quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Ruuuuuush

Right now, I am going to Berlim. Friday, I am off to Amsterdã. The life is faster here. The world grows up under my eyes and I can touch everything. I'll carry with me just some T-shirts, two aples, a camera and an edition of The Journey to the centre of Earth. It's enough, now. And keep walking.

Não, não vou ficar escrevendo em inglês aqui não. Essa foi só pra praticar, enquanto não dá a hora de pegar o ônibus. Não sei o que esperar os próximos quatro dias. A única coisa da qual tenho certeza é que, em Amsterdã, não vou fazer nada que seja ilegal, nadinha de nada, mesmo porque difícil é achar alguma coisa que seja ilegal por lá. Dizem que matar os outros não é muito bem-visto.

É isso aí. Fui.

terça-feira, 14 de setembro de 2010

Childhood refound








Londres, para mim, tem sido o reencontro da infância. Itens de contos de fada e desenhos animados, como castelos, corvos, esquilos, princesas, armaduras, passaram a fazer parte do meu cotidiano. Sinto-me como se meus brinquedos tivessem crescido, quando passo pela Torre de Londres ou ao parar na Estação Baker Street, onde (mesmo que ficcionalmente) morou Sherlock Holmes. No Imperial War Museum, encontrei um avião da Segunda Guerra igualzinho ao meu super-caça bombardeiro dos Comandos em Ação.

Mesmo sem nunca ter sido grande fã do Tico e do Teco, me pego embasbacado diante do carisma dos esquilos, que chegam a subir pelas nossas roupas em busca de um pedaço de sanduíche. Perdendo-me pelas vielas, posso cair do sonho no pesadelo, ao dar por mim andando pelas mesmas ruas que o misterioso e temido Jack Estripador costumava agir.

Tamanha interação entre fantasia e realidade dá um ar onírico a essa viagem, me faz mergulhar na mesma atmosfera que torna mais intensos os prazeres dos sonhos e também os horrores dos pesadelos, o que felizmente varre para longe qualquer meio-termo que insista em povoar a minha vida.

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Crônicas londrinas: a primeira noite de trabalho

Nunca estive tão elegante. Gravata, colete, camisa, tudo impecável. A bandeja na mão, decorando nomes de canapés e repetindo automaticamente: "Would you like some canapes?"

É minha primeira noite de trabalho, num hotel perto da Oxford Street, numa área chique de Londres. Coincidentemente, trata-se de uma festa brasileira, aparentemente um oba-oba do cinema bancado pelo BNDES. Apesar do luxo do hotel, os convidados nada têm de glamourosos. Até os mais cheios de pose enchem as mãos quando eu me aproximo com a bandeja cheia de "smoked salmon with mango sauce". Um sujeito parecido com o Jean Paul Sartre deve ter comido uns 40 canapés, sempre ignorando os guardanapos que lhe estendo.

No staff, alguns brasileiros, um indiano e vários lituanos. O gerente inglês parece ser um cara legal, sempre absorvido pelo trabalho e querendo ajudar. É ele quem aparece feito um raio para recolher os cacos de vidro quando, estreando novamente, deixo um prato cair no chão, no fim da festa. Ninguém me dá nenhuma bronca e, demonstrando simpatia, outros garçons me contam de quando deixaram cair taças cheias de vinho nos vestidos das madames. Eu não estou nem um pouco preocupado, já que o garçom é uma espécie de avatar de mim mesmo aqui e, portanto, a menos que alguém me belisque e me faça acordar, olho para tudo isso com a curiosidade e o desprendimento de quem está a passeio no corpo de outra pessoa.

Provo a comida estimulado pelos colegas que, no elevador, no trajeto entre a cozinha e o salão, aproveitam para matar a fome. "Help yourself", eles dizem. Salmão, atum, cogumelo, presunto de parma, coisa de primeira, tudo muito bem feito por um chefe francês que fala um inglês quase incompreensível. Trata-se de um sujeito extremamente performático, parecido com aqueles chefes de cozinha dos reality shows da TV a cabo, que pontua todos os seus pedidos aos cozinheiros com um "give me a fucking " qualquer coisa. Vendo que eu assistia a cena com curiosidade, o cozinheiro dá uma piscada para mim. A menos que fosse uma cantada, me parece que o se trata de um sinal de que ele encara tudo isso da mesma forma que eu.

Saio por volta da meia-noite e, graças aos brasileiros que não quiseram ir embora da festa logo, perdi o metrô. Espero cerca de uma hora pelo ônibus noturno na Oxford Street e, quando ele chega, sento ao lado de um indiano que insiste em deitar a cabeça no meu ombro. Demora uma meia hora para eu chegar até Bethnal Green, onde moro. (Com o tempo, fui descobrindo que meu bairro é considerado periferia aqui, apesar de ficar bem perto do centro. Pelas ruas, vejo dezenas de imigrantes de todos os países, desde mulheres de burka a homens usando estranhos turbantes. Apesar de supostamente ser um bairro pobre, aqui as casas são bonitas, as ruas são limpas, o sistema de transporte funciona e há vários espaços de lazer, incluindo o bonito Victoria Park. Logo, não tive nenhum problema para me adaptar a tamanha pobreza.) Levanto aliviado ao ouvir a voz que anuncia as paradas dizer: "Next stop is Roman Road Market". Intimamente, me pego desejando que o indiano dorminhoco passe do seu ponto, só para aprender a ser menos espaçoso. Ele está no quinto sono e se apodera de todo o assento.

Acordei tarde hoje, tomei um café com um nescafé genérico daqui e me preparo para sair rumo à escola de inglês. Enquanto escrevo, sentado na mesa da cozinha de casa, ouço no rádio um longo debate sobre o caso de infidelidade do astro do futebol inglês, Wayne Rooney, na LBC Radio. Pelo que compreendi, alguns ingleses culpam a apagada performance do atacante na Copa do Mundo ao medo de que a mulher dele descobrisse que fora traída, durante a gravidez, com uma prostituta de luxo. O noticiário cheio de fofocas é até interessante, o problema é que quase ninguém fala sobre a greve do metrô. Vou ter que descobrir agora, na rua, a extensão da paralisação. Em breve, volto com novas crônicas londrinas.

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

The red dusk

O vermelho do céu parece refletir no chão, coberto de folhas que anunciam o início do outono. Esquilos caçam comida entre os restos deixados pelos visitantes do Holland Park e um corvo acima do peso chacoalha os galhos mais miúdos do robusto carvalho. Meninos jogam críquete displicentemente no enorme gramado, enquanto o ex-primeiro ministro mostra sua indiscrição ao contar a intimidade da família real no London Evening Post. Nada de novo, exceto pelo fato de que tudo isso faz parte da rotina da minha nova vida.


quinta-feira, 26 de agosto de 2010

London, London

Dez dias que estou vivendo em Londres e as palavras me fogem, provavelmente assustadas com o bombardeio de imagens. Perco-me pelas ruas, olhando para todos os lados e atrapalhando o trânsito dos pedestres. Londres pode ser muitas cidades num mesmo quarteirão. É como se tudo isso sempre tivesse existido, como se o velho e o novo pertencessem ao mesmo tempo.

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

Quase lá

Chegou o dia. Sempre com tantas palavras, todas elas caindo dos meus bolsos junto com as moedas, ocupando sempre tanto espaço, hoje não sei bem o que dizer. Provavelmente, amanhã, às 11h do Brasil, quando desembarcar em Londres, serei um homem de mais silêncios, dadas as naturais limitações com o idioma estrangeiro. Seis meses passam voando, mas são uma vida.

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Eu algum, em todos os tempos

Em lugares onde há tanto não pisava, por mais que me esforce, andando rápido e esquivando-me de olhares, sou forçado a reencontrar um eu que há muito não sou. Vejo-o um tanto afobado, pretensioso, explodindo de energia e planos; talvez veja-o com uma certa condescendência, com a paciência que talvez ele não tivesse comigo. Ele certamente demoraria a me reconhecer e depois comentaria como você está acabado, talvez me cobrasse o que você fez da sua vida, me batesse você não tinha esse direito, me jogasse na cara esse não era o nosso plano ou me expulsasse saia daqui você estragou tudo. Talvez eu rebatesse a culpa é toda sua, toda ela, seu moleque besta, talvez não, provavelmente não. Antes de qualquer coisa, eu olharia para o lado, em silêncio, procurando o eu que ainda não sou, alguém que, espero eu, não precise me olhar com condescendência, alguém que me tranquilize deixa isso pra lá, você está no caminho certo.

domingo, 8 de agosto de 2010

O salto

Pés esfregando, nervosamente, a terra pedrosa, fazendo com que pequenos resíduos caiam longamente no abismo. A visão assusta, mas o barulho da sola de borracha em atrito com o chão traz uma certa calma. Um passo adiante e não haverá mais onde pisar. Hora de se concentrar na eternidade do salto, por mais que a distância cada vez menor entre o corpo e o solo possa dar essa inconveniente impressão de transitoriedade.

quinta-feira, 29 de julho de 2010

Sempre

A ferida nunca para de arder
mesmo quando tudo está OK
Às vezes, parece que ela está lá antes de mim
Nos dias em que minha alma é um céu azul
aquela casquinha nojenta cresce sobre ela
e eu quase esqueço de tudo
Mas as nuvens são tantas
É impossível fugir das nuvens
Então meu peito se enche de sombras
e a chama gelada começa a crepitar

domingo, 11 de julho de 2010

Trecho de livro (recém-iniciado)

Eu chego em casa bêbado e releio Kafka, releio Kafka, releio Kafka. Sinto-me um personagem de Kafka, preso a um jornal cujo apelido é “moedor de carne”, que joga um cadáver de criança todos os dias no meu colo e me obriga a fazer salsichas com com ele. Uma menina, que não serviria para ser personagem de Kafka, cansou daquela merda e pulou do oitavo andar. Dizem que ela trabalhou até umas duas da manhã, numa sexta-feira. Foi uma das últimas a ficar na redação. Comeu pizza com o pessoal e fumou um cigarro. Comentou com alguém que se sentia mais confortável sem sapatos. “Vou tirar os sapatos, vou ficar descalça só um pouquinho que não agüento mais usar sapatos.” Quando ninguém estava olhando, ela pulou. Caiu em cima de um táxi. Por pouco não matou o taxista, que estava sentado no capô. Os motoristas do jornal que tavam de bobeira na rua àquela hora disseram que o carro ficou destruído. Uma menina magrinha, bonitinha, que eu dei uns beijos uma vez, numa dessas noites de bebedeira, quase dividiu um carro no meio. Ela era tão magrinha, beijava bem, mas era meio sem graça. Não dava perceber a tempestade que chovia dentro dela. Às vezes, eu olho pelas janelas. Apenas aquela garoa chata dentro de mim. Não o suficiente para rachar outro táxi no meio.

sexta-feira, 9 de julho de 2010

O gosto da lembrança

A gente gasta a sola de sapato do nosso juízo atrás de tantas pistas falsas que raramente nos lembramos do que, de fato, gostamos. Um momento à toa em que esquecemos de acreditar na nossa própria encenação é o suficiente para perceber que são sempre as mesmas coisas que nos fazem felizes.

Lembrei disso agora porque, meio sem perceber, botei Chico Buarque pra ouvir. E se tem alguma coisa que me faz bem nessa vida é ouvir de novo e de novo um montão de músicas de Chico Buarque, que canta na minha cabeça desde que eu era menino e gritava "joga BOSTA na Geni, joga MERDA na Geni", aproveitando-me da oportunidade para gritar palavrão na frente dos pais.

Música do Chico Buarque é, para mim, feito comida de mãe. É aquele tipo de coisa que, quando a gente não encontra nada de bom na vida, sempre vem pra nos contrariar. Sim, tem Chico, comida de mãe e os livros. É, eu que tanto tento escrever, tanto peno pra escrever, tanto desisto de escrever, sou bom de verdade é como leitor. Com um livro na mão, eu esqueço do mundo e descanso de mim mesmo, da voz que fala sem parar dentro da minha cabeça, cheia de exigências e recriminações, vontades, sonhos, lamentos, mentiras. Melhor ainda é quando cai nas mãos aquele livro que a gente não consegue mais parar de ler, nos obrigando a entrar pela madrugada, conscientes do preço de passar o dia seguinte feito um zumbi de tanto sono.

Outra coisa que eu gostava, assim desse jeito, era fazer gol. Depois de muito tempo sem jogar bola, um mês atrás participei de uma pelada. E fiz o meu. Minha participação, em meio à molecada muito mais rápida e em forma que eu, acabou por aí. Resfolegando, pedi para terminar o jogo como goleiro, mas com a altivez do artilheiro que cumpriu seu ofício.

Nessa vida de adulto, às vezes, a gente se pega não gostando de nada. Chegamos a entender aqueles velhos encarquilhados, que acham que já viveram demais, cansados demais para querer qualquer coisa, com preguiça até de coçar o nariz. Outros, porém, contrariando a natureza, vivem um tempão sem um pingo de saúde, só por gostar. Gostar da mulher com quem se está casado há 60 anos, da criação de pintassilgos, do jardim cheio de orquídeas geniosas ou do time de futebol. Gostar de algo, por menor que seja, é gostar da vida. Gosto de lembrar disso de vez em quando.

sábado, 3 de julho de 2010

O silêncio que ninguém nunca ouviu

Com tanta gente dando opinião sobre tudo, de que vale mais uma? Com tanta gente escrevendo sobre tudo, pra que mais palavras? Precisamos de mais silêncio, por mais paradoxal que seja dizer isso.

terça-feira, 22 de junho de 2010

Talvez seja eu, talvez

Tento achar a solução para minha vida num horóscopo da internet, feito por um computador tão bom em escrever coisas genéricas que parece mesmo que fala só para mim. Falasse outras coisas, o contrário, talvez eu tivesse a mesma impressão de exclusividade. Simplesmente porque não tenho a mínima ideia de quem sou (o que o horóscopo chama com o pomposo nome de "o retorno de Saturno").
Tenho, sim, a impressão de saber quem fui. Quase milimetricamente, claramente. Mas, feito o cachorro que corre atrás do rabo, sempre chego atrasado a mim mesmo. Quando passo a saber quem sou, já não sou mais essa pessoa.
Às vezes, queria ser ninguém. Ou simplesmente escolho um dos milhares que fui e me apego àquela figura com uma nostalgia melancólica, como se o melhor de mim tivesse dissolvido na matéria da vida. Ou posso querer ser outra pessoa: quantas vezes quis ser outras pessoas, problemáticas e charmosas, famosas ou anônimas, pessoas!
Talvez possa tentar me apegar ao que queria ser, ao que serei. Mas esse exercício revelou-se uma enorme perda de tempo, já que sempre que fui o que queria estive completamente insatisfeito e amarrado por essa situação. Quando não fui, porém, não pude escapar da frustração, esse sentimento que adora tripudiar sobre a gente, aquela voz que ri quando perdemos um pênalti.
Qual é a solução para isso? Obviamente, não será nesse texto que alguém vai encontrar. Talvez quem esteja lendo isso saiba perfeitamente quem é, e por isso zombe da minha falta de autoconhecimento. Talvez sua personalidade seja algo tão palpável que você possa montá-la e desmontá-la feito lego. Comigo as peças encaixáveis derretem-se umas sobre as outras até formar uma massa disforme que sou obrigado a chamar de eu.
Trata-se de um estado labiríntico e kafkiano, cheio de portas que dão umas nas outras infinitamente. Soubesse quem sou, certamente não saberia responder à pergunta seguinte: "O que eu quero?" Li em algum lugar que a vida é uma peça em que o ator entra em palco, gagueja em sua única cena e depois desaparece para sempre. Talvez _ novamente, essa palavra! _ essa seja minha fa,fa,fa, faaaa...

quarta-feira, 16 de junho de 2010

A magia nas prateleiras

Matéria minha publicada no início do mês no Jornal do Commercio, sobre o cara que escreveu o conto que inspirou o nome deste blog.

» LITERATURA
O mundo fantástico de Rubião
Editora Companhia das Letras reúne em um único volume os 33 contos do escritor mineiro. Sobrenatural é uma das características mais marcantes da obra deste autor de poucas palavras

Artur Rodrigues
Especial para o JC
Pouco mais de 200 páginas. A isso se resume a obra completa do escritor Murilo Rubião (1916-1991), que acaba de ter todos os 33 contos que publicou em vida relançados em volume único pelo selo Companhia de Bolso (da Companhia das Letras). Não se engane pelo tamanho, quando se trata de Rubião, a escassez torna cada uma das páginas mais valiosa. De tanto reescrever, numa incessante ourivesaria, mais justo seria chamá-lo de reescritor. Escreveu muito, aproveitou pouco, publicando sete livros magricelas, tão finos que mesmo juntando todos fica difícil deixá-los de pé na estante. Talvez por conta dessa economia, talvez pela pouca tradição brasileira na literatura fantástica ou por insistir no conto como único meio de expressão, um dos precursores do cultuado realismo mágico viva ondas de reconhecimento e esquecimento, sendo hoje quase desconhecido no Brasil.
Antes mesmo que o principal nome do realismo mágico, Jorge Luís Borges, lançasse seus primeiros volumes de contos, Rubião já tentava publicar seu primeiro livro, O dono do arco-íris, em 1939. Tão estranhas eram as histórias para a época que só em 1947 ele conseguiu achar quem topasse publicar o livro, mas com o nome alterado para O ex-mágico da Taberna Minhota. A história-título narra a melancólica vida de um homem que se torna funcionário público (um jeito de “suicidar-se aos poucos”) na tentativa de acabar com os inconvenientes poderes mágicos. “Um dia dei com os meus cabelos ligeiramente grisalhos, no espelho da Taberna Minhota. A descoberta não me espantou e tampouco me surpreendi ao retirar do bolso o dono do restaurante”, relata o personagem, sobre o momento em que deu conta de que estava vivo.
Essa total falta de surpresa com o sobrenatural é uma das características mais marcantes das criaturas rubianas. Em vez de partir de uma situação comum que vai ganhando contornos extraordinários gradualmente, como faziam então a maioria dos escritores, as narrativas de Rubiãojá começam totalmente imersas em um universo fantástico e opressor. Daí a sensação de se estar lendo algo muito parecido com Franz Kafka em contos como A armadilha, A fila e Os comensais.Rubião admite a semelhança com a obra do autor de O processo, mas garante só ter descoberto o escritor depois de publicar seu terceiro livro.
Entre as inspirações assumidas, está nosso defunto-escritor, Brás Cubas, narrador da primeira e mais importante história fantástica brasileira, escrita por Machado de Assis. Homem de pouca fé, como Brás Cubas e o próprio Machado, Rubião foi buscar na Bíblia a magia para seus contos. Cada uma de suas narrativas tem uma epígrafe bíblica, uma conversa mantida entre o escritor e o mais fantástico livro da história. O Apocalipse, para Rubião, era um “manual de surrealismo”. Já os amigos ilustres, como os escritores mineiros Otto Lara Resende, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos e Hélio Pellegrino, pouco influenciaram na temática rubiana. Na forma, porém, foram fundamentais. Convenceram um mau poeta a tornar-se um primoroso contista. Um escritor que escrevia mais para si que para os outros, que rasgou dois livros de poesia e ninguém sabe quantos de prosa. Coisa de enredo fantástico, chegou a perder os originais de um livro inédito em um táxi em BH.
A vida de jornalista e funcionário público na capital mineira também pode ser captada nos contos de Rubião. Travestidos de pesadelo, estão lá a burocracia do funcionalismo público, o enlouquecedor ambiente das redações de jornal e o caos da cidade em crescimento. Um mundo onde impera um eterno presente, sem esperança nem chance de fuga da rotina, impregnado de uma desolação que tem um quê de bela e irônica. Rubião, com maestria, subverte a lógica que conhecemos para denunciar quão absurda a realidade é.


domingo, 6 de junho de 2010

A mulher dos olhos de abismo

A viagem de avião custava a acabar. De olhos semicerrados, tentava dormir. De repente, meus pelos se arrepiaram. Era como se, subitamente, estivesse completamente só na vida. Abri os olhos. Não olhei diretamente para ela. Era a única luz acesa, a luz de leitura do avião que iluminava os olhos da velha. Como se tivesse atraído por um imã, meu olhar vagueou até encontrar com o dela. A mulher dos olhos de abismo.

Era uma velha dos cabelos cinzas e olhos negros. Segurava uma boneca com força. Enquanto olhava para mim com seu olhar malicioso, apertou a barriga da boneca, que soltou um grunhido de dor. Senti aquele ruído ecoar dolorosamente dentro de mim. Na minha cabeça, uma voz cantava: “A mulher dos olhos de abismo guarda a morte no peito. Esconde, sob trejeitos de carinho exagerado, a dor de ter nascido.”

E eu estava em queda livre. Não tenho ideia de quanto tempo durou. Eu estava vidrado nos olhos dela e, para minha surpresa de descrente, vi brotar uma reza da minha boca. A reza dos desesperados, dos que não têm mais nada, dos casos perdidos.

Coloquei meus óculos escuros, enquanto lágrimas umedeciam todo meu rosto. A velha, pela primeira vez, hesitou em olhar, esticando e recolhendo a cabeça várias vezes. A movimentação me lembrou a de um animal brincando com a caça, prestes a devorá-la, jogando a para o alto com a boca.

Desorientado, tentando desviar a atenção daquilo tudo, pego meu caderno e começo a rabiscar essas palavras. A luz se acende e o comissário de bordo anuncia o pouso próximo. Ela continua olhando para mim. Eu continuo escrevendo.

A velha se levanta e caminha em direção ao banheiro do avião. Dá alguns passos e desmaia. Sim: tomba bem no meio do corredor!

Aos poucos, vou recobrando as forças. Tenho vontade de levantar, ir até ela enche-la de chutes. Deixo de fazê-lo não por qualquer espécie de escrúpulo, mas por medo. Alguns levantam de suas poltronas e vão acudi-la. Repito em voz baixa: “puta, puta, puta, puta”.

A velha é colocada em uma poltrona onde não consigo vê-la. Está com duas mulheres, uma delas carregando a boneca. Aparentemente, são filhas dela. Não entendo bem a situação: fico imaginando pra que a porra da boneca. Não consigo chegar a uma conclusão. O que aconteceu, afinal?

O avião pousa. Fico sentado na minha poltrona, esperando que elas saiam do avião. Estou curioso e resolvo levantar para vê-las. As avisto de costa. Estão lá, as três, com seus brinquedos e malas. Gente comum, gente invisível, como todas as outras. A velha vai no meio, escorada. Some na turba do aeroporto. Respiro fundo, demoradamente. O abismo está nos olhos de quem, nos meus ou nos dela? Com os pés no chão, fica difícil saber.