O mar, magnífico e injustificável, cruel e mágico, tem vontade própria e brinca comigo, com a gente. Acelera o barco rumo à terra, mais rápido do que nunca. Quando a tripulação se prepara para jogar a âncora, arruma as malas, come os chocolates que havia guardado para os períodos de fome, quando nossos pés já sentem o cheiro da terra grudada na borracha dos sapatos, as ondas levantam-se maliciosas e sorridentes e atiram o barco para tão longe, tão longe de qualquer lugar, que ficamos tontos; perdemos o foco e já não sabemos mais onde estamos. O céu se escurece sobre nossas cabeças.
A memória passa a ser como um membro amputado, conseguimos senti-lo, quase tocá-lo, dolorido, em chamas, latejante. Lá vai a lembrança inquieta tocando os dedos no nosso ombro, pedindo atenção feito fazem as crianças.
Mas crianças não vão para o mar nem têm lembranças lindamente inconvenientes como as nossas. Somos adultos, marinheiros, sempre soubemos que uma vez no mar teríamos de ter paciência. Teremos de domar nossas memórias, nossa fome, nosso cansaço, teremos de adestrar as lágrimas, acostumar nosso paladar aos gostos diferentes, carregar punhados de paciência em todos os bolsos e tragar longamente o fumo salgado da maresia. O mar, um dia, cede, melhr, concede, por pena ou divertimento, sabe-se lá, talvez demore mais ou talvez não.
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