A menina está assustada. Tenta brincar com a boneca, mas não consegue parar de tremer. Bate na boneca. Abre as pernas da boneca e bate. Está muito claro ali. "Essa janela! Essa lua", pensa a menina, brava.
A menina não gosta da claridade. Ela quer ficar no escuro. Não quer que a vejam. O colchão está frio. Não. Está úmido. Ela sente o vestido, curto demais para ela, todo molhado, embaixo.
A menina abraça a boneca e diz: "Minha filhinha, eu te amo tanto..." Respira fundo e sussurra bem baixinho no ouvido do brinquedo: "Eu te amo tanto. Por que você não quer brincar comigo?" Então, ela começa a tirar a roupa da boneca. Um vestidinho florido. Tira também o lacinho cor-de-rosa da cabeça quase careca e dá um beijo, babado.
"Não precisa ficar com vergonha de mim", diz baixo. "Eu vou cuidar de você. Só vou te dar carinho", fala, passando a mão no rosto da boneca.
Sente uma dor na barriga. O vestido está cada vez mais úmido. Úmido e quente. Ela treme. Seus dentes batem, um no outro. Ela abraça a boneca e diz que nunca mais vai se separar dela. Elas ficarão juntas para sempre.
Ouve um barulho lá fora e começa a rezar baixinho em uma língua que só ela conhece. Ela e sua filha. Reza reza reza. Pega uma moeda que tinha guardado em sua bolsinha e oferece para Deus. Ele irá protege-las. Olha para uma imagem de São Jorge, pensa que é Deus. Ele sempre esteve ali, em cima da geladeira. Por que nunca fez nada?
"Não fala isso minha filha. Ele vai te ajudar. Vai te ajudar", pensa mordendo os dentes e batendo na boneca nua, bem onde seriam as genitais. Sente um arrepio lhe percorrer todo o corpo. Uma dor lancinante passa pela virilha e vira medo. Sente um cheiro de suor. Aquele cheiro horrível não sai da sua cabeça. Do barraco onde mora. Com o fedor do banheiro já acostumou. Com os insetos também. Só aquele suor a faz tremer.
Como quer que vire dia! De dia, tudo volta ao normal. Ela vai à escola. Brinca, faz lição... O que gosta mesmo é de pular corda. Às vezes acaba esquecendo da boneca. É só escurecer que o mundo vira outro. Se arrepende de ter deixado de lado a "sua filha".
A cama úmida range. A porta range. Chegou alguém. Ela olha para o lado. A mãe está lá. Com ela. Na cama. A mãe finge dormir. Como ela odeia sua mãe!
"Por que ela finge", se pergunta a menina, soluçando. Ouve passos e o cheiro fica mais forte. A respiração fica mais forte. Ela abraça a boneca e pede a Deus que pegue seu cavalo, sua lança e saia de cima da geladeira, de uma vez por todas! É tarde: a respiração pesada em seu ouvido lhe despe de toda fé.
"Não precisa ter vergonha de mim. Eu só quero te fazer carinho", ainda ouve, de olhos fechados, chorando de ânsia da aspereza que roça no seu rosto. De nojo de si mesma. De ódio de Deus, que, afinal, tem aquela lança pra quê?
PS. Faz tempo que escrevi, mas me lembra uma história atual.
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