Esse conto é dedicado a todos os burocratas do mundo
Davi não percebeu, mas a velhinha para a qual teve de dar lugar no metrô fechou os olhos e dormiu para sempre. Também pudera, a mulher parecia estar morta mesmo enquanto andava, não mudou muito seu aspecto depois que deixou de respirar. Deu lugar para a velha, assim, sem sorrir, sem dizer nada, apenas saiu ao vê-la aproximar-se para evitar qualquer espécie de contato. Estava com um mau-humor fora do comum naquela manhã, não queria conversa.
Ao sair da estação de trem, parou num boteco, tomou um café e comeu uma coxinha. Saíra apressado, sem tomar café de manhã, mas arrependera-se. A empresa que morresse, não deixaria de alimentar-se por causa daqueles vermes! Ia pensando nisso e noutras irritações, quando um carro passou sobre uma poça d’água, molhando-lhe inteiro. Bastou o automóvel sair do campo de visão de Davi para estatelar-se no poste.
Chegou à redação do jornal em que trabalhava como repórter, uma redação feia, amarelada dos cigarros de outros tempos, cheia dos fantasmas dos jornalistas escravizados e sofredores, e lá estava a chefia de cara feia. O editor disse apenas: o fotógrafo e o motorista estão esperando você no carro. Ao chegar no veículo, foi informado de que iria fazer a cobertura do enterro de um sujeito morto em um assalto. Odiava aquele tipo de matéria, os malditos editores nunca tiravam a bunda da cadeira e ele é que era xingado de urubu pelas famílias dos mortos. Daquela vez não foi diferente, chegou a discutir com a viúva, alegando que tinha de trabalhar e que o cemitério era público. Tinha de dizer alguma coisa, mesmo que discordasse de si mesmo. Sua presença inconveniente foi relegada para segundo plano quando a mulher teve um ataque cardíaco e morreu segurando a mão do marido morto. Cena de cinema, teve uns tremeliques e, romanticamente, foi dessa pra melhor ao lado do amado.
Voltou ao jornal com a manchete na cabeça: ladrões matam marido a balas e viúva do coração. Chegou empolgado para cantar a pauta, mas ninguém deu muita bola para a matéria. Um vírus poderoso havia atacado e boa parte da chefia fora internada em estado grave, estavam à beira da morte, sussurravam os fofoqueiros do fumódromo. Sua reportagem virou uma nota e logo ele se viu em casa, estressadíssimo, depois daquele dia péssimo. A mulher passou por ele reclamando da demora e seguiu para a sacada, de onde continuou resmungando que agora ele batia ponto no boteco, que esquecera que era casado, que isso e que aquilo. Davi não aguentava mais: mandou-a à merda. Foi pronunciar a frase e ouviu um grito, seguido de um barulho alto, um impacto, segundos depois. Era ela quem caíra da sacada enquanto ajeitava um vaso de flores.
Não quis esperar pelo elevador, tropeçou várias vezes na escada, desceu os 15 andares na esperança de encontrar a mulher respirando. Ao chegar ao térreo, havia apenas uma massa disforme, que em nada lembrava a morena bonita que ainda há pouco recebera-lhe em casa um beijo carinhoso e uma recriminação inocente. Amaldiçoou a Deus, morra, a si mesmo, morra, repetiu, como costumava fazer mentalmente quando estava com muita raiva de alguém, morra, morra, morra! Em seguida, olhou para o alto, sem esperança. A última coisa que viu foi um velho de cabelos longos brancos, barba maior ainda, o próprio Deus caindo sobre sua cabeça. Antes de ser esmagado pelo traseiro do próprio Criador ainda teve tempo de dedicar um derradeiro pensamento à humanidade: morram!
quinta-feira, 24 de março de 2011
sexta-feira, 18 de março de 2011
Confesso, Senhor, eu caí no pecado da abertura de empresa. Fechai-a, Senhor
Se Eva fosse brasileira, em vez de comer e oferecer a maçã para Adão, certamente ela abriria uma empresa no seu nome. Seria, então, como no Velho Testamento, banida do Paraíso do sossego, na luta para manter e principalmente fechar uma empresa, pisoteada pelos dinossauros da burocracia, com uma pasta debaixo do braço, carregando certidões para cá e para lá.
Pois eu cometi esse pecado. Sim, eu pequei. Abri uma empresa. Não me tornei empresário, mas abri a empresa apenas para poder trabalhar, porque as empresas todas hoje não nos querem empregados, mas empresas, para que, paradoxalmente, possamos ser empregados novamente. Pois, resumindo, eu pequei.
Parei de prestar serviços para a empresa X e, por isso, resolvi também deixar de ser pseudo-empresário, uma condição que deixa constrangido um anarquista feito eu. Pois faz 20 dias que saio da Receita Federal para a Caixa Econômica, mudando isso e aquilo, porque, dizem os funcionários públicos, aqui nesse campo você tem que colocar B maiúsculo e não b minúsculo e blá, blá, blá.
Ontem, me vi numa tarefa quase impossível. Tinha de achar, acreditem, um disquete! Sim, porque a Caixa Econômica Federal só aceita disquetes, nada de pen drive, CD, DVD, blue tooth. Rodei lojas e mais lojas de informática, enfrentando risos e piadinhas, o que, disquete? Alguns nem sabiam o que é disquete. O mais próximo que cheguei dos disquetes foi quando achei uma caixa para botar disquetes. Temos fita cassete mas não disquete, lamentou a vendedora mais educada que encontrei pela frente. Quando não tinha mais esperança, via-me condenado a ser um empresário para sempre, todo sempre!, um disquete apareceu-me nas mãos em casa, misteriosamente, como essas coisas que acontecem nos contos de Borges. Findou-se o episódio disquete, mas tenho ainda uma longa jornada pela frente.
Engraçado que o nome fantasia da minha da empresa era Odisseia. Pois a denominação se revelou profética, levando em conta a odisseia que enfrento para livrar-me da dita cuja, atravessando oceanos de má vontade dos funcionários públicos, tempestades de burocracia, para voltar, enfim, a ser um civil, quando, poderei, finalmente, aliviado, abrir uma cidra cereser e rasgar minha CPSC (Certidão Positiva de Saco Cheio).
Pois eu cometi esse pecado. Sim, eu pequei. Abri uma empresa. Não me tornei empresário, mas abri a empresa apenas para poder trabalhar, porque as empresas todas hoje não nos querem empregados, mas empresas, para que, paradoxalmente, possamos ser empregados novamente. Pois, resumindo, eu pequei.
Parei de prestar serviços para a empresa X e, por isso, resolvi também deixar de ser pseudo-empresário, uma condição que deixa constrangido um anarquista feito eu. Pois faz 20 dias que saio da Receita Federal para a Caixa Econômica, mudando isso e aquilo, porque, dizem os funcionários públicos, aqui nesse campo você tem que colocar B maiúsculo e não b minúsculo e blá, blá, blá.
Ontem, me vi numa tarefa quase impossível. Tinha de achar, acreditem, um disquete! Sim, porque a Caixa Econômica Federal só aceita disquetes, nada de pen drive, CD, DVD, blue tooth. Rodei lojas e mais lojas de informática, enfrentando risos e piadinhas, o que, disquete? Alguns nem sabiam o que é disquete. O mais próximo que cheguei dos disquetes foi quando achei uma caixa para botar disquetes. Temos fita cassete mas não disquete, lamentou a vendedora mais educada que encontrei pela frente. Quando não tinha mais esperança, via-me condenado a ser um empresário para sempre, todo sempre!, um disquete apareceu-me nas mãos em casa, misteriosamente, como essas coisas que acontecem nos contos de Borges. Findou-se o episódio disquete, mas tenho ainda uma longa jornada pela frente.
Engraçado que o nome fantasia da minha da empresa era Odisseia. Pois a denominação se revelou profética, levando em conta a odisseia que enfrento para livrar-me da dita cuja, atravessando oceanos de má vontade dos funcionários públicos, tempestades de burocracia, para voltar, enfim, a ser um civil, quando, poderei, finalmente, aliviado, abrir uma cidra cereser e rasgar minha CPSC (Certidão Positiva de Saco Cheio).
terça-feira, 15 de março de 2011
Perdoa-me por te traíres
Nunca fui de confissões públicas, mas acho que explodiria se não o fizesse dessa vez. Eu traí, traí descaradamente, continuo traindo, remoído pela culpa, porém incessantemente. Traio de manhã, de tarde e de noite. Acordo de madrugada para trair, sonhando com o objeto de meu desejo.
Quem me conhece sempre soube que nutro um sentimento de fidelidade canina aos meus amores, recusando-me a cair nas tentações por mais tentadoras que sejam. Dessa vez, no entanto, fechei os olhos para meu primeiro amor e traí. Não foi por influência dos outros, quer dizer, claro que via todos fazendo o mesmo, mas resistia, resistia.
No começo, eu fazia pouco caso. Nessa eu não vou não, que é chave de cadeia. Mas numa noite estava eu lá, em Londres, solitário, e aconteceu. Meu crime é maior porque foi premeditado. Estava eu, um pint de Guinness, no meu sujismundo apartamento em Elephant and Castle, acompanhado apenas das baratas ali moravam, quando disse a mim mesmo: não vou mais resistir! Por que resistir?
Lá fui eu, naquela mesma hora, tomar a atitude que achei que nunca tomaria. Liguei meu computador e, segundos depois, não havia mais volta. Havia comprado pela internet um leitor eletrônico de livros, sim, o maior pecado do mundo para um cara como eu, que sempre tratou os livros como pessoas _ mesmo porque eles são claramente mais confiáveis!
Pois com meu e-book acontece pior: trato-o não só como pessoa, mas como um bebê. Quando desembarquei novamente no velho e bom Brasil, trouxe-o em embrulhinho, cheio de panos para absorver qualquer impacto, para proteger a criança de uma queda, um esbarrão, sabe-se lá, o mundo de hoje é tão perigoso. Desde então a culpa me corrói.
Ainda espero fazer as pazes com eles, mas hoje quando passo perto de uma estante de livros olho para os pés, envergonhado. Quase espero sentir a cusparada sobre mim, os insultos, uma frase, só, severa, dizendo: traidor! Imagino uma capa dura dessas parrudas, de Ulysses ou Moby Dick, arremessada sobre minha cabeça. As palavras certamente me fugiriam para responder a um ataque desses, então, geralmente eu corro para casa e caio nos braços do e-book, lendo de tudo de uma só vez, de tratado filosófico a Sherlock Holmes, numa orgia que nunca tive coragem de cometer, abandonando obras pela metade, atravessando livro na frente de livro, indecentemente, numa espécie de suruba literária. Que me salvem a Bíblia, o Alcorão, o Livro de Krishna, os ensinamentos de Buda, todos eles devidamente arquivados na minha biblioteca eletrônica.
Quem me conhece sempre soube que nutro um sentimento de fidelidade canina aos meus amores, recusando-me a cair nas tentações por mais tentadoras que sejam. Dessa vez, no entanto, fechei os olhos para meu primeiro amor e traí. Não foi por influência dos outros, quer dizer, claro que via todos fazendo o mesmo, mas resistia, resistia.
No começo, eu fazia pouco caso. Nessa eu não vou não, que é chave de cadeia. Mas numa noite estava eu lá, em Londres, solitário, e aconteceu. Meu crime é maior porque foi premeditado. Estava eu, um pint de Guinness, no meu sujismundo apartamento em Elephant and Castle, acompanhado apenas das baratas ali moravam, quando disse a mim mesmo: não vou mais resistir! Por que resistir?
Lá fui eu, naquela mesma hora, tomar a atitude que achei que nunca tomaria. Liguei meu computador e, segundos depois, não havia mais volta. Havia comprado pela internet um leitor eletrônico de livros, sim, o maior pecado do mundo para um cara como eu, que sempre tratou os livros como pessoas _ mesmo porque eles são claramente mais confiáveis!
Pois com meu e-book acontece pior: trato-o não só como pessoa, mas como um bebê. Quando desembarquei novamente no velho e bom Brasil, trouxe-o em embrulhinho, cheio de panos para absorver qualquer impacto, para proteger a criança de uma queda, um esbarrão, sabe-se lá, o mundo de hoje é tão perigoso. Desde então a culpa me corrói.
Ainda espero fazer as pazes com eles, mas hoje quando passo perto de uma estante de livros olho para os pés, envergonhado. Quase espero sentir a cusparada sobre mim, os insultos, uma frase, só, severa, dizendo: traidor! Imagino uma capa dura dessas parrudas, de Ulysses ou Moby Dick, arremessada sobre minha cabeça. As palavras certamente me fugiriam para responder a um ataque desses, então, geralmente eu corro para casa e caio nos braços do e-book, lendo de tudo de uma só vez, de tratado filosófico a Sherlock Holmes, numa orgia que nunca tive coragem de cometer, abandonando obras pela metade, atravessando livro na frente de livro, indecentemente, numa espécie de suruba literária. Que me salvem a Bíblia, o Alcorão, o Livro de Krishna, os ensinamentos de Buda, todos eles devidamente arquivados na minha biblioteca eletrônica.
segunda-feira, 7 de março de 2011
Anotação sobre o carnaval
Carnaval em Olinda, sem carro alegórico ou trio elétrico, a única preocupação é equilibrar-se sobre as próprias pernas.
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