Quem via ele assim, sorridente, baixinho, a barriga que mal se continha dentro da camisa quase sempre abotoada errado, não imaginava que fora um lendário ponta-direita da várzea do Tatuapé. Diziam, até, que na época de moleque, enquanto os outros trocavam a bola facilmente pelo rabo de saia, ele era o mais fiel de todos ao objeto de adoração, não largava ela por nada. (Mais tarde ele confessaria quem quisesse ouvir que não era mesmo “muito metelãozinho” nessa época, embora tenha tido quatro filhos, um deles depois dos 40 anos).
Tio Quim me ensinou muitas coisas, a primeira delas foi jogar futebol. Não que eu tenha aprendido tudo que ele tivesse a ensinar, mas aprendi mais do que meu talento permitia. Aos 9, 10 anos, eu era o grosso do time, mal sabia se chutava com o pé direito ou esquerdo. Íamos eu, ele e um dálmata que não me lembro o nome, mas que me parecia um sujeito muito simpático, treinar no parque Sampaio Correia, na Vila Carrão. Sem tirar o cigarro da boca, dizia: “Fio, hoje em dia é diferente, não basta ter habilidade, o principal é ter condição física”.
Tempos depois, se não era um craque, eu já havia assumido o espírito do antigo firuleiro da várzea. De tanto treinar com o pé errado, acabei ponta-esquerda, destro com as mãos e canhoto com os pés. Não passava mais vergonha com a bola, embora meu fôlego deixasse a desejar.
Não foi à toa que minha paixão pelo futebol acabou perdendo cada vez mais espaço para minha vocação para a boemia. Nessa mesma época, tio Quim não podia beber em um evento familiar e me levou para um boteco desses bem fuleiros, onde botou um copo de cerveja na minha frente e uma porção de petiscos nada apetitosos, ovos coloridos, salsichas suspeitas, picles duvidosos; engoli a comida o mais rápido que pude e bebi a cerveja de um gole só. “Fio, bebedor tem que tomar devagar e petiscar, senão passa mal e acaba passando vergonha”, advertiu o tio, tomando seu copo de cerveja quente, assim como fazem esses sujeitos da Irlanda e da Alemanha.
Durante essa mesma conversa, outro ensinamento: além de petiscar enquanto bebia, não se devia ser puxa-saco de chefe, que era a pior raça que existia. Admito que, muitas vezes, não sigo o primeiro conselho e acabo trançando as pernas, mas esse último nunca deixei de seguir. Torneiro mecânico, o tio deve ter sido o pesadelo dos encarregados carreiristas, mas, para nós, sua profissão era deveras útil, já que nos garantia trofeuzinhos de metal feitos por ele para os torneios de futebol de botão.
Descobri depois de velho que ele estudava a árvore genealógica da minha família, os Rodrigues Rocha. Por meio das pesquisas dele, sempre muito contraditas pelos parentes que sonham ser descendentes de príncipes e nobres, descobri que nosso antepassado foi um feitor de uma fazenda de escravos. Talvez aí esteja o motivo para não sermos puxa-sacos: não repetir o erro desse infeliz ancestral.
Pouco vi o tio Quim depois de adulto, mergulhado no trabalho e em tantas outras coisas da vida, mas, a cada vez que via, preferia enxergar aquele do copo de cerveja quente na mão e das histórias sobre o futebol bonito dos campos de terra, embora ele já não pudesse mais nem beber nem fumar. Por não poder mais viver muito de uma só vez, como estava acostumado, parecia minguar, quietinho no seu canto.
Esses dias foi o enterro do tio. Por estar a mais de dois mil quilômetros de São Paulo, não pude ir. Mas tenho certeza que, assim como aconteceu comigo, por um momento que seja, filhos e sobrinhos lembraram com alegria como é importante um tio Quim na vida de um menino.
Como assim, descendente de feitor? E o Borba Gato??
ResponderExcluirSinto pela perda
Abraço
Como assim, descendente de feitor? E o Borba Gato??
ResponderExcluirSinto pela perda
Abraço
Fiquei sabendo muito mais tarde sobre minha triste descendência de feitor... De qualquer maneira, o Borba e meu tataravô feitor se equivalem, com a diferença que ergueram estátuas para homenagear o primeiro...
ResponderExcluirabraço, mano
Linda história Artur!
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