domingo, 3 de julho de 2011

O ventre

O choro esganiçado era como um grito de liberdade. A mãe ficou em silêncio por alguns minutos apenas ouvindo o som irregular, aumentando e diminuindo de volume, intenso, de repente, baixinho. Mesmo quase sem força nenhuma, buscava energia para sacudir o volume quente e macio, fazendo-o chorar alto novamente.

O menino não sabia o quanto seu nascimento aliviava os tormentos daquela mulher que nascera só para ser mãe. Ela passara a infância e adolescência imaginando quão belo e perfeito seria o filho, o ser que viria ao mundo para jogar uma pá de concreto sobre aquele vazio dolorido que a incomodara desde sempre. Olhando bem para ele, percebeu que estava longe de ser como sonhara. Mesmo completamente banhado de sangue, era possível notar que faltavam-lhe alguns pedaços. Metade da orelha esquerda não ficara pronta, e os dedos dos pés haviam nascido grudados, feito os de pato. Os defeitos certamente fariam outras mães caírem em prantos, mas não a incomodaram.

Você é uma vitória, disse para o bebê. Não era uma vitória comum, mas a vitória de uma maratona.

Vangloriava-se da barriga desde cedo. Dizia, mesmo a desconhecidos: sabia que espero um bebê? Alguns sorriam, parabenizavam até, outros simplesmente ignoravam a intromissão. E isso logo no primeiro mês, o ventre ainda musculoso, chapado, o corpo ainda tão fresco de adolescente. O menino crescendo dentro dela era como se fosse um troféu. O pai orgulhava-se tanto, não fugia do clichê de escutar a barriga em busca de chutes, daqueles que permitem dizer que seria jogador de futebol, ou socos de pugilista, que fariam o pai sentir-se mais viril. Mas não, os esportes não eram o forte do moleque. Até o nono mês de gestação o pai esperou ali, mendigando um sinal, que nunca veio.

Os médicos disseram que era normal passar um pouco das 40 semanas. Havia vários casos relatados em que as crianças demoravam mais para se formar que o normal. Só que pouco tempo depois os mesmíssimos médicos estavam assustados, querendo tirar o menino dali de qualquer jeito.

Eu não quero meu filho pela metade, Ana bateu o pé.

Mudou de médico. Haviam feito a contagem errada, disse o doutor. Esse bebê está de 35 semanas. Se tivesse 50, já estaria morto. Mesmo estando certíssima sobre o tempo de gestação - afinal, ninguém pula 15 semanas - aceitou convenientemente aquela versão. Quando chegou a 40 semanas novamente, o doutor avisou que ia tirar, mesmo com o feto malformado. O pai, dessa vez, concordou. Esse menino tem de nascer, do jeito que estiver aí, vivo ou morto.

Não permitiria. Não ela, que esperara tanto, desde sempre.

A essa altura, Ana era apontada na rua pelas demais, uma aberração, com aquela barriga eterna, séculos de uma penosa gestação, sussuravam, maldita, amaldiçoada, pobrezinha, a coitada. Claro que preferia a galhofa à pena; principalmente quando tentavam convertê-la a essa ou aquela religião. Era tentador pedir a Deus que desse um fim em tudo aquilo, que colasse os pedaços que faltam e libertasse aquela criança. No entanto, ela nunca escolhia o caminho mais fácil.

Pegou as coisas da criança para sumir da vista de todos que a conheciam antes daquela gestação - incluindo o pai da criança que pensava em retalhá-la só para fugir daqueles olhares curiosos, enojados, assustados. Em sua nova vida, tentava usar roupas largas e se passar por uma obesa, uma gorda, uma balofa, dessas que caem de tanto comer, explodiria em um milhão de criancinhas. A tentativa de se empanturrar com chocolates e frituras para engordar o resto do corpo, tornar-se proporcional, fracassaram; estava condenada a ser gravida, uma sentença que continuava a consumir-lhe todas as calorias que ingerisse; a barriga era cada vez mais proeminente, mas o corpo continuava ostentando a magreza de sempre.

Para os médicos, sempre diferentes, ela continuava de 35 semanas. Trinta e cinto, vezes trinta e cinco, vezes trinta e cinco.

O que mudava era o olhar, inicialmente, de orgulho, mais tarde, de raiva, para as senhorinhas que puxavam assunto no ônibus. Que fase boa essa, como vai chamar? Ela não respondia mais nada, mudava de banco, fechava a cara, fingia estar dormindo. Por que para as outras tudo era tão fácil, uma benção, enquanto ela tinha de enfrentar uma maldição? Era fácil cair na autopiedade, mas ela resistiria.

Era por isso que aquele menino, mesmo faltando algumas peças, parecia uma conquista tão grande. Ele era o fim de uma gravidez de quantos anos? Dois? Quantos meses tinham dois anos? Perdera a conta. Eram mesmo dois anos? Ou cinco? Envelhecera tanto, a pele perdera o viço e o cabelo, o volume. Os meses nunca duraram tanto, noventa, cento e vinte dias, um ano inteiro.

Até que seria uma boa ter uma enfermeira sorridente para ajudá-la com o neném. Para dizer: mãe, não esqueça de fazer o menino arrotar; mãe, cuidado com a moleira. Agora, não havia ninguém para paparicá-la, só havia ela para repetir mãe, mãe, mãe. Naquele quartinho pequeno, sem fotografias, enfeites, roupinhas de criança, só havia um espelho meio sujo, uma penteadeira e a cama. O lençol coberto de sangue, todo tomado por um vermelho tão intenso que quase fazia desaparecer a faca de cozinha enferrujada.

E o menino chorava tão vivo que diluía todo o resto, a falta de luxo, a dor, a fome, o desamparo. Havia ainda o frio, uma fraqueza que mal lhe permitia segurar o rebento, as veias quase vazias de sangue, porém aquilo era nada, e a mãe não se continha de tanta felicidade.

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