Gosto muito mais da ficção que da realidade. Mais interessante e sedutora, a primeira me deixa louco com sua indiferença, um flerte dissimulado e cruel. Me faz esquecer do mundo.
Prática e muitas vezes justa, a segunda me cerca de um jeito que me deixa sem saídas. Cheia de si, despeja na minha cara: "Você tem fantasias com ela, mas só sobrevive no meu colo". Com medo de ser rejeitado, caio nos braços da pragmática realidade.
Sempre quis ser escritor, desde que aprendi a ler, antes de muita gente da minha idade. Edito e reedito um livro desde 2002. Ficção que continua impressionantemente impublicável e que, graças aos devidos cortes, nunca passa das 50 páginas. Largo dela por anos, não coincidentemente nos períodos em que mais trabalho como repórter. Chego a sentir estar no caminho certo até tropeçar no cansaço e na frustação. Me pego sonhando com as delícias da cama da outra.
Realidade e ficção são, na minha vida, duas irmãs lutando por atenção. Suas motivações são diferentes como uma é o avesso da outra. A realidade me quer porque tem certeza que pertenço a ela. A ficção, por sua vez, pretende apenas me tirar os braços da outra, sem dar a mínima garantia.
Às vezes, tenho vontade de matar as duas. Só não o faço por puro egoísmo.
quarta-feira, 28 de outubro de 2009
quarta-feira, 21 de outubro de 2009
Doce ignorância
Pode acabar o café do pote. Pode acabar o amor do pote. O futebol pode acabar. A cerveja pode azedar. O céu, o mar, a lua. As senhoras gordas podem estampar as revistas de mulheres nuas. Clarear para sempre a noite pode. O silêncio pode trancar os dentes e o estômago ficar cheio de serpentes. Desde que eu não saiba, tudo pode.
sexta-feira, 9 de outubro de 2009
Semelhanças
A morte lhe parecia um fim louvável. Menos dolorosa do que as amenidades que assolavam o juízo costumeiramente. O calo que doía no pé, o medo de morrer de câncer, a saudade de um tempo que sequer existiu de verdade, os juros dos agiotas que comiam os reais que não tinha, o pressentimento repetitivo de ter deixado o fogo ligado em casa, os pêlos que nasciam no nariz, a barriga que teimava em crescer, o time que perdeu a garra. Não, não aguentava mais aquilo. Sacou a pistola do bolso. Tirou o pente, conferiu: 16 balas. Colocou de volta. O suficiente para acabar com calos, pêlos no nariz, porém, sem poder de fogo contra os juros ou o câncer ou a saudade. Limpou a arma com a camiseta. Pegou o telefone celular. Mensagem recebida: a grana está na mão. Apontou para a cabeça e atirou sem olhar. Um baque seco. O barulho do corpo caído no chão. Pareceria um boneco, não fosse pelo tremor das mãos. Era como assistir a própria agonia. Aqueles olhos castanhos claros iguaizinhos aos seus, mesmo por debaixo da venda, o espreitavam, o julgavam e condenavam. A boca tentava morder o pedaço de fita adesiva que a lacrava. Conversando com o outro mentalmente, dizia, não foi só o dinheiro. Sabia que ele ouviria, sempre ouvira. É a minha liberdade também. Você faria o mesmo que eu se estivesse no meu lugar, sabemos disso. Eu, por minha vez, também te julgaria, assim como você fez comigo, e o condenaria. Afinal, fomos iguais, desde o ventre apertado que dividimos, desconfortavelmente iguais. Mas, agora, ambos estamos livres, irmão, posso dizer sem ódio nenhum, irmão, livres.
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