quarta-feira, 31 de março de 2010

A despedida do rei

Continuarei sem nada pedir. Não receberei, porém, nada menos do que quero. A medida das coisas é a medida do meu desejo. É-me preferível o vazio à satisfação pela metade. Minha cabeça não processa metades. Não me lembro de me flagrar querendo tomar meia taça de vinho ou comer meio pedaço de pão. Admito que, em momentos de covardia, cheguei a agradecer metade como se fosse o dobro ou o triplo. Mas tenho a desculpa justa de poder chamar essas ocasiões de diplomacia.

Posso até lidar com os excessos, mesmo que seja encharcado por eles, mas perdi a paciência para a falta. Pois ela, a vida, que me cativou pelo exagero, passou a administrar-me, de repente, pelo regime da escassez. Caso a privação fosse temporária, ocasional, só serviria para ressaltar as benesses de um cotidiano marcado pela abundância. Agora, quando o muito só aparece na insustentabilidade do pouco, lembra uma cereja sem bolo, flutuando no ar sem razão alguma de existir.

Sou eu a cereja sem bolo. Ao ver a coroa separar-se da minha cabeça, depois de uma longa vida a serviço do povo, minha coroa levada pelas mãos sujas daqueles barbudos grosseiros, desses bárbaros travestidos de revolucionários, fico com mais pena dos meus súditos que de mim. Nesse momento de esperança, de ilusão, transfiguraram-se em mim. Cada um em sua choupana pensando: sou a nova majestade. Todos eles degustando lavagem com a arrogância de quem está prestes a se deliciar com lagosta e vinho. Não desconfiam, os pobrezinhos, que minha coroa só cabe em uma cabeça de cada vez; e só encaixa direito em uma, a minha, não importa quantos se achem donos dela.

Nesse catre, não tocarei em nenhuma comida que não tenha sido feita pelo meu cozinheiro e não beberei nenhuma bebida que não venha da minha adega. Estando meu cozinheiro preso e minha adega sendo violentada por paladares bárbaros, definharei de cabeça erguida, sem dar a eles o gosto de transformar minha queda em um espetáculo. O show será dado pelos próprios barbudos revolucionários, que matarão uns aos outros na tentativa de sentar no meu trono até não sobrar mais ninguém.

O contra-ataque dos meus cavaleiros, mais hora menos hora, deve chegar até aqui. Não pretendo esperá-los, porém, sob pena de perder meu tempo e dignidade. É bem provável que eles percam batalhas e acabem nas masmorras. Alguns podem acabar juntando-se ao inimigo, o que seria muito doloroso de se ver _ cavaleiros guerreando ao lado de soldados amadores?

A essa altura, a única coisa que aceitaria deles, mesmo que abaixo do meu nível de exigência, seria uma mulher. Não precisaria ser linda, bastaria que fosse jovem, limpa e que não fosse a rainha _ colocada em outra cela, no único gesto de hombridade por parte dos bárbaros. As câmeras por todos os lados tirariam a privacidade durante o ato, mas eles certamente aprenderiam alguma coisa vendo a cópula real. Não, por mais selvagens e despreparados que eles sejam, jamais me dariam essa oportunidade _ certamente o populacho ficaria impressionado com a minha performance e me levaria nos braços de volta ao trono! O que eles querem, acima de tudo, é o contrário: desmontar minha imagem pública, com o bisturi sempre eficaz das ilhas de edição. Quem sabe montar um filme mostrando minhas últimas horas de vida, minhas intimidades, meus momentos de fraqueza?

Se depender de mim, perderão seu tempo. Mesmo no único trono que me resta, trato de manter a compostura que nos diferencia. Ao fim de tudo, só me arrependo de não viver o suficiente para ver no que eles se transformarão. Vira-latas com jubas de leão, talvez? Pastiches de rei, com roupas de soldados? Tivesse a companhia de um dos meus magos, poderia ver o futuro em qualquer talher de prata. Mas queimaram-me os feiticeiros e roubaram-me a prata, portanto, resta-me apenas a imaginação para rir deles durante tempo que ainda tenho.

2 comentários:

  1. Parabéns, Artur pelo texto. Você escreve com o coração, sua caneta são os sentimentos. Um grande abraço amigo!

    Mário Augusto de Souza

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  2. Muito obrigado! Apareça sempre. Abraço

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