A viagem de avião custava a acabar. De olhos semicerrados, tentava dormir. De repente, meus pelos se arrepiaram. Era como se, subitamente, estivesse completamente só na vida. Abri os olhos. Não olhei diretamente para ela. Era a única luz acesa, a luz de leitura do avião que iluminava os olhos da velha. Como se tivesse atraído por um imã, meu olhar vagueou até encontrar com o dela. A mulher dos olhos de abismo.
Era uma velha dos cabelos cinzas e olhos negros. Segurava uma boneca com força. Enquanto olhava para mim com seu olhar malicioso, apertou a barriga da boneca, que soltou um grunhido de dor. Senti aquele ruído ecoar dolorosamente dentro de mim. Na minha cabeça, uma voz cantava: “A mulher dos olhos de abismo guarda a morte no peito. Esconde, sob trejeitos de carinho exagerado, a dor de ter nascido.”
E eu estava em queda livre. Não tenho ideia de quanto tempo durou. Eu estava vidrado nos olhos dela e, para minha surpresa de descrente, vi brotar uma reza da minha boca. A reza dos desesperados, dos que não têm mais nada, dos casos perdidos.
Coloquei meus óculos escuros, enquanto lágrimas umedeciam todo meu rosto. A velha, pela primeira vez, hesitou em olhar, esticando e recolhendo a cabeça várias vezes. A movimentação me lembrou a de um animal brincando com a caça, prestes a devorá-la, jogando a para o alto com a boca.
Desorientado, tentando desviar a atenção daquilo tudo, pego meu caderno e começo a rabiscar essas palavras. A luz se acende e o comissário de bordo anuncia o pouso próximo. Ela continua olhando para mim. Eu continuo escrevendo.
A velha se levanta e caminha em direção ao banheiro do avião. Dá alguns passos e desmaia. Sim: tomba bem no meio do corredor!
Aos poucos, vou recobrando as forças. Tenho vontade de levantar, ir até ela enche-la de chutes. Deixo de fazê-lo não por qualquer espécie de escrúpulo, mas por medo. Alguns levantam de suas poltronas e vão acudi-la. Repito em voz baixa: “puta, puta, puta, puta”.
A velha é colocada em uma poltrona onde não consigo vê-la. Está com duas mulheres, uma delas carregando a boneca. Aparentemente, são filhas dela. Não entendo bem a situação: fico imaginando pra que a porra da boneca. Não consigo chegar a uma conclusão. O que aconteceu, afinal?
O avião pousa. Fico sentado na minha poltrona, esperando que elas saiam do avião. Estou curioso e resolvo levantar para vê-las. As avisto de costa. Estão lá, as três, com seus brinquedos e malas. Gente comum, gente invisível, como todas as outras. A velha vai no meio, escorada. Some na turba do aeroporto. Respiro fundo, demoradamente. O abismo está nos olhos de quem, nos meus ou nos dela? Com os pés no chão, fica difícil saber.
Gostei desse texto! Muito massa! Aconteceu de verdade?!
ResponderExcluirValeu, Bruno. Pior que foi verdade, sim... Esquisito pacas...
ResponderExcluirCaralho de asa, velho! Que doideira!
ResponderExcluire o que aconteceu realmente? ficou muito bom mas fiquei curiosa! obrgada.
ResponderExcluire o que aconteceu realmente? ficou muito bom mas fiquei curiosa! obrgada.
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