quinta-feira, 19 de março de 2009

Egito, onde o idioma é a rima



São José do Egito é conhecida como o berço dos cantadores. O município fica no sertão de Pernambuco, bem longe do país-xará africano, mas às vezes lembra essas terras míticas que só existem na imaginação dos poetas que achavam muito natural escrever livros de mais de mil páginas em verso.

Lá, os cantadores deixaram de receber gorjetas pelos seus improvisos para virar a elite da cidade, assumindo cargos normalmente ocupados pelos aristocratas latifundiários que ainda existem sertão adentro.

O presidente da câmara dos vereadores é cantador, assim como outros parlamentares. As maiores celebridades terra, claro, também são.

Os egipsienses (não, eles não são egípcios) conhecem de cor as dinastias de artistas populares. Fulano da Viola é filho de Sicrano da Pedra Verde e neto de Beltrano da Lua Cheia, todos mestres na arte de fazer malabarismo com as palavras em tempo real.

Termos que definem quantas sílabas tem cada verso, como sextilhos, redondilhos, décimas, estão na boca do povo, tal qual impedimento, pênalti e gol são ditos nas discussões sobre futebol nos botecos.

Passei os últimos dois dias em São José, acompanhando a trupe de Ariano Suassuna, em aulas-espetáculo que ele dá pelo Estado. Um dos primeiros a defender um lugarzinho para os cantadores em círculos antes apenas frequentados por granfinos eruditos, Ariano é visto como um rei pelos egipsienses.

Ganhou o título de cidadão honorário, com direito a uma (looonga) solenidade toda em verso. Os vários discursos das muuuuiiitas autoridades cantadoras atribuíram tal número de façanhas a Ariano que ele foi obrigado desmentir algumas delas, apesar de admitir que os relatos fantasiosos eram mais charmosos que a realidade.

Em uma cidade na qual se fala o idioma da rima, de fato, mentir fica muito mais interessante, quase uma obrigação, diria. Pendurar conta no bar por causa de uma falsa catástrofe nas finanças domésticas ou dar uma desculpa esfarrapada para a esposa, em verso, soa até sincero.

Por conta da falta de talento e de algum senso crítico que me resta, continuarei mentindo em prosa mesmo, como se faz fora das fronteiras do Egito sertanejo.

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