Ana só queria ter um interruptor no próprio corpo. Assim, poderia desligar-se assim que chegasse do trabalho e descansar até o dia seguinte. Como esse dispositivo ainda não havia sido inventado, depois do expediente de 16 horas na redação ainda era obrigada a atender telefonemas sobre as reportagens do dia e da manhã seguinte.
Depois de uma dessas ligações, para avisar que teria de entrar duas horas mais cedo no dia seguinte, tentou se esconder do mundo dentro de uma folha de jornal. Após alguns segundos submersa, ela retirou o jornal da cabeça e, por acaso, teve a atenção pescada por um anúncio dos classificados. A propaganda dizia: "Acha que o dia deveria ter 48 horas? Adquira seu próprio clone".
A princípio, pensou que aquilo daria uma boa matéria. De noite, sonhou consigo mesma dividida em vinte partes, todas ela indecisas sobre qual roupa usaria ou se aquela cor de batom era a correta. Foi interrompida pelo interfone, que estava quebrado e mais parecia um peido a ecoar pelo apartamento de 60 metros quadrados na Santa Cecília.
Era o motorista do jornal. Ela desceu sem tomar café da manhã e deu um bom dia descabelado ao motorista do Renault prata que a esperava. Assim que o homem deu partida no veículo, encostou a cabeça no vidro do veículo e dormiu, cabeça trepidando no vidro pelas ruas esburacadas. A missão do dia era, com a ajuda de um pé de cabra, vistoriar trezentos bueiros da cidade para a seção Guardião, do diário em que trabalhava, o jornal popular Pra Já.
Conseguiu vistoriar apenas 237 bueiros, dos quais apenas cinco encontravam-se em condições satisfatórias. O anúncio sobre o clone já havia se esvaído em meio à bosta e aos ratos que vira durante todo o dia e naufragaria ali mesmo não fosse uma nova ligação. A chefia informava que a pauta dos bueiros seria cancelada por ordem, e sem explicações, do diretor de redação. No lugar, ela teria que verificar no dia seguinte a situação de quinhentas lixeiras da cidade.
Abriu um jornal do dia que estava no banco traseiro do veículo. Ligou no impulso, sem esperar nada. A atendente era boa de papo e prometeu-lhe que o pagamento seria suaves prestações, durante vinte anos, e ainda ganharia uma máquina de fazer pipoca para desfrutar junto com o clone nos momentos de folga. Estava decidida a dizer não, mas, ao ver que a redação ligava para ela novamente, mudou de ideia. Em no máximo cinco dias úteis, prometeu a atendente, o clone estaria no endereço dela. Era preciso estar em casa para assinar e receber o manual de instruções.
A entrega chegou depois de três dias. De fato, o material era de boa qualidade. Assim como ela, uma jovem de vinte e quatro anos, um metro e sessenta, cabelos curtos e lisos na altura do ombro. Tinha um olhar de surpresa como o dela, com a diferença de que estava totalmente descansado. Como era filha única, Ana teve a sensação de ter ganhado uma irmã. Na primeira noite, as duas foram dormir tarde depois de passar horas pintando as unhas de cores iguais.
Ana precisava acordar cedo. O clone só passaria a trabalhar na outra semana, depois que ela explicasse os detalhes do trabalho. Se bem que no manual constava que o clone possuía exatamente as mesmas habilidades que ela e ainda outras que haviam sido incluídas, como assoviar e fazer contas de divisão com vírgulas.
O clone insistiu em começar antes.
- Não aguento mais ficar enclausurada nessa casa sem fazer nada. Você precisa arrumar algum hobbie e me deixar trabalhar.
De fato, Ana ainda pensava o que faria no tempo livre. Como o manual dizia que o clone tinha limitações caso colocado sob carga de trabalho extenuante, ela havia definido que trabalharia dia sim, dia não. Sua cópia faria o mesmo. Isso evitaria sobrecarregar a outra e ainda dava tempo para que ela começasse a natação, o boxe, a patinação, o piano e as aulas de gastronomia, como sempre havia sonhado.
No primeiro dia de trabalho do clone, Ana deixou o próprio celular com ela e prometeu ficar em casa de prontidão. Qualquer problema, dúvida, qualquer coisa, era só ligar. Não foi preciso.
A cópia ganhou elogios do editor. Escrevia bem e era tão cuidadosa quanto ela com as informações. No primeiro dia de trabalho, passou-se por parente de um doente em um hospital e flagrou uma situação de completo abandono dos pacientes, em macas no chão e sem as mínimas condições de trabalho.
Em casa, as duas combinavam as reportagens que fariam no dia seguinte. A visibilidade de Ana duplicou dentro do jornal e, finalmente, ela recebeu seu primeiro aumento. Nos fins de semana em que não trabalhavam juntas, as duas saíam à noite e se divertiam com as cantadas que as gêmeas recebiam na balada. Uma noite, Ana acabou voltando para casa sozinha depois que a outra resolveu sair com um carinha que as duas haviam achado uma graça.
O telefone dela tocou logo cedo.
- Onde está você, Ana, esqueceu do trabalho?
Ela havia acabado de chegar da academia. Como não conseguiu fazer contato com a cópia, correu para o jornal bolando a desculpa para o atraso. Inventou que estava em uma consulta médica e chegou toda esbaforida. Não via a hora de chegar em casa para dar um esporro daqueles no clone.
- Você me deixou na mão - disse para a outra.
- Estou de saco cheio de ficar sendo escravizada. Para você levar o mérito!
- Nós duas levamos o mérito!
- Não, só você leva, é o seu nome que sai lá. Eu não tenho nem nome.
A outra saiu batendo a porta. Voltou depois de alguns minutos, com a mão estendida.
- Preciso de algum adiantado para o hotel?
- O hotel? E o que eu te dei ontem?
- Querida, o custo de vida de São Paulo é um dos mais caros do mundo. Você não leu a nossa matéria no jornal da semana passada? Matéria, aliás, que eu fiz para você.
Ana deu à outra tudo que tinha na carteira. Nos dias seguintes, não conseguiu fazer contato com ela. Foi ao trabalho todos os dias, como antes, com medo de que a cópia não desse as caras. O instinto dela havia acertado. Assim como ela, o clone devia ser do signo de touro.
- Aquela cabeça dura!
Até que estava aliviada em se livrar daquela víbora mal agradecida. Pediria seu dinheiro de volta e eles que se virassem com aquele clone mal feito. Se fosse uma cópia idêntica, não seria tão preguiçosa!
Dias depois, encontrou uma correspondência do escritório de advocacia de Altemar Gomes e Associados. Era uma notificação extra-oficial de que devia o equivalente a dois anos de salários à cópia. A correspondência contabilizava dias trabalhados pela outra, dias não trabalhados e ainda horas extras, que o jornal não pagava.
Em um telefonema ao advogado no dia seguinte, desesperada, Ana insistiu em falar com o clone. Só podia estar acontecendo algum mal entendido.
- Nem pensar. Não pago, não pago nada para essa aí - disse ao advogado.
- Essa era nossa última oferta. Assim que dermos entrada no processo judicial, ficará impossível para a senhora voltar atrás. Passe bem.
A audiência de conciliação foi um mês depois. O juiz, um homem aparentemente indignado com a exploração sofrida pela outra, não deu chance de defesa para Ana. Se pudesse, o magistrado teria mandado prendê-la. Ordenou um pagamento 25% maior do que o advogado havia proposto. O valor foi mantido por instâncias superiores, que negaram todos os recursos de Ana.
Para pagar o valor das parcelas, ela acabou tendo de arrumar um bico para revisar textos de uma editora de livro didáticos destinados a escolas públicas. Com bastante frequência, após o expediente, esquecia algumas páginas e deixava passar erros grotescos ali.
Tamanho era o ódio da outra que passou a tomar calmantes para dormir e anfetaminas para acordar. Às vezes, mais parecia um zumbi. Ainda tentou trabalhar como garçonete nos fins de semana de folga para conseguir mais dinheiro, mas foi despedida após derrubar uma bandeja cheia de taças de vinho sobre duas madrinhas de um casamento.
Conseguiu cancelar a compra do clone, que tinha garantia anti-emancipação, mas não se livrou dos salários atrasados. Três anos depois de começar a pagar as parcelas, estava prestes a se ver livre das dívidas, quando recebeu um aviso judicial de que os pagamentos seriam estendidos por tempo indeterminado. É que a cópia acabara de ser aprovada no programa de mestrado de jornalismo literário, em Lisboa, como Ana sempre havia sonhado. Deixou a carta de lado e riu, como não fazia há anos, um riso que fazia a barriga doer e os poodles da vizinha latirem.