Desde que nasci, me lembro daquela vozinha gritando dentro de mim. Sem muita lógica, esperneava contra tudo que fosse norma. Batia o pé contra regras, autoridades, tradições. Lembro que os adultos me chamavam de “do contra”. Um pequeno do contra, dizendo não, não e não. Não para o Papai Noel, para as verduras, para o cabelo penteado, para o banho (há maior instrumento dominação para uma criança do que o banho?!).
Aos poucos, fui aprendendo a reconhecer essa voz. Às vezes, com irritação, porque todos querem ser aceitos. Outras, com orgulho, porque ninguém quer ser só mais um na manada. Quem falava era o pequeno anarquista dentro de mim, um sujeito extremamente radical que me fez detestar ricos e chefes desde sempre, por saber que só se vira rico ou chefe passando por cima dos outros, da liberdade e do direito dos outros.
Quando decidi virar repórter, uma das minhas maiores motivações era poder fazer alguma coisa contra os policiais militares que nos esculachavam na rua _ por nós, digo a molecada da periferia, que andava de skate e ficava bêbada de vinho vagabundo. Nos meus primeiros anos de carreira, descobri grupos de extermínio, acabei ameaçado, fui responsável pelo afastamento de dezenas de policiais. Mais adiante, fui notando que muitos PMs eram apenas os braços de algo muito maior. Em uma série de matérias, consegui o afastamento de uma juíza corrupta, que se achava a dona de uma cidade. Em outra escala, descobriria eu, também ela era microscópica.
Meu grilo falante subversivo ficou satisfeito por um tempo. No entanto, ele era perspicaz, sabia que a felicidade era um sentimento comodista, diferente pela busca pela felicidade, que nos faz mudar e mudar. Ele me fez notar que, como jornalista, eu mesmo sou um conformado. Os jornais, da forma como se constituem, com uma sala de vidro no meio, onde sentam os oráculos da chefia, são instrumentos de repressão tanto quanto um quartel da PM. O mesmo veículo que fala sobre trabalho escravo pode obrigar um funcionário a trabalhar 20 horas diárias. O psicopata cerebral pode torturar com o poder da mesma forma que faz o psicopata visceral com uma faca.
Larguei por um tempo dos jornais. Viajei, li, me apaixonei, enlouqueci, saí de mim. Depois disso, o apetite do meu baderneiro interior por subversão foi ficando desproporcional. Tento saciá-lo com porções de Clube da Luta, Taxi Driver, Laranja Mecânica, doses do meu mestre Kafka, pílulas efervescentes de Clash e Racionais e, menos freqüentemente, uma injeção cavalar de Nietzsche.
Sei, porém, que tudo isso não passa de paliativo. Quando obedeço a uma ordem com a qual não concordo, curvo-me a um superior hierárquico sacana, finjo não estar ligando para os pés que esmagam a mim e aos meus companheiros, não consigo desviar os olhos do verdadeiro tirano, o que dá poder a PMs, juízes, chefes e presidentes: o sujeito no espelho, buscando diversão, alívio, conforto, felicidade, admiração, seja lá o que for. Esse sim é o grande e verdadeiro adversário do pequeno anarquista.
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