Dá para medir o tamanho da crise econômica na Europa zanzando por Londres, mais especificamente, pelos porões da cidade. Explico, é que aqui, nos hotéis, restaurantes, lojas, quase sempre, há uma entrada e aposentos para empregados que ficam abaixo do nível da rua. Estou me tornando um verdadeiro especialista em circular por esses labirínticos espaços.
Mas onde entra a crise? No fato de que não só brasileiros, indianos, chineses, africanos, tailandeses e outros imigrantes de países em desenvolvimento estão entre meus colegas de trabalho como garçom, para ganhar seis libras por hora. Também há, cada vez mais, europeus. Gente que fez faculdade, mas está desempregada em seus países. Ontem mesmo, trabalhei com um italiano da cidade de Peruja. Na semana passada, com duas espanholas das Ilhas Canárias. Na outra, uma francesa. Será possível saber que a coisa está afundando de vez quando eu começar a encontrar suíços, alemães ou pessoas de Andorra e de Luxemburgo carregando bandejas.
Tomando uma cerveja em Bricklane, uma espécie de rua Augusta daqui, encontrei João, 43 anos, um sujeito inteligente e bom de papo, que parecia estar feliz por falar a própria língua com alguém. Português, ele já trabalhou em construções e em cozinhas no Reino Unido. Cansou de tudo isso, foi morar numa invasão e espera chegar o benefício do governo. Quer viver às custas da rainha, disse o simpático malandro, enquanto tomávamos umas cervejas pra aquecer uma noite que devia estar pelos seus 3, 4 graus.
Durante o papo, ele botou para correr um mendigo que veio pedir um trago, mostrando sua credencial para vender uma revista beneficente, feita para sustentar os homeless. Perguntei para ele se nunca nenhum inglês demonstrou sinais de xenofobia contra ele. Rapidamente, me vi com um pedaço de ferro sobre o meu pescoço, sem ter como me mover. "Nesses casos, eu digo pra eles: 'Ou você me trata como um ser humano ou...'", disse João, com um sorriso no rosto e colocando de volta o pedaço de ferro em sua mochila. Depois de conhecê-lo, passei a ter certeza de que, assim como os sonhos de padaria e a bacalhoada, o jeitinho brasileiro é um produto importado.
quinta-feira, 25 de novembro de 2010
sexta-feira, 19 de novembro de 2010
Crônicas londrinas - Operação Elephant and Castle
No último episódio dessas crônicas londrinas, eu me vangloriava da bela localização da minha casa, na Zona Leste da Metrópole, na saudosa Bethnal Green. Cansado de trabalhar feito louco, carregando bandejas para cá e para lá na festas dos ricaços, só para pagar o vultoso aluguel, nosso herói fez feito os pássaros no inverno e voou para o Sul, em busca de um aluguel mais barato. Next stop is... Elephant and Castle.
Eu e meu futuro parceiro de quarto, o jornalista, garçom tarimbado e galã de novela mexicana, Talis Maurício, seguimos para verificar a casa que eu havia encontrado em um site daqui, uma espécie de Primeira Mão sem aquela maçã nem aquela argentina dos comerciais. Não querendo ser indiscreto, mas o caminho entre a estação de metrô e a casa assustou meu companheiro de jornada. Não sei o que alarmou tão bravo homem foi o grasnado de algum corvo, há muito deles por aqui, ou paisagem lúgrube, tomada pelo fog londrino. O apartamento ficava dentro de um condomínio de prédios de aspecto meio tenebroso. Nos perdemos lá dentro e, quando pensávamos em desistir, ouvimos uma voz. Era um vulto, sobre uma espécie de passarela, quem gritava.
— Ei, quem vocês estão procurando?
— Estamos procurando uma casa?
— Quem vocês estão procurando?
— Loyd, o dono da casa.
Subimos as escadas para encontrar um sujeito alto, negro e vestindo um roupão e uma boa quantidade de jóias, tragando demoradamente seu cigarro. Apesar de o cara parecer um gangster, nós seguimos em frente. Junto com duas garotas que apareceram na última hora para ver o mesmo apartamento, fomos levamos para um labiríntico muquifo. A porta se abria direto para uma escada e, diferente do que estamos acostumados no Brasil, havia mais mais dois pavimentos para baixo. Quatro quartos, dois banheiros, chão rangindo, senhorio assustador e aluguel barato. As duas garotas zarparam de lá rapidinho.
Ao sair, apesar de todos os CONTRAS, olhamos ao mesmo tempo um para a cara do outro e dissemos: “Vamos morar aí?” O principal motivo da nossa tresloucada decisão foi que todos os outros três caras que morariam com a gente nasceram falando inglês, o que nos ajudaria muito na prática diária da língua. Fomos rápidos e, no dia seguinte, voltamos para pagar o depósito ao landlord (termo que usam aqui para definir o cara que aluga uma casa para você e é responsável pelos problemas que acontecerem nela, no nosso caso, como veríamos, só o cara que recebe o aluguel). Sim, lá estava ele, Loyd, com o meeeesssmo roupão, um cigarro na boca e fazendo cara de mau. Do meio de um montão de dinheiro que guardava no bolso, tirou um recibo, que nos deu pelas 200 libras de depósito. Com a grana no bolso, limitou-se a responder todos os nossos pedidos com um sorriso sacana no rosto e a frase: “It’s not my business”. O bordão se repetia mesmo quando o pedido era simples, como “você pode nos dar uma chave extra?”. Sim, ele era mau, muito mau.
Aluguel aqui é adiantado e, antes de passar a morar no nosso palácio, tínhamos de pagar o nosso. Um dia, mandei uma mensagem para Loyd marcando um horário para pagá-lo. Minutos depois, ele me liga.
— Você me ligou?
— Loyd, aqui é o Artur, que vai morar na sua casa...
— Casa? Não tenho nenhuma casa e não conheço nenhum Artur.
— Como não? Mas eu te paguei o depósito!
— Depósito?
— É...
— Hahahaha! Eu te assustei, né?
Filho da puta. Sim, quando fui pagá-lo, ele estava vestindo um roupão. Não mais o branco encardido das outras vezes, mas um roxo. Me deu um recibo e, só para me encher o saco, como se eu não existisse, botou o nome do Talis, que não estava presente, no papel. Pensei em quebrar a cara dele, mas mudei de ideia rapidamente, só para evitar a fadiga do combate.
Alguns dias depois, estávamos em nossa nova casa, que se revelou mais acolhedora do que pensávamos. Dividimos o apê com dois universitários, acho que um deles sulafricano, ou os dois, não sei, porque eles passam o dia inteiro ouvindo rap e jogando videogame em seus quartos. O outro morador, um inglês de meia idade, que já morou em metade do mundo trabalhando como gerente de hotéis, se revelou uma companhia bastante agradável, cheia de histórias para contar. Ah, claro. Não posso esquecer delas, as baratas. Não serei injusto a ponto de dizer que elas infestam a casa. Elas têm mesmo uma preferência especial por um cantinho, uma área onde se sentem à vontade: o armário onde guardamos nossas comidas. Mas, como diria o mano Darwin, naquele rap famoso, a Origem das Espécies, só sobrevive quem se adapta ao meio.
Eu e meu futuro parceiro de quarto, o jornalista, garçom tarimbado e galã de novela mexicana, Talis Maurício, seguimos para verificar a casa que eu havia encontrado em um site daqui, uma espécie de Primeira Mão sem aquela maçã nem aquela argentina dos comerciais. Não querendo ser indiscreto, mas o caminho entre a estação de metrô e a casa assustou meu companheiro de jornada. Não sei o que alarmou tão bravo homem foi o grasnado de algum corvo, há muito deles por aqui, ou paisagem lúgrube, tomada pelo fog londrino. O apartamento ficava dentro de um condomínio de prédios de aspecto meio tenebroso. Nos perdemos lá dentro e, quando pensávamos em desistir, ouvimos uma voz. Era um vulto, sobre uma espécie de passarela, quem gritava.
— Ei, quem vocês estão procurando?
— Estamos procurando uma casa?
— Quem vocês estão procurando?
— Loyd, o dono da casa.
Subimos as escadas para encontrar um sujeito alto, negro e vestindo um roupão e uma boa quantidade de jóias, tragando demoradamente seu cigarro. Apesar de o cara parecer um gangster, nós seguimos em frente. Junto com duas garotas que apareceram na última hora para ver o mesmo apartamento, fomos levamos para um labiríntico muquifo. A porta se abria direto para uma escada e, diferente do que estamos acostumados no Brasil, havia mais mais dois pavimentos para baixo. Quatro quartos, dois banheiros, chão rangindo, senhorio assustador e aluguel barato. As duas garotas zarparam de lá rapidinho.
Ao sair, apesar de todos os CONTRAS, olhamos ao mesmo tempo um para a cara do outro e dissemos: “Vamos morar aí?” O principal motivo da nossa tresloucada decisão foi que todos os outros três caras que morariam com a gente nasceram falando inglês, o que nos ajudaria muito na prática diária da língua. Fomos rápidos e, no dia seguinte, voltamos para pagar o depósito ao landlord (termo que usam aqui para definir o cara que aluga uma casa para você e é responsável pelos problemas que acontecerem nela, no nosso caso, como veríamos, só o cara que recebe o aluguel). Sim, lá estava ele, Loyd, com o meeeesssmo roupão, um cigarro na boca e fazendo cara de mau. Do meio de um montão de dinheiro que guardava no bolso, tirou um recibo, que nos deu pelas 200 libras de depósito. Com a grana no bolso, limitou-se a responder todos os nossos pedidos com um sorriso sacana no rosto e a frase: “It’s not my business”. O bordão se repetia mesmo quando o pedido era simples, como “você pode nos dar uma chave extra?”. Sim, ele era mau, muito mau.
Aluguel aqui é adiantado e, antes de passar a morar no nosso palácio, tínhamos de pagar o nosso. Um dia, mandei uma mensagem para Loyd marcando um horário para pagá-lo. Minutos depois, ele me liga.
— Você me ligou?
— Loyd, aqui é o Artur, que vai morar na sua casa...
— Casa? Não tenho nenhuma casa e não conheço nenhum Artur.
— Como não? Mas eu te paguei o depósito!
— Depósito?
— É...
— Hahahaha! Eu te assustei, né?
Filho da puta. Sim, quando fui pagá-lo, ele estava vestindo um roupão. Não mais o branco encardido das outras vezes, mas um roxo. Me deu um recibo e, só para me encher o saco, como se eu não existisse, botou o nome do Talis, que não estava presente, no papel. Pensei em quebrar a cara dele, mas mudei de ideia rapidamente, só para evitar a fadiga do combate.
Alguns dias depois, estávamos em nossa nova casa, que se revelou mais acolhedora do que pensávamos. Dividimos o apê com dois universitários, acho que um deles sulafricano, ou os dois, não sei, porque eles passam o dia inteiro ouvindo rap e jogando videogame em seus quartos. O outro morador, um inglês de meia idade, que já morou em metade do mundo trabalhando como gerente de hotéis, se revelou uma companhia bastante agradável, cheia de histórias para contar. Ah, claro. Não posso esquecer delas, as baratas. Não serei injusto a ponto de dizer que elas infestam a casa. Elas têm mesmo uma preferência especial por um cantinho, uma área onde se sentem à vontade: o armário onde guardamos nossas comidas. Mas, como diria o mano Darwin, naquele rap famoso, a Origem das Espécies, só sobrevive quem se adapta ao meio.
quarta-feira, 17 de novembro de 2010
O caminho da ficção
A vida atravessa o caminho da ficção. A internet atravessa o caminho da ficção. O barulho lá fora atravessa o caminho da ficção. A TV, as notícias, o gerente do banco, as dívidas, a fome, a preguiça, o sono, o sonho, a ambição... O caminho atravessa o caminho da ficção. O labirinto é o caminho da ficção.
quarta-feira, 10 de novembro de 2010
Barcelona

As viagens, digo as boas e longas viagens, são sempre carregadas de uma sensação de perda iminente. O olhar não sabe se desfruta ou se se despede daquilo que possivelmente nunca mais voltará a ver. Barcelona, tão brilhante que é, acentua essa característica e me leva do riso às lágrimas em segundos.
Sim, entendo aqueles que colocam faixas nas janelas, protestando contra a multidão de turistas que ronda a cidade todos os dias. Aquilo não me pertence e, se pertencesse, eu faria o mesmo. Ah, mas é impossível não ser íntimo de uma cidade que faz das varandas o varal para suas roupas de baixo e seus gritos de guerra. Andar pelas apertadíssimas vielas do bairro gótico é como ser abraçado por todos esses anos de história e estórias.
Cidade ensolarada quando a Europa começa a congelar, salpicada pela mágica de Gaudí, confeiteiro da arquitetura, que parece usar chantilly e jujubas nas suas construções. A Casa Batlló é o mais comestível de todos os edifícios que já conheci. O arquiteto também era especialista em disfarces... ou sou o único a achar que a Sagrada Família é uma nave espacial disfarçada de igreja?
Essa atmosfera fantástica se espalha pelas ruas. Basta dar uma caminhada nas Ramblas para se surpreender com os artistas que até flutuar flutuam em praça pública; ou passear pelo mercado de Boqueria, onde são vendidas as comidas mais coloridas do mundo. No bairro del Raval, o sonho ainda não acabou na Casa des Pueblos Rebeldes, onde os seguidores dos anarquistas que enfrentaram o ditador Franco ainda continuam a arquitetar planos contra o demônio capitalista.
Difícil é deixar tudo isso depois de alguns poucos dias por lá. Mas não há varinha de condão tão poderosa que mude certas circunstâncias da vida ou que simplesmente faça Barcelona desaparecer. Da Catalúnia e da minha memória.
quarta-feira, 27 de outubro de 2010
O nobre e a paisagem

Passando por Richmond Hill, uma paisagem linda, que mostra o Rio Tâmisa e toda a cidade de Londres, fiquei intrigado com uma plaquinha explicativa bem discreta. O texto dizia que aquela paisagem era mundialmente famosa e que só havia sido preservada graças à iniciativa de um nobre do século 19. Diante da especulação imobiliária, que transformava todos os campos em novas construções, impulsionadas pela revolução industrial, o tal nobre simplesmente comprou a área toda só para preservar aquela visão da qual ele tanto gostava. Hoje, a área faz parte de um dos maiores e mais bonitos parques de Londres (onde não faltam enormes e bonitos parques). Fico pensando como seria bom se os ricos brasileiros pensassem desse jeito, mostrando que certas coisas não têm preço, em vez de seguir apenas as ordens ditadas pelo bolso. Mas, claro, obviamente isso tudo soaria pueril aos ouvidos deles.
domingo, 24 de outubro de 2010
Considerações desconsideráveis
Era pra eu ter tudo para escrever, mas acho que é mesmo na falta de acontecimentos, no intervalo, no tédio, que a literatura cresce. Aqui, andando pelo mundo todo, conhecendo gente e costumes que jamais imaginei, sobra pouco tempo para escrever qualquer coisa. Talvez, se o inverno conseguir me acuar dentro de casa, eu passe a escrever mais por aqui e em qualquer outro lugar, mesmo que seja para deixar perdido nas folhas de um caderno qualquer. Por enquanto, minha alma permanece sendo apenas uma esponja do mundo.
terça-feira, 19 de outubro de 2010
quarta-feira, 6 de outubro de 2010
Para os manos daqui, para os manos de lá
Você pode sair da Zona Leste, mas ela certamente não sai de você. Em Londres, não sei se por acaso, acabei no East End, que tem muito mais similaridades com a ZL em que cresci em São Paulo que a direção na Rosa dos Ventos. A grande diferença aqui, além do feliz fato de não haver tantos corintianos, é que cada tijolo da ZL tem pelo menos mil anos de história.
East é o lugar dos imigrantes desde a idade média, uma Cohab medieval. Primeiro, vieram os tais dos huguenotes, fugindo da perseguição religiosa, depois isso aqui se encheu de judeus, indianos, uma galera de Bangladesh (quem nasce lá é...), jamaicanos e, claro, uns brasileiros feito eu. Pelo censo, só 37% da população é formada pela categoria denominada "branco britânico". Por isso que eu digo, meu bairro é dos manos, dos muçulmanos (e das muçulminas também, aquelas que escondem toda a sua graça debaixo das burkas).
Depois de funcionar como uma espécie de fazenda de Londres, fornecendo vegetais para metrópole, o lado leste da cidade acabou virando um depósito de famintos falantes de todas as línguas. No século 19, aproveitando-se da quantidade de indigentes pelas ruas, Jack, O Estripador (aqui, The Ripper), começou a atacar na região de Whitechapel, aqui do lado de casa. Matou cinco e nunca foi pego, tornando-se o serial killer mais famoso de todos os tempos.
O metrô mais perto de casa, Bethnal Green, foi cenário da maior catástrofe coletiva da Inglaterra, quando 173 pessoas morreram esmagadas lá dentro. A confusão começou porque os metrôs eram usados como bunkers, esconderijos úteis durante o tempo em que os bombardeios de Hitler eram mais frequentes do que a chuva londrina. Metade do bairro foi destruída durante esses ataques, mas sobraram ainda muitos predinhos centenários feitos de tijolinhos vermelhos. É interessante ver como a história vai se ajeitando onde dá. Uma das igrejas do bairro, Bow Church, foi parcialmente destruída. Reconstruída, é possível notar a metade antiga e a recente, tanto pelas diferenças arquitetônicas como pelas marcas do tempo mais evidentes em um dos lados.
Meu minha casa, postcode E3 2QY, fica no bairro de Bow. Aqui, será o cenário das próximas Olimpíadas. Da janela do ônibus número 8 consigo ver o estádio enorme em construção. Ao lado de casa, tem o centenário mercado da Roman Road Market, onde posso comprar uma calça Levis usada por 8 libras ou meio litro da sagrada Guinness de cada dia por uma libra. Andando por lá, dá pra notar uma verdadeira integração de raças. Acessíveis, as ruas daqui se enchem de velhinhos em cadeiras de rodas elétricas e mães com bebês. Desconfio que alguns usem essas cadeiras de rodas mais por conveniência que por necessidade, caso contrário teria de dizer que esse país está mal das pernas, dada o congestionamento de veículos do tipo pela rua.
Os negócios na Roman Road são todos de família. Tem uma peixaria que representa bem isso, onde três gerações trabalham juntas. Os três, provavelmente de origem turca, são parecidíssimos e ostentam o mesmo bigodom. Apesar de haver muitas peixarias, muitos supermercados e lojas indianas que vendem tudo que é tranqueira, o principal negócio por aqui são as casas de aposta. São pelo menos umas oito ao longo de um trecho de rua que não ultrapassa cem metros. Os caras apostam em tudo: cricket, golf, rugby, futebol e até em tênis de mesa. Em inglês, jogar apostando é gambling. Todo jogador mira o jackpot, que é o prêmio principal. Eu vivo alheio a esse mundo cheio de cifras, já que jamais perderia uma Guinnezinha que fosse jogando.
A minha casa, descobri depois, também tem história. Hoje, uma respeitável residência estudantil, onde vivem empilhados nove estudantes, já foi um ponto de tráfico de drogas. Os moradores chegaram a incendiar a casa, parcialmente feita em madeira, ao final de uma festa. Assim como o bairro ostensivamente atacado por Hitler, a casa sobreviveu, mostrando que é ZL de verdade e que as outras zonas só servem para completar o espaço que resta na bússola.
PS. E não, claro que não sou bairrista, esse texto nada mais é do que uma tentativa revisionista de colocar os ponteiros nos seus devidos lugares, depois de tantos e tantos anos de privilégios ao Norte entre os pontos cardeais.
East é o lugar dos imigrantes desde a idade média, uma Cohab medieval. Primeiro, vieram os tais dos huguenotes, fugindo da perseguição religiosa, depois isso aqui se encheu de judeus, indianos, uma galera de Bangladesh (quem nasce lá é...), jamaicanos e, claro, uns brasileiros feito eu. Pelo censo, só 37% da população é formada pela categoria denominada "branco britânico". Por isso que eu digo, meu bairro é dos manos, dos muçulmanos (e das muçulminas também, aquelas que escondem toda a sua graça debaixo das burkas).
Depois de funcionar como uma espécie de fazenda de Londres, fornecendo vegetais para metrópole, o lado leste da cidade acabou virando um depósito de famintos falantes de todas as línguas. No século 19, aproveitando-se da quantidade de indigentes pelas ruas, Jack, O Estripador (aqui, The Ripper), começou a atacar na região de Whitechapel, aqui do lado de casa. Matou cinco e nunca foi pego, tornando-se o serial killer mais famoso de todos os tempos.
O metrô mais perto de casa, Bethnal Green, foi cenário da maior catástrofe coletiva da Inglaterra, quando 173 pessoas morreram esmagadas lá dentro. A confusão começou porque os metrôs eram usados como bunkers, esconderijos úteis durante o tempo em que os bombardeios de Hitler eram mais frequentes do que a chuva londrina. Metade do bairro foi destruída durante esses ataques, mas sobraram ainda muitos predinhos centenários feitos de tijolinhos vermelhos. É interessante ver como a história vai se ajeitando onde dá. Uma das igrejas do bairro, Bow Church, foi parcialmente destruída. Reconstruída, é possível notar a metade antiga e a recente, tanto pelas diferenças arquitetônicas como pelas marcas do tempo mais evidentes em um dos lados.
Meu minha casa, postcode E3 2QY, fica no bairro de Bow. Aqui, será o cenário das próximas Olimpíadas. Da janela do ônibus número 8 consigo ver o estádio enorme em construção. Ao lado de casa, tem o centenário mercado da Roman Road Market, onde posso comprar uma calça Levis usada por 8 libras ou meio litro da sagrada Guinness de cada dia por uma libra. Andando por lá, dá pra notar uma verdadeira integração de raças. Acessíveis, as ruas daqui se enchem de velhinhos em cadeiras de rodas elétricas e mães com bebês. Desconfio que alguns usem essas cadeiras de rodas mais por conveniência que por necessidade, caso contrário teria de dizer que esse país está mal das pernas, dada o congestionamento de veículos do tipo pela rua.
Os negócios na Roman Road são todos de família. Tem uma peixaria que representa bem isso, onde três gerações trabalham juntas. Os três, provavelmente de origem turca, são parecidíssimos e ostentam o mesmo bigodom. Apesar de haver muitas peixarias, muitos supermercados e lojas indianas que vendem tudo que é tranqueira, o principal negócio por aqui são as casas de aposta. São pelo menos umas oito ao longo de um trecho de rua que não ultrapassa cem metros. Os caras apostam em tudo: cricket, golf, rugby, futebol e até em tênis de mesa. Em inglês, jogar apostando é gambling. Todo jogador mira o jackpot, que é o prêmio principal. Eu vivo alheio a esse mundo cheio de cifras, já que jamais perderia uma Guinnezinha que fosse jogando.
A minha casa, descobri depois, também tem história. Hoje, uma respeitável residência estudantil, onde vivem empilhados nove estudantes, já foi um ponto de tráfico de drogas. Os moradores chegaram a incendiar a casa, parcialmente feita em madeira, ao final de uma festa. Assim como o bairro ostensivamente atacado por Hitler, a casa sobreviveu, mostrando que é ZL de verdade e que as outras zonas só servem para completar o espaço que resta na bússola.
PS. E não, claro que não sou bairrista, esse texto nada mais é do que uma tentativa revisionista de colocar os ponteiros nos seus devidos lugares, depois de tantos e tantos anos de privilégios ao Norte entre os pontos cardeais.
domingo, 3 de outubro de 2010
A vida estranha no East End
Cena um: eu na minha cama, mexendo no meu computador, no aconchego do meu (quase) lar em Bethnal Green. Cena dois: eu e um sujeito parecido com o Borat tentando entrar com uma televisão enorme num ônibus, o que razoavelmente é proibido pelo motorista. Cena três: estou em uma casa de uns chapados em Whitechapel, onde um italiano doidão toca um instrumento africano que eu nunca vi antes. Cena quatro: bebendo cerveja com um inglês que, depois de sair para buscar leite, voltou apenas com uma caixa de 24 cervejas e apanhou da mulher. Cena cinco: estou todo encharcado, em Mile End, procurando uma festa onde seria servida uma sangria espanhola, tendo Borat como guia. Cena seis: estou na minha cama, mexendo no meu computador, pensando que às vezes a vida em Londres tem algo de surreal.
quinta-feira, 30 de setembro de 2010
terça-feira, 21 de setembro de 2010
quarta-feira, 15 de setembro de 2010
Ruuuuuush
Right now, I am going to Berlim. Friday, I am off to Amsterdã. The life is faster here. The world grows up under my eyes and I can touch everything. I'll carry with me just some T-shirts, two aples, a camera and an edition of The Journey to the centre of Earth. It's enough, now. And keep walking.
Não, não vou ficar escrevendo em inglês aqui não. Essa foi só pra praticar, enquanto não dá a hora de pegar o ônibus. Não sei o que esperar os próximos quatro dias. A única coisa da qual tenho certeza é que, em Amsterdã, não vou fazer nada que seja ilegal, nadinha de nada, mesmo porque difícil é achar alguma coisa que seja ilegal por lá. Dizem que matar os outros não é muito bem-visto.
É isso aí. Fui.
Não, não vou ficar escrevendo em inglês aqui não. Essa foi só pra praticar, enquanto não dá a hora de pegar o ônibus. Não sei o que esperar os próximos quatro dias. A única coisa da qual tenho certeza é que, em Amsterdã, não vou fazer nada que seja ilegal, nadinha de nada, mesmo porque difícil é achar alguma coisa que seja ilegal por lá. Dizem que matar os outros não é muito bem-visto.
É isso aí. Fui.
terça-feira, 14 de setembro de 2010
Childhood refound
Londres, para mim, tem sido o reencontro da infância. Itens de contos de fada e desenhos animados, como castelos, corvos, esquilos, princesas, armaduras, passaram a fazer parte do meu cotidiano. Sinto-me como se meus brinquedos tivessem crescido, quando passo pela Torre de Londres ou ao parar na Estação Baker Street, onde (mesmo que ficcionalmente) morou Sherlock Holmes. No Imperial War Museum, encontrei um avião da Segunda Guerra igualzinho ao meu super-caça bombardeiro dos Comandos em Ação.
Mesmo sem nunca ter sido grande fã do Tico e do Teco, me pego embasbacado diante do carisma dos esquilos, que chegam a subir pelas nossas roupas em busca de um pedaço de sanduíche. Perdendo-me pelas vielas, posso cair do sonho no pesadelo, ao dar por mim andando pelas mesmas ruas que o misterioso e temido Jack Estripador costumava agir.
Tamanha interação entre fantasia e realidade dá um ar onírico a essa viagem, me faz mergulhar na mesma atmosfera que torna mais intensos os prazeres dos sonhos e também os horrores dos pesadelos, o que felizmente varre para longe qualquer meio-termo que insista em povoar a minha vida.
Tamanha interação entre fantasia e realidade dá um ar onírico a essa viagem, me faz mergulhar na mesma atmosfera que torna mais intensos os prazeres dos sonhos e também os horrores dos pesadelos, o que felizmente varre para longe qualquer meio-termo que insista em povoar a minha vida.
segunda-feira, 6 de setembro de 2010
Crônicas londrinas: a primeira noite de trabalho
Nunca estive tão elegante. Gravata, colete, camisa, tudo impecável. A bandeja na mão, decorando nomes de canapés e repetindo automaticamente: "Would you like some canapes?"
É minha primeira noite de trabalho, num hotel perto da Oxford Street, numa área chique de Londres. Coincidentemente, trata-se de uma festa brasileira, aparentemente um oba-oba do cinema bancado pelo BNDES. Apesar do luxo do hotel, os convidados nada têm de glamourosos. Até os mais cheios de pose enchem as mãos quando eu me aproximo com a bandeja cheia de "smoked salmon with mango sauce". Um sujeito parecido com o Jean Paul Sartre deve ter comido uns 40 canapés, sempre ignorando os guardanapos que lhe estendo.
No staff, alguns brasileiros, um indiano e vários lituanos. O gerente inglês parece ser um cara legal, sempre absorvido pelo trabalho e querendo ajudar. É ele quem aparece feito um raio para recolher os cacos de vidro quando, estreando novamente, deixo um prato cair no chão, no fim da festa. Ninguém me dá nenhuma bronca e, demonstrando simpatia, outros garçons me contam de quando deixaram cair taças cheias de vinho nos vestidos das madames. Eu não estou nem um pouco preocupado, já que o garçom é uma espécie de avatar de mim mesmo aqui e, portanto, a menos que alguém me belisque e me faça acordar, olho para tudo isso com a curiosidade e o desprendimento de quem está a passeio no corpo de outra pessoa.
Provo a comida estimulado pelos colegas que, no elevador, no trajeto entre a cozinha e o salão, aproveitam para matar a fome. "Help yourself", eles dizem. Salmão, atum, cogumelo, presunto de parma, coisa de primeira, tudo muito bem feito por um chefe francês que fala um inglês quase incompreensível. Trata-se de um sujeito extremamente performático, parecido com aqueles chefes de cozinha dos reality shows da TV a cabo, que pontua todos os seus pedidos aos cozinheiros com um "give me a fucking " qualquer coisa. Vendo que eu assistia a cena com curiosidade, o cozinheiro dá uma piscada para mim. A menos que fosse uma cantada, me parece que o se trata de um sinal de que ele encara tudo isso da mesma forma que eu.
Saio por volta da meia-noite e, graças aos brasileiros que não quiseram ir embora da festa logo, perdi o metrô. Espero cerca de uma hora pelo ônibus noturno na Oxford Street e, quando ele chega, sento ao lado de um indiano que insiste em deitar a cabeça no meu ombro. Demora uma meia hora para eu chegar até Bethnal Green, onde moro. (Com o tempo, fui descobrindo que meu bairro é considerado periferia aqui, apesar de ficar bem perto do centro. Pelas ruas, vejo dezenas de imigrantes de todos os países, desde mulheres de burka a homens usando estranhos turbantes. Apesar de supostamente ser um bairro pobre, aqui as casas são bonitas, as ruas são limpas, o sistema de transporte funciona e há vários espaços de lazer, incluindo o bonito Victoria Park. Logo, não tive nenhum problema para me adaptar a tamanha pobreza.) Levanto aliviado ao ouvir a voz que anuncia as paradas dizer: "Next stop is Roman Road Market". Intimamente, me pego desejando que o indiano dorminhoco passe do seu ponto, só para aprender a ser menos espaçoso. Ele está no quinto sono e se apodera de todo o assento.
Acordei tarde hoje, tomei um café com um nescafé genérico daqui e me preparo para sair rumo à escola de inglês. Enquanto escrevo, sentado na mesa da cozinha de casa, ouço no rádio um longo debate sobre o caso de infidelidade do astro do futebol inglês, Wayne Rooney, na LBC Radio. Pelo que compreendi, alguns ingleses culpam a apagada performance do atacante na Copa do Mundo ao medo de que a mulher dele descobrisse que fora traída, durante a gravidez, com uma prostituta de luxo. O noticiário cheio de fofocas é até interessante, o problema é que quase ninguém fala sobre a greve do metrô. Vou ter que descobrir agora, na rua, a extensão da paralisação. Em breve, volto com novas crônicas londrinas.
É minha primeira noite de trabalho, num hotel perto da Oxford Street, numa área chique de Londres. Coincidentemente, trata-se de uma festa brasileira, aparentemente um oba-oba do cinema bancado pelo BNDES. Apesar do luxo do hotel, os convidados nada têm de glamourosos. Até os mais cheios de pose enchem as mãos quando eu me aproximo com a bandeja cheia de "smoked salmon with mango sauce". Um sujeito parecido com o Jean Paul Sartre deve ter comido uns 40 canapés, sempre ignorando os guardanapos que lhe estendo.
No staff, alguns brasileiros, um indiano e vários lituanos. O gerente inglês parece ser um cara legal, sempre absorvido pelo trabalho e querendo ajudar. É ele quem aparece feito um raio para recolher os cacos de vidro quando, estreando novamente, deixo um prato cair no chão, no fim da festa. Ninguém me dá nenhuma bronca e, demonstrando simpatia, outros garçons me contam de quando deixaram cair taças cheias de vinho nos vestidos das madames. Eu não estou nem um pouco preocupado, já que o garçom é uma espécie de avatar de mim mesmo aqui e, portanto, a menos que alguém me belisque e me faça acordar, olho para tudo isso com a curiosidade e o desprendimento de quem está a passeio no corpo de outra pessoa.
Provo a comida estimulado pelos colegas que, no elevador, no trajeto entre a cozinha e o salão, aproveitam para matar a fome. "Help yourself", eles dizem. Salmão, atum, cogumelo, presunto de parma, coisa de primeira, tudo muito bem feito por um chefe francês que fala um inglês quase incompreensível. Trata-se de um sujeito extremamente performático, parecido com aqueles chefes de cozinha dos reality shows da TV a cabo, que pontua todos os seus pedidos aos cozinheiros com um "give me a fucking " qualquer coisa. Vendo que eu assistia a cena com curiosidade, o cozinheiro dá uma piscada para mim. A menos que fosse uma cantada, me parece que o se trata de um sinal de que ele encara tudo isso da mesma forma que eu.
Saio por volta da meia-noite e, graças aos brasileiros que não quiseram ir embora da festa logo, perdi o metrô. Espero cerca de uma hora pelo ônibus noturno na Oxford Street e, quando ele chega, sento ao lado de um indiano que insiste em deitar a cabeça no meu ombro. Demora uma meia hora para eu chegar até Bethnal Green, onde moro. (Com o tempo, fui descobrindo que meu bairro é considerado periferia aqui, apesar de ficar bem perto do centro. Pelas ruas, vejo dezenas de imigrantes de todos os países, desde mulheres de burka a homens usando estranhos turbantes. Apesar de supostamente ser um bairro pobre, aqui as casas são bonitas, as ruas são limpas, o sistema de transporte funciona e há vários espaços de lazer, incluindo o bonito Victoria Park. Logo, não tive nenhum problema para me adaptar a tamanha pobreza.) Levanto aliviado ao ouvir a voz que anuncia as paradas dizer: "Next stop is Roman Road Market". Intimamente, me pego desejando que o indiano dorminhoco passe do seu ponto, só para aprender a ser menos espaçoso. Ele está no quinto sono e se apodera de todo o assento.
Acordei tarde hoje, tomei um café com um nescafé genérico daqui e me preparo para sair rumo à escola de inglês. Enquanto escrevo, sentado na mesa da cozinha de casa, ouço no rádio um longo debate sobre o caso de infidelidade do astro do futebol inglês, Wayne Rooney, na LBC Radio. Pelo que compreendi, alguns ingleses culpam a apagada performance do atacante na Copa do Mundo ao medo de que a mulher dele descobrisse que fora traída, durante a gravidez, com uma prostituta de luxo. O noticiário cheio de fofocas é até interessante, o problema é que quase ninguém fala sobre a greve do metrô. Vou ter que descobrir agora, na rua, a extensão da paralisação. Em breve, volto com novas crônicas londrinas.
quarta-feira, 1 de setembro de 2010
The red dusk
O vermelho do céu parece refletir no chão, coberto de folhas que anunciam o início do outono. Esquilos caçam comida entre os restos deixados pelos visitantes do Holland Park e um corvo acima do peso chacoalha os galhos mais miúdos do robusto carvalho. Meninos jogam críquete displicentemente no enorme gramado, enquanto o ex-primeiro ministro mostra sua indiscrição ao contar a intimidade da família real no London Evening Post. Nada de novo, exceto pelo fato de que tudo isso faz parte da rotina da minha nova vida.
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