segunda-feira, 30 de março de 2009

Quando cada letra vale a pena

Há os que escrevem porque têm o que dizer e os que escrevem apenas por escrever. O conceito, simplificado de um artigo do meu xará Schopenhauer, sempre fica martelando na minha cabeça quando leio alguma coisa. Isso ocorre de forma ainda mais intensa quando o livro que ocupa meu tempo é de Herman Hesse.

Quando se lê O Lobo da Estepe, Sidarta ou Demian, é inevitável pensar quantos livros já foram escritos sem motivo algum, sem nada o que dizer, apenas por capricho do escritor. No jornalismo, eu mesmo já colaborei muito para aumentar o número de árvores derrubadas contando histórias que não faziam diferença para ninguém.

Livros que têm o que dizer são límpidos como água. Não há caprichos ou palavras sobrando. São apenas o que são, boas histórias contadas por quem realmente pensou muito para escrevê-las.

Terminei ontem de ler Demian. O livro, escrito em 1919, trata do relato da juventude do confuso Emil Sinclair e sua relação com Max Demian, rapaz pertencente a um grupo cuja a filosofia se baseia na crença em um deus que aceite o bem e o mal, isto é, que tenha em si também o demônio.

O precursor dessa facção, segundo a crença, teria sido Caim. Daí os pertencentes desse grupo possuírem, na testa, a marca de Caim.

O que a princípio soa como simples rebeldia juvenil se mostra uma ode humanista ao individualismo e até mesmo um prenúncio das tragédias que ocorreriam na Alemanha muito depois da publicação de Demian.

Ps. Encontrei a íntegra livro na internet.

quinta-feira, 26 de março de 2009

A lança de Deus

A menina está assustada. Tenta brincar com a boneca, mas não consegue parar de tremer. Bate na boneca. Abre as pernas da boneca e bate. Está muito claro ali. "Essa janela! Essa lua", pensa a menina, brava.
A menina não gosta da claridade. Ela quer ficar no escuro. Não quer que a vejam. O colchão está frio. Não. Está úmido. Ela sente o vestido, curto demais para ela, todo molhado, embaixo.
A menina abraça a boneca e diz: "Minha filhinha, eu te amo tanto..." Respira fundo e sussurra bem baixinho no ouvido do brinquedo: "Eu te amo tanto. Por que você não quer brincar comigo?" Então, ela começa a tirar a roupa da boneca. Um vestidinho florido. Tira também o lacinho cor-de-rosa da cabeça quase careca e dá um beijo, babado.
"Não precisa ficar com vergonha de mim", diz baixo. "Eu vou cuidar de você. Só vou te dar carinho", fala, passando a mão no rosto da boneca.
Sente uma dor na barriga. O vestido está cada vez mais úmido. Úmido e quente. Ela treme. Seus dentes batem, um no outro. Ela abraça a boneca e diz que nunca mais vai se separar dela. Elas ficarão juntas para sempre.
Ouve um barulho lá fora e começa a rezar baixinho em uma língua que só ela conhece. Ela e sua filha. Reza reza reza. Pega uma moeda que tinha guardado em sua bolsinha e oferece para Deus. Ele irá protege-las. Olha para uma imagem de São Jorge, pensa que é Deus. Ele sempre esteve ali, em cima da geladeira. Por que nunca fez nada?
"Não fala isso minha filha. Ele vai te ajudar. Vai te ajudar", pensa mordendo os dentes e batendo na boneca nua, bem onde seriam as genitais. Sente um arrepio lhe percorrer todo o corpo. Uma dor lancinante passa pela virilha e vira medo. Sente um cheiro de suor. Aquele cheiro horrível não sai da sua cabeça. Do barraco onde mora. Com o fedor do banheiro já acostumou. Com os insetos também. Só aquele suor a faz tremer.
Como quer que vire dia! De dia, tudo volta ao normal. Ela vai à escola. Brinca, faz lição... O que gosta mesmo é de pular corda. Às vezes acaba esquecendo da boneca. É só escurecer que o mundo vira outro. Se arrepende de ter deixado de lado a "sua filha".
A cama úmida range. A porta range. Chegou alguém. Ela olha para o lado. A mãe está lá. Com ela. Na cama. A mãe finge dormir. Como ela odeia sua mãe!
"Por que ela finge", se pergunta a menina, soluçando. Ouve passos e o cheiro fica mais forte. A respiração fica mais forte. Ela abraça a boneca e pede a Deus que pegue seu cavalo, sua lança e saia de cima da geladeira, de uma vez por todas! É tarde: a respiração pesada em seu ouvido lhe despe de toda fé.
"Não precisa ter vergonha de mim. Eu só quero te fazer carinho", ainda ouve, de olhos fechados, chorando de ânsia da aspereza que roça no seu rosto. De nojo de si mesma. De ódio de Deus, que, afinal, tem aquela lança pra quê?

PS. Faz tempo que escrevi, mas me lembra uma história atual.

quinta-feira, 19 de março de 2009

Egito, onde o idioma é a rima



São José do Egito é conhecida como o berço dos cantadores. O município fica no sertão de Pernambuco, bem longe do país-xará africano, mas às vezes lembra essas terras míticas que só existem na imaginação dos poetas que achavam muito natural escrever livros de mais de mil páginas em verso.

Lá, os cantadores deixaram de receber gorjetas pelos seus improvisos para virar a elite da cidade, assumindo cargos normalmente ocupados pelos aristocratas latifundiários que ainda existem sertão adentro.

O presidente da câmara dos vereadores é cantador, assim como outros parlamentares. As maiores celebridades terra, claro, também são.

Os egipsienses (não, eles não são egípcios) conhecem de cor as dinastias de artistas populares. Fulano da Viola é filho de Sicrano da Pedra Verde e neto de Beltrano da Lua Cheia, todos mestres na arte de fazer malabarismo com as palavras em tempo real.

Termos que definem quantas sílabas tem cada verso, como sextilhos, redondilhos, décimas, estão na boca do povo, tal qual impedimento, pênalti e gol são ditos nas discussões sobre futebol nos botecos.

Passei os últimos dois dias em São José, acompanhando a trupe de Ariano Suassuna, em aulas-espetáculo que ele dá pelo Estado. Um dos primeiros a defender um lugarzinho para os cantadores em círculos antes apenas frequentados por granfinos eruditos, Ariano é visto como um rei pelos egipsienses.

Ganhou o título de cidadão honorário, com direito a uma (looonga) solenidade toda em verso. Os vários discursos das muuuuiiitas autoridades cantadoras atribuíram tal número de façanhas a Ariano que ele foi obrigado desmentir algumas delas, apesar de admitir que os relatos fantasiosos eram mais charmosos que a realidade.

Em uma cidade na qual se fala o idioma da rima, de fato, mentir fica muito mais interessante, quase uma obrigação, diria. Pendurar conta no bar por causa de uma falsa catástrofe nas finanças domésticas ou dar uma desculpa esfarrapada para a esposa, em verso, soa até sincero.

Por conta da falta de talento e de algum senso crítico que me resta, continuarei mentindo em prosa mesmo, como se faz fora das fronteiras do Egito sertanejo.

segunda-feira, 9 de março de 2009

A variada vida de Tom

Tom fez aula de gaita, violão, trombone, sanfona, pintura, leitura dinâmica, curso de detetive particular por correspondência, origami, frenologia, grego, francês, latim, esgrima, pólo aquático. Mas ia largando uma coisa para começar outra, sem nunca terminar nada, com outra e mais outra paixão a vista.

Com as namoradas era a mesma coisa: começava o namoro, mas quando acabava o começo perdia o interesse. Certa vez casou e se separou na mesma noite, com uma prostituta que não batia muito bem. O divórcio custou-lhe duas garrafas de uísque e um maço de cigarros, mas lhe rendeu o status de divorciado, novidade muito bem-aceita. Escreveu primeiros parágrafos de romances de 600 páginas que deixariam Juan Rulfo, Nabokov, Julio Cortazar e Kafka morrendo de inveja, se as outras 599 páginas viessem depois. Profissões ele teve várias, desde contador a artista de circo, passando por policial, encanador, lavador de pratos, amanuense, mágico.

Aos 70 anos se viu sozinho, sem dinheiro, sem família, sem nada, que não fossem os vestígios de todas as suas paixões, tudo amontoado pela casa. Pensou no irmão mais novo, médico, doutorado, mulher e onze filhos, quinze netos, dois bisnetos. Sentiu inveja dele, mas o sentimento não durou muito até se tornar tédio. Uma nova idéia: resolveu abrir um antiquário para livrar-se de todas as suas traquitanas, entre as quais, podia se encontrar uma enorme coleção de maços de cigarro, uma guitarra que havia pertencido a Jimmi Hendrix e um papiro egípcio raríssimo, que aprendeu a ler depois de algumas aulas de hieróglifo.

Já a beira da morte, apaixonou-se pelas enfermeiras. A cada troca de turno era uma nova alegria, um novo rosto. De noite, já não lembrava mais da enfermeira da manhã, pela qual fora apaixonado loucamente e seria no dia seguinte. Quando a morte chegou, viu a nova empreitada com felicidade, deixando de lado o iô-iô, seu mais novo hobby.

Ps. Um conto que escrevi há muito tempo, mas que inspira minha nova vida

quinta-feira, 5 de março de 2009

Gíria, não! Dialeto!

Se há algo que me preocupa de fato em relação à minha mudança para o Recife, é saber que terei de maneirar no uso das expressões que aprendi no berço da humanidade, a zona leste de São Paulo, porque os pernambucanos ainda não estão preparados para entender um linguajar de tamanha riqueza.

Com muito esforço e dedicação, me tornei um filólogo do zonalestês, língua que, com o tempo, deverá ocupar seu lugar junto às clássicas, como o latim e o grego. Em breve, porém, encaminharei um projeto para criar aqui, na Universidade Federal de Pernambuco, a primeira cátedra de zonalestês do Brasil e dividir com os pernambucanos o meu aprofundado conhecimento.

Abaixo, seguem alguns dos verbetes que cataloguei guimarãesroseando pelas imponentes ruas dos bairros Cidade Patriarca, Artur Alvim e, por último mas não menos importante, Vila Nhocuné.

A melhor que tá tendo - pessoa ou coisa que, nas atuais circunstâncias, é a melhor em alguma coisa. Ou simplesmente mulher atraente. "Essa mina é a melhor que tá tendo".
A pior que tá tendo - antônimo de "a melhor que tá tendo".
A pampa - confortável, satisfeito, sentindo-se bem. "Tô a pampa".
Belisco - caso amoroso, pessoa com quem se faz ou se pretende fazer sexo casual sempre que for conveniente. "Vou sair com um belisco aí".
Chapéu atolado - idiota, pessoa que é passada para trás. "Mano, cê tá achando que eu tô de chapéu atolado".
Cola na grade - aproxime-se.
Duas ideias - pessoa que não cumpre com a palavra, contraditória, desonesta. "O cara tá dando duas ideias, palavra de malandro não faz curva".
Enquadro - ato de a namorada fazer questionamentos ao namorado ou de ser parado pela polícia. "Tomei um enquadro da PM ontem" ou "A mina dele enquadrou ele na frente de todo mundo".
Fight - transar, ou quase. "Saí com uma mina e dei uns fight com ela ontem".
Goró - bebida alcoólica de péssima qualidade, como vinho em garrafa de plástico. Cerveja Guinness, por exemplo, não se enquadra nessa categoria.
Kissasso (a) - pessoa muito feia e mal vestida, enfim, kissassa.
Mano - tratamento afetuoso, presente em quase todas as frases dos zonalestenses.
Manso - tratamento desafetuoso, usado para os cornos.
Mamis - felação, linguagem chula. "Faz um mamis".
Na humildade - tratamento que antecede algum pedido. "Na humildade, tem como me arrumar um careta (cigarro)".
Na moral - tratamento respeitoso, usado na hora de fazer alguma ponderação. "Na moral, não mata o maluco não. Só dá um pau nele".
Na picadilha - ficar alerta, pegar alguém de surpresa. "Tô na picadilha com você" ou "O cara tava saindo de casa e o ladrão pegou ele na picadilha".
Nóia - pessoa muito viciada em droga, pessoa que que parece ser muito viciada.
Rimas - usadas tradicionalmente para expressar bem-estar. "Suave na nave", "De boa na lagoa", "Sussa na montanha-russa" etc.
Sem maldade - ver em "na humildade".

terça-feira, 3 de março de 2009

Homens ao mar

As contas bancárias em metástase acabaram. Viraram reminiscências quase infantis, jogadas displicentemente na prateleira dos problemas matemáticos e das contas de dividir com vírgulas.

O cartão de crédito virou o pedaço de plástico que nunca deveria ter deixado de ser.

Os jornais com as notícias que eu não lia mais deixaram de ser arremessados todas as manhãs pelo motoqueiro pontual e barulhento.

Horas de confronto contra atendentes de telemarketing, no infinito campo de batalha telefônico, valeram a pena.

No conforto do único par de tênis, a mensalidade do carro, o seguro do carro, a gasolina do carro também não preocupam.

O expediente acabou. O eterno expediente. A vida inteira debaixo de um céu de ferrugem, digitando histórias vermelhas de personagens reais, de gente que ultimamente mais me parecia manequim de loja, personagem de desenho animado, parafuso a parafusar.

Saí inteiro dos escombros. O crachá tatuado no meu peito, mais uma cicatriz perdida entre as marcas do skate, do futebol e das brigas de rua.

As noites nos bares, sucedidas e antecedidas pelas manhãs de ressaca no batente, se foram. Por enquanto. Espero que as noites voltem, mas desacompanhadas das já citadas manhãs.

O dente quebrado, que balançava na boca, driblava a comida e chacoalhava os nervos foi parar num copinho de plástico, desses de café. Mas só depois de uma amputação a sangue frio, daquelas que acontecem no meio de trincheiras, com balas zunindo, gritos de dor, cheiro de carne ainda viva.

Não dói mais.

De uma vasta planície ainda disforme, posso ver tudo o que não é meu. Até onde as vistas não enxergam mais.