Érica passara a infância embelezando as bonecas, não por espírito maternal, mas como uma projeção de si mesma. Sabia que, assim que as pernas esticassem, os peitos crescessem, as curvas se fizessem no seu corpo, seria uma delas.
Talvez tivesse ficado assim por conta do elogio, aquele sempre e irritantemente repetido: “Parece uma boneca essa menina”. Nas fotos, forçava os sorrisos, dentes brancos brilhando, olhar no seu futuro. Quem a via posando dizia pra ser mais natural. Mas o resultado, revelado pelo papel, era sempre magnífico. Era como se não houvesse mais ninguém na foto, só ela, o Sol que transforma todo o resto em sombras.
Na puberdade, como previa, virou uma versão melhorada de todas as suas bonecas. Um corpo mais torneado que o da Barbie, um sorriso mais bonito que o da Susy e o cabelo mais liso que dos poneizinhos que vivia a pentear. Para namorado, escolheu o príncipe da escola. Roger, rico, lindo, bem-humorado e leal, ainda por cima um dos mais inteligentes.
Aos 20 e poucos, os dois se formaram e, naturalmente, veio o casamento. Uma festa que custou quase o preço do apartamento que compraram para morar. Eles formavam o tipo de casal que parece mais feliz do que é. Ricos, filhos lindos, ambos bem-sucedidos (ele como publicitário e ela como decoradora). A inveja, enfrentavam com desdém de quem nasce para estar lá em cima. Tanta perfeição, por vezes, beirava o marasmo.
Roger não tinha tempo para se entediar, já que sua vida fora do trabalho era apenas uma moldura. Érica trabalhava em casa por conta própria, às vezes, em dias muito lentos, tentava espantar o tédio. Outras vezes, o acolhia como um conhecido indesejável, porém, necessário. Não queria para ela aquela felicidade montanha-russa. Melhor que fosse assim, uma mansão com cercas eletrificadas no purgatório.
Sentada à beira da piscina, lia uma revista feminina que havia publicado fotos de uma casa decorada por ela. Já se habituara a ver seus trabalhos nas revistas: ela estava na moda. Em uma das páginas, uma matéria lhe chamou a atenção. Dizia: “Quem não sorri nas fotos, tem maior tendência a se separar”. O texto tinha uma entrevista com uma pesquisadora sueca que analisou o arquivo fotográfico de 1.750 casais durante dez anos. “Isso pode ser explicado por uma tendência à interiorização dessas pessoas, mais sujeitas a serem a afetadas pelas crises existenciais que culminam nos fins dos relacionamentos”, dizia a estudiosa Susan Shultz.
Érica fechou a revista e passou o dia todo inquieta, como se tivesse sido cutucada por alguém que se escondeu. De noite, jantou com o marido e os dois filhos. Depois, o casal fez o usual sexo confortável e burocrático que tanto a excitava.
No outro dia: os filhos na escola, o marido no trabalho, a empregada no mercado. Sentou-se na sala e, plam, deu de cara com a foto dela e de Roger no dia do casamento. Ela: com seu mesmo sorriso cristalizado. Ele: sério. Deu uma risada nervosa. Em seguida, abriu as gavetas de fotos e vasculhou tudo. Nada, nenhum sorriso. Roger era uma estátua de gelo nas fotos, apesar de ser tão sorridente no dia a dia.
Pegou o carro e correu para a casa da sogra. Na infância, havia de resgatar um sorriso que fosse. A mãe de Roger estranhou o pedido das fotos, sob o pretexto ridículo de que ela pretendia digitalizá-las, mas emprestou todos os álbuns fotográficos em que o filho aparecia.
Não era nem hora do almoço e Érica já se encontrava chorando loucamente, cercada por milhares de fotos, no sofá da sua sala. Passou meses em depressão, mas se recusava a contar o motivo de tanta choradeira. A pedido do marido, passou a fazer análise. Com isso, vieram os anti-depressivos, que só serviram pra lhe diminuir ainda mais o apetite sexual.
Só contou seu drama à melhor amiga, Jaqueline, fotógrafa.
_ Acho que essa teoria deve ser mais uma dessas bobagens, coisa de revista de mulher. Eu trabalho em uma, sei como é _ disse Jaqueline. _ Tá, mas posso te ajudar.
_ Como?
_ Não vou adiantar, não, quero ver se vai dar certo antes. Pode deixar comigo, só preciso das fotos. Daqui uma semana, trago tudo pra você.
Jaqueline cumpriu a promessa. Uma semana depois, trouxe tudo de volta.
_ Pode olhar _ disse, entregando uma grande caixa de papelão à Érica.
Ela rasgou a caixa, depois de se atrapalhar para abri-la, e se pôs a ver as imagens, uma a uma. Em todas elas, Roger sorria um sorriso de galã de cinema. Sorriso idêntico ao dele, aquele que nunca havia sido fotografado.
_ Amiga, eu te amo tanto! Como você fez isso?
_ Foi trabalhoso, mas simples. Do mesmo jeito que a mulherada sai nas revistas sem celulites, estrias, peito caído. Não tem segredo. Tudo pra manter seu casamento liiiindo, gata!
Roger chegou cansado naquele dia e nem deu bola para Érica, toda arrumada, sorridente e ronronante. Ela não ligou para o desprezo: acontecesse o que acontecesse, de agora em diante, seriam completamente perfeitos, sem nenhuma rachadura ou cicatriz que pudesse separá-los. Mais que amor, queria segurança. Mais que isso: perfeição com seguro quitado.
Em uma festa badalada, à qual Roger havia se recusado a ir e só mudou para fazê-la parar de chorar, foram fotografados para uma coluna social. Ela, tão preocupada com o sorriso do marido, pela primeira vez na vida saiu feia numa foto _ mordendo os lábio inferiores, os olhos um tanto tortos mirando o sorriso de Roger. Afinal, uma foto no jornal era uma evidência pública de um futuro divórcio.
Fato inédito: no dia seguinte, ela pegou o jornal correndo sequer olhou pra si. No rosto do marido, aquele lindo sorriso. Roger chegou em casa e viu o jornal em cima da mesa, follheou, não falou nada. No jantar, olhava fixamente para ela.
_ O que foi? Você está olhando tanto?
_ Nada, amor, você viu nossa foto no jornal?
_ Vi. Naquele dia tão tenso, você com esse sorriso tão lindo...
_ Sempre sorrio nas fotos. Só você olhar nos álbuns _ ele respondeu, para depois ficar calado a noite toda.
Ele não conseguia tirar da cabeça aquela foto. Passou a olhar, a todo instante, o rosto de Érica, sem nada dizer. Vez por outra, num descuido dela, encontrava a mulher da foto. Depois da curiosidade inicial, começou o desconforto. Passou a evitar olhar para ela. Já esquecida daquela baboseira dos sorrisos de fotografia, Érica não percebeu nada de estranho, achava que era uma nova onda de paixão do marido, a persegui-la com o olhar o tempo todo.
Marcela apareceu na vida de Roger numa campanha publicitária para uma marca de pasta de dente. Era a mulher com o sorriso mais lindo que ele já vira. Começaram a sair, a coisa ficou séria e, meses depois, eles estavam morando juntos.
Roger não soube explicar o motivo do rompimento para Érica, mas, durante a derradeira discussão, teve certeza. Tensa, chorando, com tiques nervosos, Érica era uma estranha. Para ele, permanentemente, uma estranha: a mulher dos olhos tortos que mordia os lábios na foto da coluna social.
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