terça-feira, 15 de março de 2011

Perdoa-me por te traíres

Nunca fui de confissões públicas, mas acho que explodiria se não o fizesse dessa vez. Eu traí, traí descaradamente, continuo traindo, remoído pela culpa, porém incessantemente. Traio de manhã, de tarde e de noite. Acordo de madrugada para trair, sonhando com o objeto de meu desejo.

Quem me conhece sempre soube que nutro um sentimento de fidelidade canina aos meus amores, recusando-me a cair nas tentações por mais tentadoras que sejam. Dessa vez, no entanto, fechei os olhos para meu primeiro amor e traí. Não foi por influência dos outros, quer dizer, claro que via todos fazendo o mesmo, mas resistia, resistia.

No começo, eu fazia pouco caso. Nessa eu não vou não, que é chave de cadeia. Mas numa noite estava eu lá, em Londres, solitário, e aconteceu. Meu crime é maior porque foi premeditado. Estava eu, um pint de Guinness, no meu sujismundo apartamento em Elephant and Castle, acompanhado apenas das baratas ali moravam, quando disse a mim mesmo: não vou mais resistir! Por que resistir?

Lá fui eu, naquela mesma hora, tomar a atitude que achei que nunca tomaria. Liguei meu computador e, segundos depois, não havia mais volta. Havia comprado pela internet um leitor eletrônico de livros, sim, o maior pecado do mundo para um cara como eu, que sempre tratou os livros como pessoas _ mesmo porque eles são claramente mais confiáveis!

Pois com meu e-book acontece pior: trato-o não só como pessoa, mas como um bebê. Quando desembarquei novamente no velho e bom Brasil, trouxe-o em embrulhinho, cheio de panos para absorver qualquer impacto, para proteger a criança de uma queda, um esbarrão, sabe-se lá, o mundo de hoje é tão perigoso. Desde então a culpa me corrói.

Ainda espero fazer as pazes com eles, mas hoje quando passo perto de uma estante de livros olho para os pés, envergonhado. Quase espero sentir a cusparada sobre mim, os insultos, uma frase, só, severa, dizendo: traidor! Imagino uma capa dura dessas parrudas, de Ulysses ou Moby Dick, arremessada sobre minha cabeça. As palavras certamente me fugiriam para responder a um ataque desses, então, geralmente eu corro para casa e caio nos braços do e-book, lendo de tudo de uma só vez, de tratado filosófico a Sherlock Holmes, numa orgia que nunca tive coragem de cometer, abandonando obras pela metade, atravessando livro na frente de livro, indecentemente, numa espécie de suruba literária. Que me salvem a Bíblia, o Alcorão, o Livro de Krishna, os ensinamentos de Buda, todos eles devidamente arquivados na minha biblioteca eletrônica.

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