quinta-feira, 26 de agosto de 2010

London, London

Dez dias que estou vivendo em Londres e as palavras me fogem, provavelmente assustadas com o bombardeio de imagens. Perco-me pelas ruas, olhando para todos os lados e atrapalhando o trânsito dos pedestres. Londres pode ser muitas cidades num mesmo quarteirão. É como se tudo isso sempre tivesse existido, como se o velho e o novo pertencessem ao mesmo tempo.

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

Quase lá

Chegou o dia. Sempre com tantas palavras, todas elas caindo dos meus bolsos junto com as moedas, ocupando sempre tanto espaço, hoje não sei bem o que dizer. Provavelmente, amanhã, às 11h do Brasil, quando desembarcar em Londres, serei um homem de mais silêncios, dadas as naturais limitações com o idioma estrangeiro. Seis meses passam voando, mas são uma vida.

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Eu algum, em todos os tempos

Em lugares onde há tanto não pisava, por mais que me esforce, andando rápido e esquivando-me de olhares, sou forçado a reencontrar um eu que há muito não sou. Vejo-o um tanto afobado, pretensioso, explodindo de energia e planos; talvez veja-o com uma certa condescendência, com a paciência que talvez ele não tivesse comigo. Ele certamente demoraria a me reconhecer e depois comentaria como você está acabado, talvez me cobrasse o que você fez da sua vida, me batesse você não tinha esse direito, me jogasse na cara esse não era o nosso plano ou me expulsasse saia daqui você estragou tudo. Talvez eu rebatesse a culpa é toda sua, toda ela, seu moleque besta, talvez não, provavelmente não. Antes de qualquer coisa, eu olharia para o lado, em silêncio, procurando o eu que ainda não sou, alguém que, espero eu, não precise me olhar com condescendência, alguém que me tranquilize deixa isso pra lá, você está no caminho certo.

domingo, 8 de agosto de 2010

O salto

Pés esfregando, nervosamente, a terra pedrosa, fazendo com que pequenos resíduos caiam longamente no abismo. A visão assusta, mas o barulho da sola de borracha em atrito com o chão traz uma certa calma. Um passo adiante e não haverá mais onde pisar. Hora de se concentrar na eternidade do salto, por mais que a distância cada vez menor entre o corpo e o solo possa dar essa inconveniente impressão de transitoriedade.

quinta-feira, 29 de julho de 2010

Sempre

A ferida nunca para de arder
mesmo quando tudo está OK
Às vezes, parece que ela está lá antes de mim
Nos dias em que minha alma é um céu azul
aquela casquinha nojenta cresce sobre ela
e eu quase esqueço de tudo
Mas as nuvens são tantas
É impossível fugir das nuvens
Então meu peito se enche de sombras
e a chama gelada começa a crepitar

domingo, 11 de julho de 2010

Trecho de livro (recém-iniciado)

Eu chego em casa bêbado e releio Kafka, releio Kafka, releio Kafka. Sinto-me um personagem de Kafka, preso a um jornal cujo apelido é “moedor de carne”, que joga um cadáver de criança todos os dias no meu colo e me obriga a fazer salsichas com com ele. Uma menina, que não serviria para ser personagem de Kafka, cansou daquela merda e pulou do oitavo andar. Dizem que ela trabalhou até umas duas da manhã, numa sexta-feira. Foi uma das últimas a ficar na redação. Comeu pizza com o pessoal e fumou um cigarro. Comentou com alguém que se sentia mais confortável sem sapatos. “Vou tirar os sapatos, vou ficar descalça só um pouquinho que não agüento mais usar sapatos.” Quando ninguém estava olhando, ela pulou. Caiu em cima de um táxi. Por pouco não matou o taxista, que estava sentado no capô. Os motoristas do jornal que tavam de bobeira na rua àquela hora disseram que o carro ficou destruído. Uma menina magrinha, bonitinha, que eu dei uns beijos uma vez, numa dessas noites de bebedeira, quase dividiu um carro no meio. Ela era tão magrinha, beijava bem, mas era meio sem graça. Não dava perceber a tempestade que chovia dentro dela. Às vezes, eu olho pelas janelas. Apenas aquela garoa chata dentro de mim. Não o suficiente para rachar outro táxi no meio.

sexta-feira, 9 de julho de 2010

O gosto da lembrança

A gente gasta a sola de sapato do nosso juízo atrás de tantas pistas falsas que raramente nos lembramos do que, de fato, gostamos. Um momento à toa em que esquecemos de acreditar na nossa própria encenação é o suficiente para perceber que são sempre as mesmas coisas que nos fazem felizes.

Lembrei disso agora porque, meio sem perceber, botei Chico Buarque pra ouvir. E se tem alguma coisa que me faz bem nessa vida é ouvir de novo e de novo um montão de músicas de Chico Buarque, que canta na minha cabeça desde que eu era menino e gritava "joga BOSTA na Geni, joga MERDA na Geni", aproveitando-me da oportunidade para gritar palavrão na frente dos pais.

Música do Chico Buarque é, para mim, feito comida de mãe. É aquele tipo de coisa que, quando a gente não encontra nada de bom na vida, sempre vem pra nos contrariar. Sim, tem Chico, comida de mãe e os livros. É, eu que tanto tento escrever, tanto peno pra escrever, tanto desisto de escrever, sou bom de verdade é como leitor. Com um livro na mão, eu esqueço do mundo e descanso de mim mesmo, da voz que fala sem parar dentro da minha cabeça, cheia de exigências e recriminações, vontades, sonhos, lamentos, mentiras. Melhor ainda é quando cai nas mãos aquele livro que a gente não consegue mais parar de ler, nos obrigando a entrar pela madrugada, conscientes do preço de passar o dia seguinte feito um zumbi de tanto sono.

Outra coisa que eu gostava, assim desse jeito, era fazer gol. Depois de muito tempo sem jogar bola, um mês atrás participei de uma pelada. E fiz o meu. Minha participação, em meio à molecada muito mais rápida e em forma que eu, acabou por aí. Resfolegando, pedi para terminar o jogo como goleiro, mas com a altivez do artilheiro que cumpriu seu ofício.

Nessa vida de adulto, às vezes, a gente se pega não gostando de nada. Chegamos a entender aqueles velhos encarquilhados, que acham que já viveram demais, cansados demais para querer qualquer coisa, com preguiça até de coçar o nariz. Outros, porém, contrariando a natureza, vivem um tempão sem um pingo de saúde, só por gostar. Gostar da mulher com quem se está casado há 60 anos, da criação de pintassilgos, do jardim cheio de orquídeas geniosas ou do time de futebol. Gostar de algo, por menor que seja, é gostar da vida. Gosto de lembrar disso de vez em quando.

sábado, 3 de julho de 2010

O silêncio que ninguém nunca ouviu

Com tanta gente dando opinião sobre tudo, de que vale mais uma? Com tanta gente escrevendo sobre tudo, pra que mais palavras? Precisamos de mais silêncio, por mais paradoxal que seja dizer isso.

terça-feira, 22 de junho de 2010

Talvez seja eu, talvez

Tento achar a solução para minha vida num horóscopo da internet, feito por um computador tão bom em escrever coisas genéricas que parece mesmo que fala só para mim. Falasse outras coisas, o contrário, talvez eu tivesse a mesma impressão de exclusividade. Simplesmente porque não tenho a mínima ideia de quem sou (o que o horóscopo chama com o pomposo nome de "o retorno de Saturno").
Tenho, sim, a impressão de saber quem fui. Quase milimetricamente, claramente. Mas, feito o cachorro que corre atrás do rabo, sempre chego atrasado a mim mesmo. Quando passo a saber quem sou, já não sou mais essa pessoa.
Às vezes, queria ser ninguém. Ou simplesmente escolho um dos milhares que fui e me apego àquela figura com uma nostalgia melancólica, como se o melhor de mim tivesse dissolvido na matéria da vida. Ou posso querer ser outra pessoa: quantas vezes quis ser outras pessoas, problemáticas e charmosas, famosas ou anônimas, pessoas!
Talvez possa tentar me apegar ao que queria ser, ao que serei. Mas esse exercício revelou-se uma enorme perda de tempo, já que sempre que fui o que queria estive completamente insatisfeito e amarrado por essa situação. Quando não fui, porém, não pude escapar da frustração, esse sentimento que adora tripudiar sobre a gente, aquela voz que ri quando perdemos um pênalti.
Qual é a solução para isso? Obviamente, não será nesse texto que alguém vai encontrar. Talvez quem esteja lendo isso saiba perfeitamente quem é, e por isso zombe da minha falta de autoconhecimento. Talvez sua personalidade seja algo tão palpável que você possa montá-la e desmontá-la feito lego. Comigo as peças encaixáveis derretem-se umas sobre as outras até formar uma massa disforme que sou obrigado a chamar de eu.
Trata-se de um estado labiríntico e kafkiano, cheio de portas que dão umas nas outras infinitamente. Soubesse quem sou, certamente não saberia responder à pergunta seguinte: "O que eu quero?" Li em algum lugar que a vida é uma peça em que o ator entra em palco, gagueja em sua única cena e depois desaparece para sempre. Talvez _ novamente, essa palavra! _ essa seja minha fa,fa,fa, faaaa...

quarta-feira, 16 de junho de 2010

A magia nas prateleiras

Matéria minha publicada no início do mês no Jornal do Commercio, sobre o cara que escreveu o conto que inspirou o nome deste blog.

» LITERATURA
O mundo fantástico de Rubião
Editora Companhia das Letras reúne em um único volume os 33 contos do escritor mineiro. Sobrenatural é uma das características mais marcantes da obra deste autor de poucas palavras

Artur Rodrigues
Especial para o JC
Pouco mais de 200 páginas. A isso se resume a obra completa do escritor Murilo Rubião (1916-1991), que acaba de ter todos os 33 contos que publicou em vida relançados em volume único pelo selo Companhia de Bolso (da Companhia das Letras). Não se engane pelo tamanho, quando se trata de Rubião, a escassez torna cada uma das páginas mais valiosa. De tanto reescrever, numa incessante ourivesaria, mais justo seria chamá-lo de reescritor. Escreveu muito, aproveitou pouco, publicando sete livros magricelas, tão finos que mesmo juntando todos fica difícil deixá-los de pé na estante. Talvez por conta dessa economia, talvez pela pouca tradição brasileira na literatura fantástica ou por insistir no conto como único meio de expressão, um dos precursores do cultuado realismo mágico viva ondas de reconhecimento e esquecimento, sendo hoje quase desconhecido no Brasil.
Antes mesmo que o principal nome do realismo mágico, Jorge Luís Borges, lançasse seus primeiros volumes de contos, Rubião já tentava publicar seu primeiro livro, O dono do arco-íris, em 1939. Tão estranhas eram as histórias para a época que só em 1947 ele conseguiu achar quem topasse publicar o livro, mas com o nome alterado para O ex-mágico da Taberna Minhota. A história-título narra a melancólica vida de um homem que se torna funcionário público (um jeito de “suicidar-se aos poucos”) na tentativa de acabar com os inconvenientes poderes mágicos. “Um dia dei com os meus cabelos ligeiramente grisalhos, no espelho da Taberna Minhota. A descoberta não me espantou e tampouco me surpreendi ao retirar do bolso o dono do restaurante”, relata o personagem, sobre o momento em que deu conta de que estava vivo.
Essa total falta de surpresa com o sobrenatural é uma das características mais marcantes das criaturas rubianas. Em vez de partir de uma situação comum que vai ganhando contornos extraordinários gradualmente, como faziam então a maioria dos escritores, as narrativas de Rubiãojá começam totalmente imersas em um universo fantástico e opressor. Daí a sensação de se estar lendo algo muito parecido com Franz Kafka em contos como A armadilha, A fila e Os comensais.Rubião admite a semelhança com a obra do autor de O processo, mas garante só ter descoberto o escritor depois de publicar seu terceiro livro.
Entre as inspirações assumidas, está nosso defunto-escritor, Brás Cubas, narrador da primeira e mais importante história fantástica brasileira, escrita por Machado de Assis. Homem de pouca fé, como Brás Cubas e o próprio Machado, Rubião foi buscar na Bíblia a magia para seus contos. Cada uma de suas narrativas tem uma epígrafe bíblica, uma conversa mantida entre o escritor e o mais fantástico livro da história. O Apocalipse, para Rubião, era um “manual de surrealismo”. Já os amigos ilustres, como os escritores mineiros Otto Lara Resende, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos e Hélio Pellegrino, pouco influenciaram na temática rubiana. Na forma, porém, foram fundamentais. Convenceram um mau poeta a tornar-se um primoroso contista. Um escritor que escrevia mais para si que para os outros, que rasgou dois livros de poesia e ninguém sabe quantos de prosa. Coisa de enredo fantástico, chegou a perder os originais de um livro inédito em um táxi em BH.
A vida de jornalista e funcionário público na capital mineira também pode ser captada nos contos de Rubião. Travestidos de pesadelo, estão lá a burocracia do funcionalismo público, o enlouquecedor ambiente das redações de jornal e o caos da cidade em crescimento. Um mundo onde impera um eterno presente, sem esperança nem chance de fuga da rotina, impregnado de uma desolação que tem um quê de bela e irônica. Rubião, com maestria, subverte a lógica que conhecemos para denunciar quão absurda a realidade é.


domingo, 6 de junho de 2010

A mulher dos olhos de abismo

A viagem de avião custava a acabar. De olhos semicerrados, tentava dormir. De repente, meus pelos se arrepiaram. Era como se, subitamente, estivesse completamente só na vida. Abri os olhos. Não olhei diretamente para ela. Era a única luz acesa, a luz de leitura do avião que iluminava os olhos da velha. Como se tivesse atraído por um imã, meu olhar vagueou até encontrar com o dela. A mulher dos olhos de abismo.

Era uma velha dos cabelos cinzas e olhos negros. Segurava uma boneca com força. Enquanto olhava para mim com seu olhar malicioso, apertou a barriga da boneca, que soltou um grunhido de dor. Senti aquele ruído ecoar dolorosamente dentro de mim. Na minha cabeça, uma voz cantava: “A mulher dos olhos de abismo guarda a morte no peito. Esconde, sob trejeitos de carinho exagerado, a dor de ter nascido.”

E eu estava em queda livre. Não tenho ideia de quanto tempo durou. Eu estava vidrado nos olhos dela e, para minha surpresa de descrente, vi brotar uma reza da minha boca. A reza dos desesperados, dos que não têm mais nada, dos casos perdidos.

Coloquei meus óculos escuros, enquanto lágrimas umedeciam todo meu rosto. A velha, pela primeira vez, hesitou em olhar, esticando e recolhendo a cabeça várias vezes. A movimentação me lembrou a de um animal brincando com a caça, prestes a devorá-la, jogando a para o alto com a boca.

Desorientado, tentando desviar a atenção daquilo tudo, pego meu caderno e começo a rabiscar essas palavras. A luz se acende e o comissário de bordo anuncia o pouso próximo. Ela continua olhando para mim. Eu continuo escrevendo.

A velha se levanta e caminha em direção ao banheiro do avião. Dá alguns passos e desmaia. Sim: tomba bem no meio do corredor!

Aos poucos, vou recobrando as forças. Tenho vontade de levantar, ir até ela enche-la de chutes. Deixo de fazê-lo não por qualquer espécie de escrúpulo, mas por medo. Alguns levantam de suas poltronas e vão acudi-la. Repito em voz baixa: “puta, puta, puta, puta”.

A velha é colocada em uma poltrona onde não consigo vê-la. Está com duas mulheres, uma delas carregando a boneca. Aparentemente, são filhas dela. Não entendo bem a situação: fico imaginando pra que a porra da boneca. Não consigo chegar a uma conclusão. O que aconteceu, afinal?

O avião pousa. Fico sentado na minha poltrona, esperando que elas saiam do avião. Estou curioso e resolvo levantar para vê-las. As avisto de costa. Estão lá, as três, com seus brinquedos e malas. Gente comum, gente invisível, como todas as outras. A velha vai no meio, escorada. Some na turba do aeroporto. Respiro fundo, demoradamente. O abismo está nos olhos de quem, nos meus ou nos dela? Com os pés no chão, fica difícil saber.

terça-feira, 4 de maio de 2010

quinta-feira, 22 de abril de 2010

Hiato

Um pouco sem tempo, um pouco com preguiça, um pouco. Mas essa semana termino uns dois textos que estão engatilhados para postar aqui.

segunda-feira, 12 de abril de 2010

O cavaleiro do Poço da Panela

O trote do cavalo, o tamborilar nos paralelepípedos da Estrada Real do Poço, em pleno século 21, parecia inacreditável. O natural, diante de som tão sobrenatural, seria que o barulho do cavalo se aproximasse e desaparecesse, sem a aparição de nenhum animal. Seria só mais um galope da imaginação. Mas, subitamente, veio o menino em seu cavalo. Sem sela, montado no pelo, tinha uma camiseta na cabeça. No rosto do cavaleiro, um sorriso de alegria. Atrás dele vinham outros garotos, todos desmontados, certamente escudeiros do primeiro. Até eu fiquei com vontade de seguir o menino cavaleiro pelas ruas do bairro que existe em todos os tempos ao mesmo tempo, mas, naquela hora, eu estava atrasado. E o cavaleiro se foi...


PS. Vejam a galeria de fotos que eu e Diana fizemos do Poço da Panela em http://picasaweb.google.com.br/artur.rodrigues/PocoDaPanelaPorDianaEArtur

sexta-feira, 9 de abril de 2010

A foto perdida e a briga do século


Não me lembrava de ter posado para essa foto. Não me lembrava sequer de que alguém dessa turma tivesse uma câmera, já que ninguém tinha dinheiro para nada nessa época, muito menos para comprar e revelar filmes. Provavelmente, essa excursão, a um sítio, foi paga por algum candidato vereador, como é comum acontecer em épocas de eleição. De mim, o sujeito não ganhou nenhum voto, porque nem título de eleitor eu tinha na época.

Devia ter 16 anos, por aí. Estou sentado, com a camiseta do São Paulo, magrinho e com mais cabelo que me lembro ter tido. Alguns dos fotografados, todos ilustres moradores de Artur Alvim, na Zona Leste de São Paulo, continuam meus amigos. A grande maioria, porém, eu nunca mais vi. Dois deles não vi por um motivo bastante especial: eles morreram (o sujeito de pé, ao centro, usando boné e camiseta branca, morreu afogado depois de entrar bêbado no mar; e o adolescente também de pé, de camiseta azul, tomou seis tiros alguns anos depois dessa foto).

Esse dia não foi um dia comum. Não foi só um monte de adolescentes jogando futebol, bebendo refrigerante com cachaça vagabunda e procurando, em vão, conhecer alguma menina para depois contar vantagem sobre o que não fizeram. Foi muito mais que isso: esse foi o dia da briga do século. OK, houve brigas maiores, principalmente se incluirmos torcidas organizadas e as guerras mundiais nessa conta, mas foi a maior briga de que me lembro ter participado. (Eu, que nunca fui de brigas, eu, que na categoria individual tenho um cartel de duas lutas, com uma vitória e uma derrota, ressaltando que a vitória se deve principalmente a um tropeço do adversário em uma pedra.)

Alguns dos que estão na foto saíram para dar uma volta, procurando garotas. Sabendo que a ronda seria infrutífera, resolvi continuar a beber, provalemente, a minha pinga com groselha. Pois bem, os que saíram atrás de mulher acabaram encontrando confusão. Voltaram correndo para buscar ajuda e acharam um monte de bêbados prontos para trucidar o primeiro que aparecesse. Ali no meio, com meu cartel insignificante, segui a turba.

Éramos muito mais numerosos que nossos inimigos. Éramos muito mais barulhentos que eles. Éramos muito mais briguentos que eles. Pelo menos, os que estavam comigo eram. Um dos nossos entrou sozinho no ônibus dos caras e foi jogando os inimigos para fora. Outro grandalhão pegava os pobres coitados pelo pescoço e os esganava. Vendo tudo isso, eu me animei. Me achei na obrigação de participar daquele episódio de bravura e idiotice juvenil.
Vi um sujeito correndo e passei a persegui-lo. "Preciso acabar com esse cara em grande estilo", pensei. Resolvi, então, dar uma voadora no sujeito. Lá ia eu, voando, quase um Bruce Lee, um Ryu do Street Fighter, a ponto de acertar um pontapé na cara do inimigo, quando meu rosto se encontra subitamente com um cotovelo no ar. Sim, o sujeito que até então fugia de mim foi mais esperto que eu e deixou o cotovelo bem paradinho enquanto minha cara se aproximava por conta própria. Pode parecer ridículo, mas até hoje só consigo lembrar dessa cena em câmera lenta.
Se aqueles passarinhos que giram em volta da cabeça dos personagens de desenho animado existissem, eu teria visto uma revoada. E quando voltei a mim, a briga já havia acabado e meu nocaute em nada havia de abalar a vitória retumbante dos meus amigos.

Depois disso, assisti a outras tantas brigas, algumas das quais com finais trágicos, com gente baleada, sangue no chão, mães chorando, mas não me meti em nenhuma delas. Pensando bem, talvez o principal culpado pelo meu pacifismo atual tenha sido aquele cotovelo. Aquele cotovelo anônimo me fez ver que nasci para ser testemunha, não protagonista das brigas. Pode ser que isso me renda menos glórias. Pode ser que elimine todas as minhas possibilidades de ser um Aquiles ou um Ulisses, um Hércules ou um Sansão, um Wolverine ou um... Mário Bros. Em compensação, causa muito menos hematomas. Hoje em dia, para mim, isso está mais do que bom.