Já não tem mais sua folhinha e a caminhada para o formigueiro se fez desnecessária. Inútil que é, melhor seria ficar por ali mesmo.
Uma porção de açúcar, despejada à frente dela, consegue reverter o estado de desânimo. Ela se esbalda de tanto comer e continua seu caminho. Após algum tempo, vê mais um oásis de açúcar. Mesmo carregando sobras do dulcíssimo banquete recente, se põe a comer de novo tão afoita que só percebe que está devorando sal quando começa a arder todinha.
Quase desiste de sua jornada de novo e o faria certamente se o menino não colocasse mais um montão de formiguinhas passando por ali, pertinho dela. Percebendo sua semelhante tão abatida, uma delas passa a carregá-la. A formiguinha se recupera e permanece no lombo da outra, sossegada, junto com um farelo de casca de pão. Fica tão acomodada que adormece e acaba num formigueiro desconhecido.
Só acorda prestes a virar o prato principal de um almoço promovido pela sua salvadora, que é interrompido porque um terremoto, causado pela pisada firme do pé descalço do moleque, destrói o insólito formigueiro canibal.
A formiga sai desorientada dos escombros e continua sua jornada, sem saber direito para onde está indo. O menino vai para casa e se esquece da formiga. Cresce. Um dia, desses difíceis e demorados, com um copo de cerveja quase quente na mão, sozinho em uma mesa de bar, descobre que, mesmo ainda sendo jovem e com tanto para viver, há muito deixou de ser aquele garoto. O menino existiu algum dia? Tinha apenas uma certeza: agora, ele é a formiga.

quinta-feira, 11 de junho de 2009

Entre microfones e bocejos...

Um avião caiu em cima da minha aposentadoria. Novamente, aqui estou no circo, cercado por microfones da CNN, AFP, FDP, PCC... Mudam as siglas, mas a rotina continua a mesma.
Dezenas de jornalistas amontoados em um canto, esperando que os porta-vozes da tragédia aérea soltem migalhas de notícia entre o "bom dia" e o "obrigado". Algumas menininhas da TV cuidando mais da maquiagem que da matéria e outras, decorando suas falas em voz baixa. Os cinegrafistas brigando entre si e xingando o primeiro que ousar passar pela frente da sua santa imagem. Os fotógrafos, ostentando suas máquinas fálicas, jogando xaveco pra cima das estagiárias. Os motoristas dando palpites sobre o imponderável. E eu, lá vou eu novamente.

terça-feira, 2 de junho de 2009

O louco



O louco é o inocente que passa distraidamente pelos mais diversos perigos e sempre sai ileso, protegido que é das divindades (principalmente de Dionísio, o deus do vinho, da arte, da luxúria). Idealista, canta seus amores pelas ruas sem dar a mínima para o que pensam os outros. É evocado pelos fiéis amantes apaixonados em fuga e, ao mesmo tempo, pelos libertinos do sexo livre. O bobo de Shakeaspeare é o único que só diz a verdade, em uma corte em que um olhar atravessado pode levar à morte. Força da natureza que é, o louco ou o bobo, como quer que o chamem, não tem medo de nada por não saber o que é o perigo. Está à beira do abismo, prestes a dar o grande salto para outra dimensão.

domingo, 31 de maio de 2009

Nossos felizes eus virtuais, com seus sorrisos fresh

É como se, fazendo careta, olhássemos no espelho e estivéssemos sorrindo. Nossa vida virtual (Orkut, Facebook, Twitter, blog) é, muitas vezes, o retrato do que gostaríamos de ser, mas não somos, pelo menos não na maioria do tempo. Isso explica a quantidade de sorrisos e, mais, sorrisos de casais felizes, no Orkut. Não que eu seja diferente. Minha foto do Orkut é uma figura sorridente, em frente uma praia paradisíaca. Talvez eu tenha sido aquela pessoa alguma vez, mas com certeza não sou ela o tempo todo. Meus dias são muito diferentes dos daquele cara. Ele, com certeza, a essa hora está naquela mesma praia, com aquele mesmo sorriso, preparando-se para tomar cerveja e petiscar. Talvez, ao contrário de mim, ele faça exercícios regulamente e até mesmo saiba surfar. Eu, por minha vez, acabei de acordar e estou no meu quarto, em um domingo, escrevendo esse texto. Não estou sorrindo, pois a alegria desse meu outro eu em nada influencia a minha vida. A tristeza dele, pelo contrário, provavelmente me soaria cômica e algo de dolorosa: riria se na foto ele estivesse escorregando em uma casca de banana e, possivelmente, teria resquícios da dor nas costas dele. Se pudesse ler meus pensamentos como leio os dele, meu avatar estaria certamente pensando por que perco meu tempo nesse tipo de raciocínio com uma praia tão linda tão perto desse quarto em que estou. OK, talvez ele é quem saiba viver.

sexta-feira, 29 de maio de 2009

O lendário tio Quim

Quem via ele assim, sorridente, baixinho, a barriga que mal se continha dentro da camisa quase sempre abotoada errado, não imaginava que fora um lendário ponta-direita da várzea do Tatuapé. Diziam, até, que na época de moleque, enquanto os outros trocavam a bola facilmente pelo rabo de saia, ele era o mais fiel de todos ao objeto de adoração, não largava ela por nada. (Mais tarde ele confessaria quem quisesse ouvir que não era mesmo “muito metelãozinho” nessa época, embora tenha tido quatro filhos, um deles depois dos 40 anos).
Tio Quim me ensinou muitas coisas, a primeira delas foi jogar futebol. Não que eu tenha aprendido tudo que ele tivesse a ensinar, mas aprendi mais do que meu talento permitia. Aos 9, 10 anos, eu era o grosso do time, mal sabia se chutava com o pé direito ou esquerdo. Íamos eu, ele e um dálmata que não me lembro o nome, mas que me parecia um sujeito muito simpático, treinar no parque Sampaio Correia, na Vila Carrão. Sem tirar o cigarro da boca, dizia: “Fio, hoje em dia é diferente, não basta ter habilidade, o principal é ter condição física”.
Tempos depois, se não era um craque, eu já havia assumido o espírito do antigo firuleiro da várzea. De tanto treinar com o pé errado, acabei ponta-esquerda, destro com as mãos e canhoto com os pés. Não passava mais vergonha com a bola, embora meu fôlego deixasse a desejar.
Não foi à toa que minha paixão pelo futebol acabou perdendo cada vez mais espaço para minha vocação para a boemia. Nessa mesma época, tio Quim não podia beber em um evento familiar e me levou para um boteco desses bem fuleiros, onde botou um copo de cerveja na minha frente e uma porção de petiscos nada apetitosos, ovos coloridos, salsichas suspeitas, picles duvidosos; engoli a comida o mais rápido que pude e bebi a cerveja de um gole só. “Fio, bebedor tem que tomar devagar e petiscar, senão passa mal e acaba passando vergonha”, advertiu o tio, tomando seu copo de cerveja quente, assim como fazem esses sujeitos da Irlanda e da Alemanha.
Durante essa mesma conversa, outro ensinamento: além de petiscar enquanto bebia, não se devia ser puxa-saco de chefe, que era a pior raça que existia. Admito que, muitas vezes, não sigo o primeiro conselho e acabo trançando as pernas, mas esse último nunca deixei de seguir. Torneiro mecânico, o tio deve ter sido o pesadelo dos encarregados carreiristas, mas, para nós, sua profissão era deveras útil, já que nos garantia trofeuzinhos de metal feitos por ele para os torneios de futebol de botão.
Descobri depois de velho que ele estudava a árvore genealógica da minha família, os Rodrigues Rocha. Por meio das pesquisas dele, sempre muito contraditas pelos parentes que sonham ser descendentes de príncipes e nobres, descobri que nosso antepassado foi um feitor de uma fazenda de escravos. Talvez aí esteja o motivo para não sermos puxa-sacos: não repetir o erro desse infeliz ancestral.
Pouco vi o tio Quim depois de adulto, mergulhado no trabalho e em tantas outras coisas da vida, mas, a cada vez que via, preferia enxergar aquele do copo de cerveja quente na mão e das histórias sobre o futebol bonito dos campos de terra, embora ele já não pudesse mais nem beber nem fumar. Por não poder mais viver muito de uma só vez, como estava acostumado, parecia minguar, quietinho no seu canto.
Esses dias foi o enterro do tio. Por estar a mais de dois mil quilômetros de São Paulo, não pude ir. Mas tenho certeza que, assim como aconteceu comigo, por um momento que seja, filhos e sobrinhos lembraram com alegria como é importante um tio Quim na vida de um menino.

quinta-feira, 28 de maio de 2009

Retrato falado


Depois de várias horas de trabalho exaustivo, o mais parecido que consegui ficar comigo mesmo foi isso. Quem quiser tentar fazer o seu retrato ou o de algum criminoso com quem trabalha ou frequenta o boteco pode tentar a sorte no http://flashface.ctapt.de/. Tirei a dica do blog http://williampaiva.wordpress.com/.



terça-feira, 26 de maio de 2009

Rios, pontes e overdrives ou observações clichê de um migrante desocupado

Ponte Santa Isabel, Capibaribe
Barra Funda, Tietê


Chove no Recife, e eu não tenho nada o que fazer. O rio Capibaribe fica cheio até a borda, muito mais bonito, compensando as enchentes que, provavelmente, se espalham pela cidade, cercando amigos e inimigos.

Todo mundo diz o mar, mas o que me encanta aqui é mesmo o rio _ com as pontes, claro. De onde eu vim, o maior rio, o Tietê, foi transformado num riacho forrado de cimento. (Uma estrangeira chegou a me perguntar como era o nome do córrego que ficava na marginal. Ahn?).

As pontes do Tietê não são simplesmente pontes, são viadutos, com alças de acesso, saídas mil, um monte de concreto suspenso para caber mais carros, uma obra de arte voltada a construir o maior engarrafamento do mundo.

Aqui, são quase todas as mesmas construídas sei lá quantos séculos atrás, bonitas, vistosas; suas luzes refletem na água durante a noite. Têm um objetivo claro: chegar de um lado a outro, sem o perigo de pegar o acesso errado e voltar para onde se vinha.

Tem quem pegue um pedaço de fio de náilon e arremesse do alto da ponte, sente-se no parapeito e espere algum peixe distraído. A molecada, mesmo sabendo que é sujo, salta lá do alto e sai nadando, contente que só.

Quando alguém pula no Tietê, aparece no jornal. Um dia um bombeiro salvou um moleque que pulou lá dentro. Todo mundo imaginou que eles fossem derreter naquela vitamina batida com venenos industriais e bosta de 10 milhões de pessoas, mas eles saíram vivos. De qualquer maneira, foi um acontecimento.

Agora o rio, mesmo que ficasse limpo, nunca ressuscitaria, perseguido que é por aquele cortejo maluco de um milhão de carros-dia. (Tenho um amigo aspirante a ditador de SP que, em seu primeiro ato, demoliria a marginal e devolveria ao rio o seu traçado original. Talvez assim haja esperança...)

Por enquanto, não há marginal que meta medo no Capibaribe. Que ele continue sempre, como reza o clichê pernambucano, se juntando com o rio Beberibe para formar o mar, quer dizer, o Oceano Atlântico.

domingo, 24 de maio de 2009

Ela, a única

Quase morri várias vezes. Cada uma delas serviu para dar um valor ainda maior à vida que sobreviveu e, paradoxalmente, um medo cada vez menor da morte. A morte, besta ou épica, tropeção no chuveiro ou agonia prolongada em um leito antisséptico, é certa. A vida, incerta por natureza, se torna muito mais preciosa quando chega perto do fim e volta, por instinto ou quem sabe missão, rumo ao tempo que lhe resta, superiora, serena, cosmopolita. Incrédulo que sou, nego em público fenômenos mais poderosos, mas sou tentado a acreditar em destino. Se sobrevivi a tantas mortes, não posso deixar de pensar que ainda não desperdicei todas as oportunidades a mim reservadas. Uma certeza pétrea me diz mais: que as outras mortes que quase morri eram apenas afagos, sinais mandados pela verdadeira, a que me consome desde que nasci, a que tem meu nome gravado na pele.

sexta-feira, 22 de maio de 2009

A Bíblia como ela é... (vol.1)

Assassinato, infidelidade, incesto e outros temas rodrigueanos, em forma de texto sagrado

GÊNESIS 19
"Ló subiu de Segor e foi morar nas monhas com as duas filhas, pois tinha medo de ficar em Segor. Instalou-se em uma caverna com as duas filhas. E a mais velha disse: 'Nosso pai já está velho e não há aqui homens com quem nos possamos nos casar, como faz todo mundo. Vamos embedar o pai com o vinho e dormir com ele, para ter filhos dele'. Embebedaram o pai naquela noite e a mais velha foi dormir com ele sem que ele nada percebesse, nem quando ela deitou nem quando se levantou. No dia seguinte, a mais velha disse à mais nova: 'Ontem dormi com o pai. Vamos embebedá-lo também esta noite e tu vais dormir com ele para gerar descendência de nosso pai.'. Também naquela noite embeberam o pai e a mais moça dormiu com ele. Ele porém nada percebeu, nem quando ela se deitou nem quando se levantou. Assim as duas filhas de Ló conceberam de seu pai."

terça-feira, 19 de maio de 2009

Os casais e os grandes temas da humanidade - volume 2

_ Amor, quero um pudim, você quer um também?
_ E eu lá sou homem de pudim, homem que é homem não pede pudim no restaurante...
_ Tô descobrindo que você é muito machista...
_ O homem tem que ser machista nas pequenas coisas e humanista nas grandes. Quero um café.
_ Garçom, traz um pudim e um café, por favor.
Garçom chega com pudim e café. Sem perguntar, coloca o café para ele e o pudim para ela.
_ Tá vendo como homem não pede pudim, se eu pedisse ia ficar feio falar pro garçom: "Não, o pudim é meu e o café é dela".
_ Que besteira! Pudim é muito bom, não sei o que seria da minha vida sem ele.
_ Pudim não tem importância nenhuma, quer ver?
_ Lógico que tem!
_ Se você tivesse de escolher uma coisa pra existir, a outra simplesmente desapareceria, ia escolher pudim ou café?
_ ... café.
_ Azeite ou pudim?
_ ...azeite.
_ Quer que eu continue?
_ Por que você tá implicando tanto assim com o pobre do pudim?!
_ Sei lá... princípios?

quinta-feira, 14 de maio de 2009

Em breve, nas livrarias...

Trecho de um conto que estou escrevendo, que só não posto na íntegra aqui porque tem 10 páginas e, espero eu, estará ainda este ano no meu primeiro livro:

Durante a minha busca, várias vezes desisti de viver. Pulei de cima de um prédio de 50 andares e só o que consegui foi causar um tremor na cidade. Mordi fios de eletricidade e dei tiros na cabeça, me enforquei e tentei cortar meus pulsos, tomei veneno e passei fome por meses. Minhas tentativas de suicídio pareciam cenas de desenho animado, o gato que engole uma bomba e só fica chamuscado, PLOW. Não tenho calcanhar de Aquiles nem a criptonita do Super-Homem, sou todo fraqueza na minha armadura indestrutível.

segunda-feira, 11 de maio de 2009

Monopólio da alma

Quis parar o avião no céu para ser infinito entre a despedida e o reencontro. Para que as lágrimas de um e a expectativa de outro fossem para sempre. Primeiro, uma dor tão grande que fizesse desmaiar. Depois, uma cicatriz gravada na pele das gerações das gerações. Para que o amor não amarelasse e desbotasse na água turva da realidade. Para que o sofrimento ficasse em carne viva mesmo depois de morto. Os outros cento e tantos passageiros, certamente, não compreenderiam. Gritariam enquanto voavam pelos ares. Chamariam entes queridos e esbravejariam com deus que, mesmo tão perto deles, nada faria. Sabia que não poderia paralisar as turbinas com a força da mente. Se quisesse se aconchegar na inação, teria de agir rápido. Quem sabe seqüestrar o avião? Leva-lo-ia a um furacão bem charmoso, um triângulo das bermudas voador, e sumiria. Fingiria-se de terrorista para se sagrar salvador. A mãe desmaiaria e o pai tentaria permanecer calmo, enquanto buscava as informações que nunca chegariam. A mulher esperaria por muitas horas até saber do misterioso sumiço. Vestiria, então, um luto esperançoso que nunca conseguiria enterrar no armário. Talvez, com uma peça de roupa bastante usada, fizessem um enterro, com o objetivo de sepultá-lo no esquecimento. Isso não adiantaria. Os filhos, ainda pequenos, guardariam em alguma gaveta secreta da inconsciência o endereço do pai, mas não contariam a ninguém. Mais tarde, se tornariam pais e avôs e, então, procurariam em vão aquele oásis perdido no meio do céu. Precisava agir rápido antes que o comandante deslizasse o manche e as aeromoças passassem para conferir os cintos afivelados. Piscou os olhos e o momento havia passado. Também ele esqueceria, já não fazia mais sentido, tinha pressa de levantar para não ter de enfrentar o congestionamento de malas e homens, queria pisar no chão de novo. Conformou-se, afinal, que só o corpo é imortal, em filhos, vermes, parasitas, amebas, plantas, carbono, carbono, mais carbono, se renova, infinitamente, em tudo, menos em sonho, monopólio da alma, eterna em sua finitude arrogante de Ícaro batendo suas asas líquidas rumo ao precipício incandescente da lembrança mais que fugaz.

terça-feira, 5 de maio de 2009

Humano, demasiado...

Se já não posso ser mais guilhotina, marreta, violão, bicicleta, escavadeira, máquina de escrever, relógio, computador, devo voltar a ser homem? Meus genes ancestrais lembram como se faz, mas, acostumados a serem engrenagem, talvez tenham preguiça de voltar à sua natureza de microinteligência evolutiva. Enquanto eles não se decidem, passo meu tempo abrindo caixas misteriosamente luminosas e dando atenção a todas essas vozes que, súbitas, desatam a falar futilidades nos meus ouvidos. Até quando, até quando, pergunto ao fantasma do deus morto que, fingindo dores causadas pela faca há muito cravada e fossilizada no peito, me persegue. Mesmo sendo só espectro do passado, mera imaginação de si mesmo, ele não desceu do salto e, altivo, continua a ignorar meus apelos, como fazia em seus tempos de glória.

segunda-feira, 27 de abril de 2009

Eu e a biblioteca do meu pai

Não sei ao certo qual foi o primeiro. Lembro-me vê-los, todos eles, espalhados pela casa desde pequeno. Usei-os, primeiro, como suporte para subir em lugares mais altos, proibidos para alguém com tão poucos anos de vida. Livros para mim, nessa idade, tinham o mesmo valor de pratos, copos, baldes, vasos, escadas, sofá...
Lembro-me das histórias de Branca de Neve e Gato de Botas, mas, sei lá, não me emocionavam. Além disso, na minha visão de quase bebê, as histórias eram uma coisa e aqueles objetos que meus pais seguravam enquanto as contavam eram outra, quase um enfeite.
Tinha uns cinco anos quando, pela primeira vez, me dei conta que as histórias e os livros não sobreviveriam um sem o outro. A capa do volume que meu pai segurava, alaranjada, com uns porquinhos fazendo sei lá o que, parecia muito infantil. E foi assim, como se tratasse de uma história para crianças, que meu pai leu para mim a saga do porco Napoleão e seus seguidores em "A Revolução dos Bichos", de George Orwell.
Muito mais tarde, reli o mesmo livro, dessa vez com meus próprios olhos, e descobri que a fábula era coisa de gente grande e falava sobre a visão do escritor da luta de classes e do totalitarismo que dominaria boa parte do século 20.
Eu, a única criança da pré-escola que tinha uma história de gente grande na cabeça, fui aprendendo a ler muito antes de todos os outros. Treinava com os anúncios publicitários que passavam voando pelas janelas do carro. Lá estava eu, dizendo Calçados Romão, Suvinil, Antártica e qualquer outra palavra que visse em outdoors espalhados pelo bairro do Tatuapé, em São Paulo, onde fui criado até a adolescência. Quando as outras crianças escreviam "O violão é do vovô", rabisquei no meu caderno, para espanto da professora, "Eu sou um ás do rock and roll" (OK, talvez tenha escrito rock and roll errado).
A minha pressa em ler tinha um objetivo claro: poder explorar a então vasta biblioteca do meu pai. Não demorou muito para que isso acontecesse. Aos oito anos, enquanto as professoras passavam textos de meia página para os alunos lerem, eu mergulhava em um livro de mais de duzentas páginas.
A capa dura com o detetive e seu cachimbo me chamou a atenção. Então, puxei da prateleira sempre empoeirada "As aventuras de Sherlock Holmes", provavelmente o melhor obra de Arthur Conan Doyle, que narra o encontro inicial de Sherlock com seu escudeiro Watson (aquele, do "Elementar, meu caro Watson").
A escolha do meu primeiro livro, desconfio, foi um dos fatores que, mais tarde, me levaria a optar por ser repórter policial, área muito menos glamurosa do que eu ingenuamente imaginava, com base na Londres de Sherlock e na Scotland Yard.
O tempo voou e eu, como traça faminta, devorei todos os livros daquela biblioteca que sempre me parecera infinita. Fui buscar nos sebos, com a pouca grana que tinha, a minha própria coleção de livros, hoje razoável, mas que nunca vai ser infinita como foi a do meu pai na minha época de menino.

terça-feira, 21 de abril de 2009

Casais e os grandes temas da humanidade - volume 1

_ ... inclusive um filósofo ateu afirma que a religião pode até ajudar o indivíduo, mas que a coletividade é obviamente prejudicada, já que milhões e milhões já morreram em guerras religiosas.
_ Isso só pode ter sido dito por alguém que nunca pisou numa igreja, que não sabe qual é o papel dela na comunidade. Os padres hoje em dia não queimam mais pessoas. Veja o exemplo dos padres brasileiros, Dom Helder Câmara...
_ Mas já queimaram! Se acabaram com o partido no Hitler depois do holocausto, faria sentido acabarem com a igreja católica que matou muito mais.
_ O problema é que você e esse filósofo ateu tiram tudo do contexto histórico, a igreja é dos homens e falhou, mas não é isso que diz a religião.
_ Até hoje, nunca a igreja seguiu o Jesus disse, já que se encheu de dinheiro e Jesus odiava os ricos. Mas até Ele tinha falhas nos discursos, porque aceitava a escravidão e até dizia para os escravos serem bons com seus donos.
_ Escravidão naquela época era diferente... os escravos tinham suas casas e eram pagos. Os donos que não tinham dinheiro para pagá-los tinham de libertá-los.
_ Duvido muito dessa ética com os escravos, mas mesmo assim não se justifica apoiar a escravidão.
Silêncio.
_ Além do mais, esse papo de juízo final, mortos ressuscitarem, anjos e um monte de gente fazendo milagres é muito furado...
Silêncio.
_ Por que só faziam milagres antigamente? Agora ninguém mais faz nenhum, né? Assim é fácil.
Silêncio.
_ O que foi, você ficou brava, amor?
Silêncio.
_ Hein? Hein?
_ Não, só tô aqui rezando pela sua alma depois de tantas blasfêmias...

segunda-feira, 20 de abril de 2009

Ócio

Vem, primeiro, a catarse. Passa-se horas de chinelo na rede dando risada de tudo e, principalmente, de todos que estão em movimento. Mais tarde, o tédio chega rastejante e toma conta de tudo. O que fazer, afinal, se não há nada para fazer? Você fica dando voltas pela casa despenteado e de pijamas, troca o dia pela noite, toma café demais e, acredite, até procura emprego! Só então que, aos poucos, vai se instalando a paz. Cria-se uma rotina. Seu cérebro volta a funcionar paulatinamente e você pode usá-lo como bem entender. A única coisa que, fatalmente, estraga o dia é a gradual ausência dele, o dinheiro, que derrete nos seus bolsos até não deixar mais rastro. Aí é a hora de fazer a escolha: você voltará a trabalhar pra ele?

quinta-feira, 16 de abril de 2009

Transmimento de pensação na horizontal

"Torna-te quem tu és."
Nietzsche

"Ouse, ouse... ouse tudo!!
Não tenha necessidade de nada!
Não tente adequar sua vida a modelos,
nem queira você mesmo ser um modelo para ninguém.
Acredite: a vida lhe dará poucos presentes.
Se você quer uma vida, aprenda... a roubá-la!
Ouse, ouse tudo! Seja na vida o que você é, aconteça o que acontecer.
Não defenda nenhum princípio, mas algo de bem mais maravilhoso:
algo que está em nós e que queima como o fogo da vida!!"
Lou Salomé

terça-feira, 14 de abril de 2009

Um predador no jardim

Me surpreendeu o alecrim, que era o mais triste de todos e parecia definhar. Fumava eu um cigarro deitado na rede, quando percebi que ele havia entortado seus galhos finos e os apontava em direção ao sol.

As rosinhas, mais liláses que vermelhas, se acotovelam para conviver nos mesmos ramos. A primeira a nascer jaz na terra do vaso, em pedaços, ao passo que outros nove botõezinhos brotam cada um a seu tempo.

A romã salta pelos ares, apesar do arame que, em vão, tenta lhe conter o crescimento.

A hortelã, a mais esperta de todas, se espalhou no vaso logo que chegou. Um ser misterioso, no entanto, fulminou a pobre. Primeiro, um raminho apareceu jogado no chão. Depois, outro. Hoje de manhã, havia apenas o vaso com terra, nem rastro da muda que chegou a ser a mais precoce do jardim.

O predador, porém, não se atreveu a chegar perto do vizinho, o pé de pimenta. Esse sim é forte e dá à luz feito coelho. Chegou tão carregado de pimentinhas vermelhas que enchi um pote com elas e fiz molho. Mal acabei a colheita e pézinho se pôs a parir mais e mais frutos. Uns estão verdes e outros já puxam para o avermelhado.

Mas não convém mudar de assunto diante de tão grave situação. Essa noite, colocarei a isca e ficarei por perto destilando meu ódio contra o invasor do meu jardim. Seja lagartixa, duende ou espírito zombeteiro, seu destino será doloroso.

quarta-feira, 8 de abril de 2009

Parto de arma

Entre vísceras e pólvora
Ela pariu um revólver fumegante
Mesmo carregado, chorava que chorava
Mas era um bebezinho lindo
Uma tez tão lisinha e brilhante
Que chegava a refletir o rosto de quem passava
Emocionada, a mãe deu um beijo no rebento
Que, entre o chorar e o soluçar,
Vomitou-lhe uma rajada de fogo
Bem no meio da cara
O berreiro foi tamanho
Que acordou todo o hospital

segunda-feira, 6 de abril de 2009

Falta de sol

Depois de 33 dias e 32 noites de sol, o céu amanheceu cinzento. A bola de fogo fumegante, que parece nascer e morrer parada em frente à minha janela, não está mais lá. Também não tenho curiosidade em saber onde foi parar.
Ouvi dizer que as ruas ficaram cheias d'água de manhã, quando eu dormia ao som do barulho da chuva. Torci em silêncio para que os construtores que derrubaram todas as casas e construíram prédios no lugar sujassem seus sapatos com pelo menos um pouco da merda que emergiu por culpa da rede de esgotos que eles ajudaram a saturar.
Apesar do sumiço do meu caloroso e iluminado companheiro, o único casaco que trouxe quando me mudei para essa terra quente permaneceu no armário.
Não, a falta de sol também não impediu que eu passasse o dia todo descalço e sem camisa, usando apenas uma bermuda.
Minhas divagações terminariam por aqui, não fosse pela luz conhecida que começa a sair pelas brechas das nuvens cada vez mais secas.
Parece que o astro mais paparicado da galáxia volta ao meu encalço, justo eu, que nunca fiz muita questão da presença dele. Às vezes, esse excesso de atenção me sufoca.

quarta-feira, 1 de abril de 2009

Apaga, assim, sem mais nem menos

Senhores vendedores de cursos de memorização, uni-vos, façam suas propostas, entupam minha caixa de e-mail e congestionem meu celular. Eu, o abaixo-assinado, cansei de esquecer tudo que eu quero lembrar e de lembrar de tudo que não me interessa.
Não, não são apenas os vencedores de todos os BBBs (que eu não assisto!), sei de cor o nome dos namorados das celebridades e subcelebridades. Isso não seria tão ruim se até hoje, aos 28 anos, tivesse conseguido decorar um micro-reles-qualquer trecho livro.
Olha que eu leio de tudo e o tempo todo. Minha biblioteca razoavelmente respeitável. Escolho bons livros e bons autores. Mas não, não adianta, fatalmente lembrarei que um fulano chamado Felipe Simão namora com a Luana Piovani e esquecerei exatamente tudo que li recentemente em Ascensão e Queda do Império Romano.
Sim, às vezes, leio idiotices em sites de celebridades. Sim, eu entro em links de notícias do tipo "Winona Rider vai à praia com novo namorado" ou "Sury Cruise corta o cabelo". Desculpe, Senhor, mas eu mereço tamanho castigo pela minha sede de informações inúteis?
Agora mesmo, para mostrar boa intenção, estou lendo as partes que havia pulado da Bíblia. O fato é que me dei conta que nem a Vossa Palavra para na minha cabeça de pouca fé. Troco Moisés por Abraão, Caim por Abel, Eva por... bom, Eva eu não esqueço porque não tem por quem trocar.
Isso me lembra (milagre!!!) um conto de Jorge Juis Borges, chamado Funes, o Memorioso. Trata-se de um sujeito que lembra tudo que ele faz e por onde passa - cada mínima variação de gesto ou quantas folhas há nas árvores. Resultado: Funes não vive e passa a vida se lembrando de coisas idiotas.
Mas, Funes, tranquilize-se. Mais trágico é meu destino, que em vez de contar os grãos de areia da praia faço contas mais reles, do tipo Britney Spears tem DOIS filhos de um cara chamado Kevin Federline, seu PRIMEIRO marido.
Ah, eu sei que ninguém perguntou, mas de repente lembrei que Lourdes Maria, Rocco e David Banda são os nomes dos três filhos da Madonna!
Senhor, tende pena de mim e me faça lembrar um trechinho do Apocalipse para eu soltar no meio de uma briga conjugal, vai...

segunda-feira, 30 de março de 2009

Quando cada letra vale a pena

Há os que escrevem porque têm o que dizer e os que escrevem apenas por escrever. O conceito, simplificado de um artigo do meu xará Schopenhauer, sempre fica martelando na minha cabeça quando leio alguma coisa. Isso ocorre de forma ainda mais intensa quando o livro que ocupa meu tempo é de Herman Hesse.

Quando se lê O Lobo da Estepe, Sidarta ou Demian, é inevitável pensar quantos livros já foram escritos sem motivo algum, sem nada o que dizer, apenas por capricho do escritor. No jornalismo, eu mesmo já colaborei muito para aumentar o número de árvores derrubadas contando histórias que não faziam diferença para ninguém.

Livros que têm o que dizer são límpidos como água. Não há caprichos ou palavras sobrando. São apenas o que são, boas histórias contadas por quem realmente pensou muito para escrevê-las.

Terminei ontem de ler Demian. O livro, escrito em 1919, trata do relato da juventude do confuso Emil Sinclair e sua relação com Max Demian, rapaz pertencente a um grupo cuja a filosofia se baseia na crença em um deus que aceite o bem e o mal, isto é, que tenha em si também o demônio.

O precursor dessa facção, segundo a crença, teria sido Caim. Daí os pertencentes desse grupo possuírem, na testa, a marca de Caim.

O que a princípio soa como simples rebeldia juvenil se mostra uma ode humanista ao individualismo e até mesmo um prenúncio das tragédias que ocorreriam na Alemanha muito depois da publicação de Demian.

Ps. Encontrei a íntegra livro na internet.

quinta-feira, 26 de março de 2009

A lança de Deus

A menina está assustada. Tenta brincar com a boneca, mas não consegue parar de tremer. Bate na boneca. Abre as pernas da boneca e bate. Está muito claro ali. "Essa janela! Essa lua", pensa a menina, brava.
A menina não gosta da claridade. Ela quer ficar no escuro. Não quer que a vejam. O colchão está frio. Não. Está úmido. Ela sente o vestido, curto demais para ela, todo molhado, embaixo.
A menina abraça a boneca e diz: "Minha filhinha, eu te amo tanto..." Respira fundo e sussurra bem baixinho no ouvido do brinquedo: "Eu te amo tanto. Por que você não quer brincar comigo?" Então, ela começa a tirar a roupa da boneca. Um vestidinho florido. Tira também o lacinho cor-de-rosa da cabeça quase careca e dá um beijo, babado.
"Não precisa ficar com vergonha de mim", diz baixo. "Eu vou cuidar de você. Só vou te dar carinho", fala, passando a mão no rosto da boneca.
Sente uma dor na barriga. O vestido está cada vez mais úmido. Úmido e quente. Ela treme. Seus dentes batem, um no outro. Ela abraça a boneca e diz que nunca mais vai se separar dela. Elas ficarão juntas para sempre.
Ouve um barulho lá fora e começa a rezar baixinho em uma língua que só ela conhece. Ela e sua filha. Reza reza reza. Pega uma moeda que tinha guardado em sua bolsinha e oferece para Deus. Ele irá protege-las. Olha para uma imagem de São Jorge, pensa que é Deus. Ele sempre esteve ali, em cima da geladeira. Por que nunca fez nada?
"Não fala isso minha filha. Ele vai te ajudar. Vai te ajudar", pensa mordendo os dentes e batendo na boneca nua, bem onde seriam as genitais. Sente um arrepio lhe percorrer todo o corpo. Uma dor lancinante passa pela virilha e vira medo. Sente um cheiro de suor. Aquele cheiro horrível não sai da sua cabeça. Do barraco onde mora. Com o fedor do banheiro já acostumou. Com os insetos também. Só aquele suor a faz tremer.
Como quer que vire dia! De dia, tudo volta ao normal. Ela vai à escola. Brinca, faz lição... O que gosta mesmo é de pular corda. Às vezes acaba esquecendo da boneca. É só escurecer que o mundo vira outro. Se arrepende de ter deixado de lado a "sua filha".
A cama úmida range. A porta range. Chegou alguém. Ela olha para o lado. A mãe está lá. Com ela. Na cama. A mãe finge dormir. Como ela odeia sua mãe!
"Por que ela finge", se pergunta a menina, soluçando. Ouve passos e o cheiro fica mais forte. A respiração fica mais forte. Ela abraça a boneca e pede a Deus que pegue seu cavalo, sua lança e saia de cima da geladeira, de uma vez por todas! É tarde: a respiração pesada em seu ouvido lhe despe de toda fé.
"Não precisa ter vergonha de mim. Eu só quero te fazer carinho", ainda ouve, de olhos fechados, chorando de ânsia da aspereza que roça no seu rosto. De nojo de si mesma. De ódio de Deus, que, afinal, tem aquela lança pra quê?

PS. Faz tempo que escrevi, mas me lembra uma história atual.

quinta-feira, 19 de março de 2009

Egito, onde o idioma é a rima



São José do Egito é conhecida como o berço dos cantadores. O município fica no sertão de Pernambuco, bem longe do país-xará africano, mas às vezes lembra essas terras míticas que só existem na imaginação dos poetas que achavam muito natural escrever livros de mais de mil páginas em verso.

Lá, os cantadores deixaram de receber gorjetas pelos seus improvisos para virar a elite da cidade, assumindo cargos normalmente ocupados pelos aristocratas latifundiários que ainda existem sertão adentro.

O presidente da câmara dos vereadores é cantador, assim como outros parlamentares. As maiores celebridades terra, claro, também são.

Os egipsienses (não, eles não são egípcios) conhecem de cor as dinastias de artistas populares. Fulano da Viola é filho de Sicrano da Pedra Verde e neto de Beltrano da Lua Cheia, todos mestres na arte de fazer malabarismo com as palavras em tempo real.

Termos que definem quantas sílabas tem cada verso, como sextilhos, redondilhos, décimas, estão na boca do povo, tal qual impedimento, pênalti e gol são ditos nas discussões sobre futebol nos botecos.

Passei os últimos dois dias em São José, acompanhando a trupe de Ariano Suassuna, em aulas-espetáculo que ele dá pelo Estado. Um dos primeiros a defender um lugarzinho para os cantadores em círculos antes apenas frequentados por granfinos eruditos, Ariano é visto como um rei pelos egipsienses.

Ganhou o título de cidadão honorário, com direito a uma (looonga) solenidade toda em verso. Os vários discursos das muuuuiiitas autoridades cantadoras atribuíram tal número de façanhas a Ariano que ele foi obrigado desmentir algumas delas, apesar de admitir que os relatos fantasiosos eram mais charmosos que a realidade.

Em uma cidade na qual se fala o idioma da rima, de fato, mentir fica muito mais interessante, quase uma obrigação, diria. Pendurar conta no bar por causa de uma falsa catástrofe nas finanças domésticas ou dar uma desculpa esfarrapada para a esposa, em verso, soa até sincero.

Por conta da falta de talento e de algum senso crítico que me resta, continuarei mentindo em prosa mesmo, como se faz fora das fronteiras do Egito sertanejo.

segunda-feira, 9 de março de 2009

A variada vida de Tom

Tom fez aula de gaita, violão, trombone, sanfona, pintura, leitura dinâmica, curso de detetive particular por correspondência, origami, frenologia, grego, francês, latim, esgrima, pólo aquático. Mas ia largando uma coisa para começar outra, sem nunca terminar nada, com outra e mais outra paixão a vista.

Com as namoradas era a mesma coisa: começava o namoro, mas quando acabava o começo perdia o interesse. Certa vez casou e se separou na mesma noite, com uma prostituta que não batia muito bem. O divórcio custou-lhe duas garrafas de uísque e um maço de cigarros, mas lhe rendeu o status de divorciado, novidade muito bem-aceita. Escreveu primeiros parágrafos de romances de 600 páginas que deixariam Juan Rulfo, Nabokov, Julio Cortazar e Kafka morrendo de inveja, se as outras 599 páginas viessem depois. Profissões ele teve várias, desde contador a artista de circo, passando por policial, encanador, lavador de pratos, amanuense, mágico.

Aos 70 anos se viu sozinho, sem dinheiro, sem família, sem nada, que não fossem os vestígios de todas as suas paixões, tudo amontoado pela casa. Pensou no irmão mais novo, médico, doutorado, mulher e onze filhos, quinze netos, dois bisnetos. Sentiu inveja dele, mas o sentimento não durou muito até se tornar tédio. Uma nova idéia: resolveu abrir um antiquário para livrar-se de todas as suas traquitanas, entre as quais, podia se encontrar uma enorme coleção de maços de cigarro, uma guitarra que havia pertencido a Jimmi Hendrix e um papiro egípcio raríssimo, que aprendeu a ler depois de algumas aulas de hieróglifo.

Já a beira da morte, apaixonou-se pelas enfermeiras. A cada troca de turno era uma nova alegria, um novo rosto. De noite, já não lembrava mais da enfermeira da manhã, pela qual fora apaixonado loucamente e seria no dia seguinte. Quando a morte chegou, viu a nova empreitada com felicidade, deixando de lado o iô-iô, seu mais novo hobby.

Ps. Um conto que escrevi há muito tempo, mas que inspira minha nova vida

quinta-feira, 5 de março de 2009

Gíria, não! Dialeto!

Se há algo que me preocupa de fato em relação à minha mudança para o Recife, é saber que terei de maneirar no uso das expressões que aprendi no berço da humanidade, a zona leste de São Paulo, porque os pernambucanos ainda não estão preparados para entender um linguajar de tamanha riqueza.

Com muito esforço e dedicação, me tornei um filólogo do zonalestês, língua que, com o tempo, deverá ocupar seu lugar junto às clássicas, como o latim e o grego. Em breve, porém, encaminharei um projeto para criar aqui, na Universidade Federal de Pernambuco, a primeira cátedra de zonalestês do Brasil e dividir com os pernambucanos o meu aprofundado conhecimento.

Abaixo, seguem alguns dos verbetes que cataloguei guimarãesroseando pelas imponentes ruas dos bairros Cidade Patriarca, Artur Alvim e, por último mas não menos importante, Vila Nhocuné.

A melhor que tá tendo - pessoa ou coisa que, nas atuais circunstâncias, é a melhor em alguma coisa. Ou simplesmente mulher atraente. "Essa mina é a melhor que tá tendo".
A pior que tá tendo - antônimo de "a melhor que tá tendo".
A pampa - confortável, satisfeito, sentindo-se bem. "Tô a pampa".
Belisco - caso amoroso, pessoa com quem se faz ou se pretende fazer sexo casual sempre que for conveniente. "Vou sair com um belisco aí".
Chapéu atolado - idiota, pessoa que é passada para trás. "Mano, cê tá achando que eu tô de chapéu atolado".
Cola na grade - aproxime-se.
Duas ideias - pessoa que não cumpre com a palavra, contraditória, desonesta. "O cara tá dando duas ideias, palavra de malandro não faz curva".
Enquadro - ato de a namorada fazer questionamentos ao namorado ou de ser parado pela polícia. "Tomei um enquadro da PM ontem" ou "A mina dele enquadrou ele na frente de todo mundo".
Fight - transar, ou quase. "Saí com uma mina e dei uns fight com ela ontem".
Goró - bebida alcoólica de péssima qualidade, como vinho em garrafa de plástico. Cerveja Guinness, por exemplo, não se enquadra nessa categoria.
Kissasso (a) - pessoa muito feia e mal vestida, enfim, kissassa.
Mano - tratamento afetuoso, presente em quase todas as frases dos zonalestenses.
Manso - tratamento desafetuoso, usado para os cornos.
Mamis - felação, linguagem chula. "Faz um mamis".
Na humildade - tratamento que antecede algum pedido. "Na humildade, tem como me arrumar um careta (cigarro)".
Na moral - tratamento respeitoso, usado na hora de fazer alguma ponderação. "Na moral, não mata o maluco não. Só dá um pau nele".
Na picadilha - ficar alerta, pegar alguém de surpresa. "Tô na picadilha com você" ou "O cara tava saindo de casa e o ladrão pegou ele na picadilha".
Nóia - pessoa muito viciada em droga, pessoa que que parece ser muito viciada.
Rimas - usadas tradicionalmente para expressar bem-estar. "Suave na nave", "De boa na lagoa", "Sussa na montanha-russa" etc.
Sem maldade - ver em "na humildade".

terça-feira, 3 de março de 2009

Homens ao mar

As contas bancárias em metástase acabaram. Viraram reminiscências quase infantis, jogadas displicentemente na prateleira dos problemas matemáticos e das contas de dividir com vírgulas.

O cartão de crédito virou o pedaço de plástico que nunca deveria ter deixado de ser.

Os jornais com as notícias que eu não lia mais deixaram de ser arremessados todas as manhãs pelo motoqueiro pontual e barulhento.

Horas de confronto contra atendentes de telemarketing, no infinito campo de batalha telefônico, valeram a pena.

No conforto do único par de tênis, a mensalidade do carro, o seguro do carro, a gasolina do carro também não preocupam.

O expediente acabou. O eterno expediente. A vida inteira debaixo de um céu de ferrugem, digitando histórias vermelhas de personagens reais, de gente que ultimamente mais me parecia manequim de loja, personagem de desenho animado, parafuso a parafusar.

Saí inteiro dos escombros. O crachá tatuado no meu peito, mais uma cicatriz perdida entre as marcas do skate, do futebol e das brigas de rua.

As noites nos bares, sucedidas e antecedidas pelas manhãs de ressaca no batente, se foram. Por enquanto. Espero que as noites voltem, mas desacompanhadas das já citadas manhãs.

O dente quebrado, que balançava na boca, driblava a comida e chacoalhava os nervos foi parar num copinho de plástico, desses de café. Mas só depois de uma amputação a sangue frio, daquelas que acontecem no meio de trincheiras, com balas zunindo, gritos de dor, cheiro de carne ainda viva.

Não dói mais.

De uma vasta planície ainda disforme, posso ver tudo o que não é meu. Até onde as vistas não enxergam mais.