Do lado externo de um prédio, piscava a frase FORA TEMER. Alguém havia projetado de um prédio próximo.
Como muitos que estavam naquele protesto fizeram, eu tirei o celular para tentar fotografar. Por algum problema, a foto não ficava boa. Tentei de novo, de novo, de novo.
Sinto uma mão sobre o celular e, quando vejo, uma bicicleta. Havia acabado de presenciar aquela cena, naquele mesmo protesto. Um sujeito passando de bike a toda velocidade, alguém gritando ladrão, ladrão, ladrão.
Não, aquilo nunca aconteceria comigo. Eu podia ficar em paz com o celular que custa metade do meu salário, aquilo não aconteceria comigo. Moro no centro, sou da periferia, os ladrões reconheceriam isso.
Sou um repórter, tenho que registrar, os ladrões reconheceriam isso. E aquela mão levando o celular, eu correndo atrás da bicicleta, eu jogando um objeto nas costas do ladrão.
Eram dois ladrões, eu joguei o capacete que levava comigo, um capacete de skatista que o jornal onde eu trabalho dava para impedir que eu morresse como aquele cinegrafista do Rio de Janeiro, o Santiago, para impedir que alguém jogasse um rojão e estourassem minha cabeça.
O capacete bateu em cheio nas costas do ladrão, mas era um capacete de plástico. O ladrão entrou numa descida e desapareceu. Ignorou que eu moro no centro, que eu cresci na periferia, que eu sou repórter, preciso registrar, ignorou meu capacete.
Uma ativista que eu sempre vejo nos protestos veio trazer meu óculos, isso está acontecendo toda hora aqui, ela disse.
Um sujeito de bigode e boné, uma Heinekein na mão, perguntou onde eu trabalhava. Eu disse: no jornal tal, um jornal da tal grande mídia, o que significa que nas ruas é como se eu fosse do Império, o próprio Dart Vader.
Então mereceu, ele disse. E depois: é isso que acontece quando se vai pra rua, mereceu. Um sujeito de bigode e Heinekein, provavelmente criado num apartamento, falando sobre rua comigo, que jogava bola descalço no asfalto.
Eu gostaria de ter dito que faz mais de uma década que estou na rua, que já estive em barracos com traficantes e entrei em prisões, que já vi amigos serem mortos nas ruas, que fui officeboy no centro. Mas o sujeito criado em apartamento via em mim um grande executivo da comunicação.
Eu pensei em dar um soco nele, mas depois lembrei: estou trabalhando, vou perder o emprego. A essa hora o ladrão já está longe, a essa hora já deve estar jogando Pokemón Go com meu celular.
Você não me conhece, não vou discutir com você. Um fotógrafo do meu jornal passou a discutir com o cara, eu fui embora.
Eu estava suado, com cara de idiota, a cara de idiota das pessoas que são roubadas na rua. Quando cheguei na redação, ninguém ligou para o meu celular roubado. A presidente da república havia acabado de cair, foda-se o meu celular, foda-se a zona leste, foda-se que você foi officeboy e jogou bola descalço.
O GPS do celular havia sido desligado, mas eu mandei uma mensagem para o ladrão: ladrão de merda, vou te buscar aí na favela do Moinho. Favela do Moinho fica perto do meu trabalho e, mesmo na minha cabeça que se diz livre dos preconceitos, é ali que os ladrões moram.
Eu, que já fiz várias matérias denunciando violência policial, fantasio com a Força Tática entrando lá e matando os dois. Fantasio comigo dizendo algo a eles, presos, espancados na delegacia. Agora, vão comer marmita estragada na prisão, seus bostas. Sinto que posso dizer algo melhor, mas não consigo pensar em nada.
Nos dias seguintes, entro várias vezes no aplicativo que localiza o celular, mas o GPS continua desligado. Os ladrões, ao desligarem o GPS, ignoraram toda a minha história. Os ladrões e o bigodudo. Os ladrões e a presidente que caiu e levou junto meu celular.
Fantasio a mim mesmo descobrindo quem é o bigodudo. Eu sou repórter, descubro qualquer um, de verdade, levanto seu patrimônio, sua vida, seu prontuário médico, tudo. Vou deixar uma carta enigmática na casa dele, vou fazer ligações ameaçando o bigodudo. Não, vou dizer a ele que bosta de ser humano ele é por comemorar o fato de alguém ter sido roubado.
Escrevo um post no Facebook sobre isso, muitas pessoas compartilham. Eu me pergunto se o bigode leu aquilo, se se sentiu mal. Eu me pergunto o motivo de ninguém me dizer: por que você está fazendo tanto drama por causa de um celular? É mesmo por causa de um celular? Não é só por 20 centavos.
Só falo sobre isso, ninguém mais quer almoçar comigo no trabalho. As pessoas devem estar lendo este conto e dizendo para si mesmas: esse cara enlouqueceu, daqui a pouco vai fazer um crowdfunding pedindo um novo Iphone 6, como a Bel Pesce da hamburgueria.
Uma semana depois, quando já estava esquecendo do assunto, encontro o bigode em um novo protesto. Ao contrário do que havia planejado, não digo nada a ele. Ele olha na minha cara, eu olho na dele, sinto que ele está sem graça. Está ao lado de um sujeito que trabalhou no mesmo jornal que eu, alguém que, na visão dele, merece ser roubado, morto, incinerado.
Não, não quero exigir coerência de um desses sujeitos que faz fotos por lazer, que não tem de pagar a mensalidade da casa, que não nunca pisou numa prisão ou numa favela, que não é da zona leste. Quero que ele saiba a verdade, só isso. Qual é a verdade?
Durante algum tempo, eu o observo. Ele picha um ponto de ônibus, dá risada, fala com os amigos. De vez em quando, olha pra mim.
Eu o filmo pichando o ponto de ônibus e penso em mandar o vídeo para a polícia. Descubro quem o sujeito é no Facebook, mando para a polícia, eu planejo. Ele vai se arrepender do que disse, eu sou da zona leste, eu registro porque sou repórter, vão comer marmita estragada na prisão, seus vermes.
Imagino a mim mesmo batendo na cara dele com uma máscara de gás que levo aos protestos. Batendo nele e no sujeito que pegou meu boné e mandou todos os moleques da escola cuspirem dentro quando eu tinha 14 anos.
Sou escorpiano, não esqueço nunca. Não acredito em horóscopo, apesar de ler todos os dias o horóscopo personalizado, feito com base na minha lua natal, sol e ascendente. Mas também leio o horóscopo do jornal, nada personalizado, só porque fica do lado das tirinhas. Às sextas, a pessoa que escreve o horóscopo sempre me manda transar.
O bigode vai embora, devagar, não corro atrás dele nem atiro meu capacete. Os ladrões já devem ter roubado uns 50 celulares na semana que passou, os protestos crescem, o novo presidente fala em 12 horas de trabalho por dia, reforma da previdência.
Imagino o presidente de bigode, pedalando uma bike a toda, cuspindo no meu boné, eu jogando uma garrafa de Heinekein nele pelas costas, a zona leste me aplaude, os officeboys, muitos likes no Facebook, meu celular reaparece misteriosamente na porta de casa, horóscopo dizendo que o sol entrou no meu signo, prenunciando uma era dourada na minha vida, uma era de pacificação e sexo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário