domingo, 6 de junho de 2010

A mulher dos olhos de abismo

A viagem de avião custava a acabar. De olhos semicerrados, tentava dormir. De repente, meus pelos se arrepiaram. Era como se, subitamente, estivesse completamente só na vida. Abri os olhos. Não olhei diretamente para ela. Era a única luz acesa, a luz de leitura do avião que iluminava os olhos da velha. Como se tivesse atraído por um imã, meu olhar vagueou até encontrar com o dela. A mulher dos olhos de abismo.

Era uma velha dos cabelos cinzas e olhos negros. Segurava uma boneca com força. Enquanto olhava para mim com seu olhar malicioso, apertou a barriga da boneca, que soltou um grunhido de dor. Senti aquele ruído ecoar dolorosamente dentro de mim. Na minha cabeça, uma voz cantava: “A mulher dos olhos de abismo guarda a morte no peito. Esconde, sob trejeitos de carinho exagerado, a dor de ter nascido.”

E eu estava em queda livre. Não tenho ideia de quanto tempo durou. Eu estava vidrado nos olhos dela e, para minha surpresa de descrente, vi brotar uma reza da minha boca. A reza dos desesperados, dos que não têm mais nada, dos casos perdidos.

Coloquei meus óculos escuros, enquanto lágrimas umedeciam todo meu rosto. A velha, pela primeira vez, hesitou em olhar, esticando e recolhendo a cabeça várias vezes. A movimentação me lembrou a de um animal brincando com a caça, prestes a devorá-la, jogando a para o alto com a boca.

Desorientado, tentando desviar a atenção daquilo tudo, pego meu caderno e começo a rabiscar essas palavras. A luz se acende e o comissário de bordo anuncia o pouso próximo. Ela continua olhando para mim. Eu continuo escrevendo.

A velha se levanta e caminha em direção ao banheiro do avião. Dá alguns passos e desmaia. Sim: tomba bem no meio do corredor!

Aos poucos, vou recobrando as forças. Tenho vontade de levantar, ir até ela enche-la de chutes. Deixo de fazê-lo não por qualquer espécie de escrúpulo, mas por medo. Alguns levantam de suas poltronas e vão acudi-la. Repito em voz baixa: “puta, puta, puta, puta”.

A velha é colocada em uma poltrona onde não consigo vê-la. Está com duas mulheres, uma delas carregando a boneca. Aparentemente, são filhas dela. Não entendo bem a situação: fico imaginando pra que a porra da boneca. Não consigo chegar a uma conclusão. O que aconteceu, afinal?

O avião pousa. Fico sentado na minha poltrona, esperando que elas saiam do avião. Estou curioso e resolvo levantar para vê-las. As avisto de costa. Estão lá, as três, com seus brinquedos e malas. Gente comum, gente invisível, como todas as outras. A velha vai no meio, escorada. Some na turba do aeroporto. Respiro fundo, demoradamente. O abismo está nos olhos de quem, nos meus ou nos dela? Com os pés no chão, fica difícil saber.

5 comentários:

  1. Gostei desse texto! Muito massa! Aconteceu de verdade?!

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  2. Valeu, Bruno. Pior que foi verdade, sim... Esquisito pacas...

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  3. Caralho de asa, velho! Que doideira!

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  4. e o que aconteceu realmente? ficou muito bom mas fiquei curiosa! obrgada.

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  5. e o que aconteceu realmente? ficou muito bom mas fiquei curiosa! obrgada.

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