terça-feira, 22 de junho de 2010

Talvez seja eu, talvez

Tento achar a solução para minha vida num horóscopo da internet, feito por um computador tão bom em escrever coisas genéricas que parece mesmo que fala só para mim. Falasse outras coisas, o contrário, talvez eu tivesse a mesma impressão de exclusividade. Simplesmente porque não tenho a mínima ideia de quem sou (o que o horóscopo chama com o pomposo nome de "o retorno de Saturno").
Tenho, sim, a impressão de saber quem fui. Quase milimetricamente, claramente. Mas, feito o cachorro que corre atrás do rabo, sempre chego atrasado a mim mesmo. Quando passo a saber quem sou, já não sou mais essa pessoa.
Às vezes, queria ser ninguém. Ou simplesmente escolho um dos milhares que fui e me apego àquela figura com uma nostalgia melancólica, como se o melhor de mim tivesse dissolvido na matéria da vida. Ou posso querer ser outra pessoa: quantas vezes quis ser outras pessoas, problemáticas e charmosas, famosas ou anônimas, pessoas!
Talvez possa tentar me apegar ao que queria ser, ao que serei. Mas esse exercício revelou-se uma enorme perda de tempo, já que sempre que fui o que queria estive completamente insatisfeito e amarrado por essa situação. Quando não fui, porém, não pude escapar da frustração, esse sentimento que adora tripudiar sobre a gente, aquela voz que ri quando perdemos um pênalti.
Qual é a solução para isso? Obviamente, não será nesse texto que alguém vai encontrar. Talvez quem esteja lendo isso saiba perfeitamente quem é, e por isso zombe da minha falta de autoconhecimento. Talvez sua personalidade seja algo tão palpável que você possa montá-la e desmontá-la feito lego. Comigo as peças encaixáveis derretem-se umas sobre as outras até formar uma massa disforme que sou obrigado a chamar de eu.
Trata-se de um estado labiríntico e kafkiano, cheio de portas que dão umas nas outras infinitamente. Soubesse quem sou, certamente não saberia responder à pergunta seguinte: "O que eu quero?" Li em algum lugar que a vida é uma peça em que o ator entra em palco, gagueja em sua única cena e depois desaparece para sempre. Talvez _ novamente, essa palavra! _ essa seja minha fa,fa,fa, faaaa...

quarta-feira, 16 de junho de 2010

A magia nas prateleiras

Matéria minha publicada no início do mês no Jornal do Commercio, sobre o cara que escreveu o conto que inspirou o nome deste blog.

» LITERATURA
O mundo fantástico de Rubião
Editora Companhia das Letras reúne em um único volume os 33 contos do escritor mineiro. Sobrenatural é uma das características mais marcantes da obra deste autor de poucas palavras

Artur Rodrigues
Especial para o JC
Pouco mais de 200 páginas. A isso se resume a obra completa do escritor Murilo Rubião (1916-1991), que acaba de ter todos os 33 contos que publicou em vida relançados em volume único pelo selo Companhia de Bolso (da Companhia das Letras). Não se engane pelo tamanho, quando se trata de Rubião, a escassez torna cada uma das páginas mais valiosa. De tanto reescrever, numa incessante ourivesaria, mais justo seria chamá-lo de reescritor. Escreveu muito, aproveitou pouco, publicando sete livros magricelas, tão finos que mesmo juntando todos fica difícil deixá-los de pé na estante. Talvez por conta dessa economia, talvez pela pouca tradição brasileira na literatura fantástica ou por insistir no conto como único meio de expressão, um dos precursores do cultuado realismo mágico viva ondas de reconhecimento e esquecimento, sendo hoje quase desconhecido no Brasil.
Antes mesmo que o principal nome do realismo mágico, Jorge Luís Borges, lançasse seus primeiros volumes de contos, Rubião já tentava publicar seu primeiro livro, O dono do arco-íris, em 1939. Tão estranhas eram as histórias para a época que só em 1947 ele conseguiu achar quem topasse publicar o livro, mas com o nome alterado para O ex-mágico da Taberna Minhota. A história-título narra a melancólica vida de um homem que se torna funcionário público (um jeito de “suicidar-se aos poucos”) na tentativa de acabar com os inconvenientes poderes mágicos. “Um dia dei com os meus cabelos ligeiramente grisalhos, no espelho da Taberna Minhota. A descoberta não me espantou e tampouco me surpreendi ao retirar do bolso o dono do restaurante”, relata o personagem, sobre o momento em que deu conta de que estava vivo.
Essa total falta de surpresa com o sobrenatural é uma das características mais marcantes das criaturas rubianas. Em vez de partir de uma situação comum que vai ganhando contornos extraordinários gradualmente, como faziam então a maioria dos escritores, as narrativas de Rubiãojá começam totalmente imersas em um universo fantástico e opressor. Daí a sensação de se estar lendo algo muito parecido com Franz Kafka em contos como A armadilha, A fila e Os comensais.Rubião admite a semelhança com a obra do autor de O processo, mas garante só ter descoberto o escritor depois de publicar seu terceiro livro.
Entre as inspirações assumidas, está nosso defunto-escritor, Brás Cubas, narrador da primeira e mais importante história fantástica brasileira, escrita por Machado de Assis. Homem de pouca fé, como Brás Cubas e o próprio Machado, Rubião foi buscar na Bíblia a magia para seus contos. Cada uma de suas narrativas tem uma epígrafe bíblica, uma conversa mantida entre o escritor e o mais fantástico livro da história. O Apocalipse, para Rubião, era um “manual de surrealismo”. Já os amigos ilustres, como os escritores mineiros Otto Lara Resende, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos e Hélio Pellegrino, pouco influenciaram na temática rubiana. Na forma, porém, foram fundamentais. Convenceram um mau poeta a tornar-se um primoroso contista. Um escritor que escrevia mais para si que para os outros, que rasgou dois livros de poesia e ninguém sabe quantos de prosa. Coisa de enredo fantástico, chegou a perder os originais de um livro inédito em um táxi em BH.
A vida de jornalista e funcionário público na capital mineira também pode ser captada nos contos de Rubião. Travestidos de pesadelo, estão lá a burocracia do funcionalismo público, o enlouquecedor ambiente das redações de jornal e o caos da cidade em crescimento. Um mundo onde impera um eterno presente, sem esperança nem chance de fuga da rotina, impregnado de uma desolação que tem um quê de bela e irônica. Rubião, com maestria, subverte a lógica que conhecemos para denunciar quão absurda a realidade é.


domingo, 6 de junho de 2010

A mulher dos olhos de abismo

A viagem de avião custava a acabar. De olhos semicerrados, tentava dormir. De repente, meus pelos se arrepiaram. Era como se, subitamente, estivesse completamente só na vida. Abri os olhos. Não olhei diretamente para ela. Era a única luz acesa, a luz de leitura do avião que iluminava os olhos da velha. Como se tivesse atraído por um imã, meu olhar vagueou até encontrar com o dela. A mulher dos olhos de abismo.

Era uma velha dos cabelos cinzas e olhos negros. Segurava uma boneca com força. Enquanto olhava para mim com seu olhar malicioso, apertou a barriga da boneca, que soltou um grunhido de dor. Senti aquele ruído ecoar dolorosamente dentro de mim. Na minha cabeça, uma voz cantava: “A mulher dos olhos de abismo guarda a morte no peito. Esconde, sob trejeitos de carinho exagerado, a dor de ter nascido.”

E eu estava em queda livre. Não tenho ideia de quanto tempo durou. Eu estava vidrado nos olhos dela e, para minha surpresa de descrente, vi brotar uma reza da minha boca. A reza dos desesperados, dos que não têm mais nada, dos casos perdidos.

Coloquei meus óculos escuros, enquanto lágrimas umedeciam todo meu rosto. A velha, pela primeira vez, hesitou em olhar, esticando e recolhendo a cabeça várias vezes. A movimentação me lembrou a de um animal brincando com a caça, prestes a devorá-la, jogando a para o alto com a boca.

Desorientado, tentando desviar a atenção daquilo tudo, pego meu caderno e começo a rabiscar essas palavras. A luz se acende e o comissário de bordo anuncia o pouso próximo. Ela continua olhando para mim. Eu continuo escrevendo.

A velha se levanta e caminha em direção ao banheiro do avião. Dá alguns passos e desmaia. Sim: tomba bem no meio do corredor!

Aos poucos, vou recobrando as forças. Tenho vontade de levantar, ir até ela enche-la de chutes. Deixo de fazê-lo não por qualquer espécie de escrúpulo, mas por medo. Alguns levantam de suas poltronas e vão acudi-la. Repito em voz baixa: “puta, puta, puta, puta”.

A velha é colocada em uma poltrona onde não consigo vê-la. Está com duas mulheres, uma delas carregando a boneca. Aparentemente, são filhas dela. Não entendo bem a situação: fico imaginando pra que a porra da boneca. Não consigo chegar a uma conclusão. O que aconteceu, afinal?

O avião pousa. Fico sentado na minha poltrona, esperando que elas saiam do avião. Estou curioso e resolvo levantar para vê-las. As avisto de costa. Estão lá, as três, com seus brinquedos e malas. Gente comum, gente invisível, como todas as outras. A velha vai no meio, escorada. Some na turba do aeroporto. Respiro fundo, demoradamente. O abismo está nos olhos de quem, nos meus ou nos dela? Com os pés no chão, fica difícil saber.