segunda-feira, 29 de junho de 2009
A batalha dos dedos contra os neurônios
Os dedos conspiram contra os neurônios, tinhosos que são. Não suportam uma grande ideia por saberem-se meros realizadores, incapazes de criar o que quer que seja. Cabe ao escritor domar seus dedos para que sirvam à mente feito cavalos puro sangue, ostensivamente adestrados, de trote suave e seguro. Para que a obra-prima não se desmanche no galope entre a cabeça e a tela do computador. Grandes ideias sem dedos obedientes são mantimentos apodrecendo dentro de contêineres num porto longínquo. Dedos bem educados, sem grandes ideias, viram carimbos de escritório de advocacia. Aleijados e excêntricos trocam seus dedos pelas cordas vocais, mas essas são tão conservadoras que suprimem o novo assim que convertem palavras em som. Sem o casamento obrigatório entre tão mortais inimigos, dedos e neurônios, não nasceriam a Bíblia nem Hamlet, Dom Quixote jamais conheceria Sancho Pança, Raskolnikov nunca mataria e remoeria em culpa, Gregor Samsa continuaria pisando nas baratas sem o menor remorso.
quinta-feira, 25 de junho de 2009
Adoráveis mentirosos
Eu tenho um costume muito questionável: roubar as histórias alheias. Sabe aquela história tão boa, tão boa que você queria que tivesse acontecido com você? Pois é, aquela história que talvez sequer tenha acontecido com o sujeito que lhe contou? Então, descaradamente, roubo esse tipo de história.
Não saio simplesmente contando a história do outro. Me coloco no papel dele. Foi comigo que aconteceu aquilo, não com ele. Com o tempo, passo a acreditar na minha própria mentira a ponto de contá-la ao dono do causo.
Minto pouco, se comparado aos mentirosos profissionais. Aqueles simpáticos, que, quando sentem que o papo vai murchando, tratam logo de inventar uma história boa pra passar o tempo _ não os que mentem pra contar vantagem, claro, que esses são do tipo mais comum e insuportável. Ariano Suassuna conta que o Chicó, aquele do Auto da Compadecida, existiu de verdade. Quando alguém começava muito a questionar-lhe as mentiras, retrucava: "Você quer ouvir história ou quer discutir?".
Tenho vários amigos mentirosos da melhor qualidade. Não vou citá-los aqui pra não acabar não acabar com a magia que os cerca. Por excesso de talento, os "acontecimentos" contados por eles chegam a ser irroubáveis. Explico: de tão absurdos, soariam ridículos se não saíssem da boca de profissionais.
Tem um camarada que trabalhou comigo no jornal que é assim: até o sobrenome dele é inventado. Basta fulano reclamar que uma pomba lhe cagou na cabeça pra ele desandar a contar o dia em que uma águia careca americana pousou na cabeça dele e botou um ovo. A descrição conta com tamanha riqueza de detalhes que, apesar de ninguém acreditar em nada daquilo, todos se espantam de ter passado 40 minutos ouvindo tamanha maluquice.
Para isso, porém, é preciso talento. Qualidade que não me veio de berço, mas que, com muito suor, pretendo conquistar. Aos 80 anos, quero ser um grandissíssimo mentiroso. Ando treinando, ainda timidamente, roubando uma história aqui, inventando uma meia verdade ali, exagerando mais um pouco acolá, quase nem se nota. Por isso, se você perceber que recontei uma história sua, tenha paciência com um mentiroso em formação. Um dia, passará despercebido.
Não saio simplesmente contando a história do outro. Me coloco no papel dele. Foi comigo que aconteceu aquilo, não com ele. Com o tempo, passo a acreditar na minha própria mentira a ponto de contá-la ao dono do causo.
Minto pouco, se comparado aos mentirosos profissionais. Aqueles simpáticos, que, quando sentem que o papo vai murchando, tratam logo de inventar uma história boa pra passar o tempo _ não os que mentem pra contar vantagem, claro, que esses são do tipo mais comum e insuportável. Ariano Suassuna conta que o Chicó, aquele do Auto da Compadecida, existiu de verdade. Quando alguém começava muito a questionar-lhe as mentiras, retrucava: "Você quer ouvir história ou quer discutir?".
Tenho vários amigos mentirosos da melhor qualidade. Não vou citá-los aqui pra não acabar não acabar com a magia que os cerca. Por excesso de talento, os "acontecimentos" contados por eles chegam a ser irroubáveis. Explico: de tão absurdos, soariam ridículos se não saíssem da boca de profissionais.
Tem um camarada que trabalhou comigo no jornal que é assim: até o sobrenome dele é inventado. Basta fulano reclamar que uma pomba lhe cagou na cabeça pra ele desandar a contar o dia em que uma águia careca americana pousou na cabeça dele e botou um ovo. A descrição conta com tamanha riqueza de detalhes que, apesar de ninguém acreditar em nada daquilo, todos se espantam de ter passado 40 minutos ouvindo tamanha maluquice.
Para isso, porém, é preciso talento. Qualidade que não me veio de berço, mas que, com muito suor, pretendo conquistar. Aos 80 anos, quero ser um grandissíssimo mentiroso. Ando treinando, ainda timidamente, roubando uma história aqui, inventando uma meia verdade ali, exagerando mais um pouco acolá, quase nem se nota. Por isso, se você perceber que recontei uma história sua, tenha paciência com um mentiroso em formação. Um dia, passará despercebido.
quarta-feira, 24 de junho de 2009
Aspas
"Cresce-lhe a intracefálica tortura,
E de su'alma na caverna escura,
Fazendo ultra-epilépticos esforços,
Acorda, com os candieiros apagados,
Numa coreografia de danados,
A família alarmada dos remorsos."
Monólogo de uma sombra - Augusto dos Anjos
E de su'alma na caverna escura,
Fazendo ultra-epilépticos esforços,
Acorda, com os candieiros apagados,
Numa coreografia de danados,
A família alarmada dos remorsos."
Monólogo de uma sombra - Augusto dos Anjos
segunda-feira, 22 de junho de 2009
Humildade
Esqueça o papo bíblico, cristianismo, caridade. Ser humilde é questão de necessidade: canivete, lanterna, miojo, camisinha... tudo no mesmo estojo. Antes de cair/pular no abismo, vira questão de praticidade, mola propulsora, paraquedas, capacete ou pedra amarrada no pé, você escolhe. Tá certo, na infância, talvez seja um brinquedo sem utilidade. Roupa no aniversário, material escolar no Natal, lavar a mão, por que?, se a gente come com colher. Também, na adolescência, é coisa estranha, uma falta de elegância?, não, quem sabe uma excrecência?, é tanta confusão que não é justo cobrar coerência. É coisa que vem com a idade, apesar de soar, às vezes, de uma certa arrogância, sei lá, falsa magnânimidade, vai saber. A decisão é de quem vê. Podem achar que é pragmática distorção da realidade, o enganoso desprendimento do suicida. Para mim, tornou-se, depois de tantos sacolejos, o air bag da vida, a humildade.
segunda-feira, 15 de junho de 2009
Sorriso de fotografia
Érica passara a infância embelezando as bonecas, não por espírito maternal, mas como uma projeção de si mesma. Sabia que, assim que as pernas esticassem, os peitos crescessem, as curvas se fizessem no seu corpo, seria uma delas.
Talvez tivesse ficado assim por conta do elogio, aquele sempre e irritantemente repetido: “Parece uma boneca essa menina”. Nas fotos, forçava os sorrisos, dentes brancos brilhando, olhar no seu futuro. Quem a via posando dizia pra ser mais natural. Mas o resultado, revelado pelo papel, era sempre magnífico. Era como se não houvesse mais ninguém na foto, só ela, o Sol que transforma todo o resto em sombras.
Na puberdade, como previa, virou uma versão melhorada de todas as suas bonecas. Um corpo mais torneado que o da Barbie, um sorriso mais bonito que o da Susy e o cabelo mais liso que dos poneizinhos que vivia a pentear. Para namorado, escolheu o príncipe da escola. Roger, rico, lindo, bem-humorado e leal, ainda por cima um dos mais inteligentes.
Aos 20 e poucos, os dois se formaram e, naturalmente, veio o casamento. Uma festa que custou quase o preço do apartamento que compraram para morar. Eles formavam o tipo de casal que parece mais feliz do que é. Ricos, filhos lindos, ambos bem-sucedidos (ele como publicitário e ela como decoradora). A inveja, enfrentavam com desdém de quem nasce para estar lá em cima. Tanta perfeição, por vezes, beirava o marasmo.
Roger não tinha tempo para se entediar, já que sua vida fora do trabalho era apenas uma moldura. Érica trabalhava em casa por conta própria, às vezes, em dias muito lentos, tentava espantar o tédio. Outras vezes, o acolhia como um conhecido indesejável, porém, necessário. Não queria para ela aquela felicidade montanha-russa. Melhor que fosse assim, uma mansão com cercas eletrificadas no purgatório.
Sentada à beira da piscina, lia uma revista feminina que havia publicado fotos de uma casa decorada por ela. Já se habituara a ver seus trabalhos nas revistas: ela estava na moda. Em uma das páginas, uma matéria lhe chamou a atenção. Dizia: “Quem não sorri nas fotos, tem maior tendência a se separar”. O texto tinha uma entrevista com uma pesquisadora sueca que analisou o arquivo fotográfico de 1.750 casais durante dez anos. “Isso pode ser explicado por uma tendência à interiorização dessas pessoas, mais sujeitas a serem a afetadas pelas crises existenciais que culminam nos fins dos relacionamentos”, dizia a estudiosa Susan Shultz.
Érica fechou a revista e passou o dia todo inquieta, como se tivesse sido cutucada por alguém que se escondeu. De noite, jantou com o marido e os dois filhos. Depois, o casal fez o usual sexo confortável e burocrático que tanto a excitava.
No outro dia: os filhos na escola, o marido no trabalho, a empregada no mercado. Sentou-se na sala e, plam, deu de cara com a foto dela e de Roger no dia do casamento. Ela: com seu mesmo sorriso cristalizado. Ele: sério. Deu uma risada nervosa. Em seguida, abriu as gavetas de fotos e vasculhou tudo. Nada, nenhum sorriso. Roger era uma estátua de gelo nas fotos, apesar de ser tão sorridente no dia a dia.
Pegou o carro e correu para a casa da sogra. Na infância, havia de resgatar um sorriso que fosse. A mãe de Roger estranhou o pedido das fotos, sob o pretexto ridículo de que ela pretendia digitalizá-las, mas emprestou todos os álbuns fotográficos em que o filho aparecia.
Não era nem hora do almoço e Érica já se encontrava chorando loucamente, cercada por milhares de fotos, no sofá da sua sala. Passou meses em depressão, mas se recusava a contar o motivo de tanta choradeira. A pedido do marido, passou a fazer análise. Com isso, vieram os anti-depressivos, que só serviram pra lhe diminuir ainda mais o apetite sexual.
Só contou seu drama à melhor amiga, Jaqueline, fotógrafa.
_ Acho que essa teoria deve ser mais uma dessas bobagens, coisa de revista de mulher. Eu trabalho em uma, sei como é _ disse Jaqueline. _ Tá, mas posso te ajudar.
_ Como?
_ Não vou adiantar, não, quero ver se vai dar certo antes. Pode deixar comigo, só preciso das fotos. Daqui uma semana, trago tudo pra você.
Jaqueline cumpriu a promessa. Uma semana depois, trouxe tudo de volta.
_ Pode olhar _ disse, entregando uma grande caixa de papelão à Érica.
Ela rasgou a caixa, depois de se atrapalhar para abri-la, e se pôs a ver as imagens, uma a uma. Em todas elas, Roger sorria um sorriso de galã de cinema. Sorriso idêntico ao dele, aquele que nunca havia sido fotografado.
_ Amiga, eu te amo tanto! Como você fez isso?
_ Foi trabalhoso, mas simples. Do mesmo jeito que a mulherada sai nas revistas sem celulites, estrias, peito caído. Não tem segredo. Tudo pra manter seu casamento liiiindo, gata!
Roger chegou cansado naquele dia e nem deu bola para Érica, toda arrumada, sorridente e ronronante. Ela não ligou para o desprezo: acontecesse o que acontecesse, de agora em diante, seriam completamente perfeitos, sem nenhuma rachadura ou cicatriz que pudesse separá-los. Mais que amor, queria segurança. Mais que isso: perfeição com seguro quitado.
Em uma festa badalada, à qual Roger havia se recusado a ir e só mudou para fazê-la parar de chorar, foram fotografados para uma coluna social. Ela, tão preocupada com o sorriso do marido, pela primeira vez na vida saiu feia numa foto _ mordendo os lábio inferiores, os olhos um tanto tortos mirando o sorriso de Roger. Afinal, uma foto no jornal era uma evidência pública de um futuro divórcio.
Fato inédito: no dia seguinte, ela pegou o jornal correndo sequer olhou pra si. No rosto do marido, aquele lindo sorriso. Roger chegou em casa e viu o jornal em cima da mesa, follheou, não falou nada. No jantar, olhava fixamente para ela.
_ O que foi? Você está olhando tanto?
_ Nada, amor, você viu nossa foto no jornal?
_ Vi. Naquele dia tão tenso, você com esse sorriso tão lindo...
_ Sempre sorrio nas fotos. Só você olhar nos álbuns _ ele respondeu, para depois ficar calado a noite toda.
Ele não conseguia tirar da cabeça aquela foto. Passou a olhar, a todo instante, o rosto de Érica, sem nada dizer. Vez por outra, num descuido dela, encontrava a mulher da foto. Depois da curiosidade inicial, começou o desconforto. Passou a evitar olhar para ela. Já esquecida daquela baboseira dos sorrisos de fotografia, Érica não percebeu nada de estranho, achava que era uma nova onda de paixão do marido, a persegui-la com o olhar o tempo todo.
Marcela apareceu na vida de Roger numa campanha publicitária para uma marca de pasta de dente. Era a mulher com o sorriso mais lindo que ele já vira. Começaram a sair, a coisa ficou séria e, meses depois, eles estavam morando juntos.
Roger não soube explicar o motivo do rompimento para Érica, mas, durante a derradeira discussão, teve certeza. Tensa, chorando, com tiques nervosos, Érica era uma estranha. Para ele, permanentemente, uma estranha: a mulher dos olhos tortos que mordia os lábios na foto da coluna social.
Talvez tivesse ficado assim por conta do elogio, aquele sempre e irritantemente repetido: “Parece uma boneca essa menina”. Nas fotos, forçava os sorrisos, dentes brancos brilhando, olhar no seu futuro. Quem a via posando dizia pra ser mais natural. Mas o resultado, revelado pelo papel, era sempre magnífico. Era como se não houvesse mais ninguém na foto, só ela, o Sol que transforma todo o resto em sombras.
Na puberdade, como previa, virou uma versão melhorada de todas as suas bonecas. Um corpo mais torneado que o da Barbie, um sorriso mais bonito que o da Susy e o cabelo mais liso que dos poneizinhos que vivia a pentear. Para namorado, escolheu o príncipe da escola. Roger, rico, lindo, bem-humorado e leal, ainda por cima um dos mais inteligentes.
Aos 20 e poucos, os dois se formaram e, naturalmente, veio o casamento. Uma festa que custou quase o preço do apartamento que compraram para morar. Eles formavam o tipo de casal que parece mais feliz do que é. Ricos, filhos lindos, ambos bem-sucedidos (ele como publicitário e ela como decoradora). A inveja, enfrentavam com desdém de quem nasce para estar lá em cima. Tanta perfeição, por vezes, beirava o marasmo.
Roger não tinha tempo para se entediar, já que sua vida fora do trabalho era apenas uma moldura. Érica trabalhava em casa por conta própria, às vezes, em dias muito lentos, tentava espantar o tédio. Outras vezes, o acolhia como um conhecido indesejável, porém, necessário. Não queria para ela aquela felicidade montanha-russa. Melhor que fosse assim, uma mansão com cercas eletrificadas no purgatório.
Sentada à beira da piscina, lia uma revista feminina que havia publicado fotos de uma casa decorada por ela. Já se habituara a ver seus trabalhos nas revistas: ela estava na moda. Em uma das páginas, uma matéria lhe chamou a atenção. Dizia: “Quem não sorri nas fotos, tem maior tendência a se separar”. O texto tinha uma entrevista com uma pesquisadora sueca que analisou o arquivo fotográfico de 1.750 casais durante dez anos. “Isso pode ser explicado por uma tendência à interiorização dessas pessoas, mais sujeitas a serem a afetadas pelas crises existenciais que culminam nos fins dos relacionamentos”, dizia a estudiosa Susan Shultz.
Érica fechou a revista e passou o dia todo inquieta, como se tivesse sido cutucada por alguém que se escondeu. De noite, jantou com o marido e os dois filhos. Depois, o casal fez o usual sexo confortável e burocrático que tanto a excitava.
No outro dia: os filhos na escola, o marido no trabalho, a empregada no mercado. Sentou-se na sala e, plam, deu de cara com a foto dela e de Roger no dia do casamento. Ela: com seu mesmo sorriso cristalizado. Ele: sério. Deu uma risada nervosa. Em seguida, abriu as gavetas de fotos e vasculhou tudo. Nada, nenhum sorriso. Roger era uma estátua de gelo nas fotos, apesar de ser tão sorridente no dia a dia.
Pegou o carro e correu para a casa da sogra. Na infância, havia de resgatar um sorriso que fosse. A mãe de Roger estranhou o pedido das fotos, sob o pretexto ridículo de que ela pretendia digitalizá-las, mas emprestou todos os álbuns fotográficos em que o filho aparecia.
Não era nem hora do almoço e Érica já se encontrava chorando loucamente, cercada por milhares de fotos, no sofá da sua sala. Passou meses em depressão, mas se recusava a contar o motivo de tanta choradeira. A pedido do marido, passou a fazer análise. Com isso, vieram os anti-depressivos, que só serviram pra lhe diminuir ainda mais o apetite sexual.
Só contou seu drama à melhor amiga, Jaqueline, fotógrafa.
_ Acho que essa teoria deve ser mais uma dessas bobagens, coisa de revista de mulher. Eu trabalho em uma, sei como é _ disse Jaqueline. _ Tá, mas posso te ajudar.
_ Como?
_ Não vou adiantar, não, quero ver se vai dar certo antes. Pode deixar comigo, só preciso das fotos. Daqui uma semana, trago tudo pra você.
Jaqueline cumpriu a promessa. Uma semana depois, trouxe tudo de volta.
_ Pode olhar _ disse, entregando uma grande caixa de papelão à Érica.
Ela rasgou a caixa, depois de se atrapalhar para abri-la, e se pôs a ver as imagens, uma a uma. Em todas elas, Roger sorria um sorriso de galã de cinema. Sorriso idêntico ao dele, aquele que nunca havia sido fotografado.
_ Amiga, eu te amo tanto! Como você fez isso?
_ Foi trabalhoso, mas simples. Do mesmo jeito que a mulherada sai nas revistas sem celulites, estrias, peito caído. Não tem segredo. Tudo pra manter seu casamento liiiindo, gata!
Roger chegou cansado naquele dia e nem deu bola para Érica, toda arrumada, sorridente e ronronante. Ela não ligou para o desprezo: acontecesse o que acontecesse, de agora em diante, seriam completamente perfeitos, sem nenhuma rachadura ou cicatriz que pudesse separá-los. Mais que amor, queria segurança. Mais que isso: perfeição com seguro quitado.
Em uma festa badalada, à qual Roger havia se recusado a ir e só mudou para fazê-la parar de chorar, foram fotografados para uma coluna social. Ela, tão preocupada com o sorriso do marido, pela primeira vez na vida saiu feia numa foto _ mordendo os lábio inferiores, os olhos um tanto tortos mirando o sorriso de Roger. Afinal, uma foto no jornal era uma evidência pública de um futuro divórcio.
Fato inédito: no dia seguinte, ela pegou o jornal correndo sequer olhou pra si. No rosto do marido, aquele lindo sorriso. Roger chegou em casa e viu o jornal em cima da mesa, follheou, não falou nada. No jantar, olhava fixamente para ela.
_ O que foi? Você está olhando tanto?
_ Nada, amor, você viu nossa foto no jornal?
_ Vi. Naquele dia tão tenso, você com esse sorriso tão lindo...
_ Sempre sorrio nas fotos. Só você olhar nos álbuns _ ele respondeu, para depois ficar calado a noite toda.
Ele não conseguia tirar da cabeça aquela foto. Passou a olhar, a todo instante, o rosto de Érica, sem nada dizer. Vez por outra, num descuido dela, encontrava a mulher da foto. Depois da curiosidade inicial, começou o desconforto. Passou a evitar olhar para ela. Já esquecida daquela baboseira dos sorrisos de fotografia, Érica não percebeu nada de estranho, achava que era uma nova onda de paixão do marido, a persegui-la com o olhar o tempo todo.
Marcela apareceu na vida de Roger numa campanha publicitária para uma marca de pasta de dente. Era a mulher com o sorriso mais lindo que ele já vira. Começaram a sair, a coisa ficou séria e, meses depois, eles estavam morando juntos.
Roger não soube explicar o motivo do rompimento para Érica, mas, durante a derradeira discussão, teve certeza. Tensa, chorando, com tiques nervosos, Érica era uma estranha. Para ele, permanentemente, uma estranha: a mulher dos olhos tortos que mordia os lábios na foto da coluna social.
sábado, 13 de junho de 2009
A formiga e o menino
O menino vê a formiguinha carregando uma folha para o formigueiro. Pega uma régua e coloca na frente dela. Distraída, ela sobe e nem percebe que o garoto virou a régua para o lado oposto.
Quando se dá conta que o formigueiro que estava tão perto sumiu de vista, o inseto, confiante, acelera o passo rumo ao desconhecido.
Mesmo perdida, é tão arrogante essa formiga, caminhando rápido e sem olhar para trás, pensa o moleque. Para dar uma lição nela, pega um copo d'água, abre a torneira apenas por um segundo e despeja um pouco do líquido no caminho dela. O inseto vê aquele mar à sua frente e quase morre afogado, mas contorna o obstáculo, agora cheio de cautela.
Anda devagar demais, é muito medrosa essa formiga, conclui o menino. Ele joga mais água, dessa vez, atrás dela. A formiga deixa a folhinha que carregava pra trás e acelera o passo, penando para não ser engolida por aquele tsunami.
Abatida, após escapar do perigo, ela para e descansa um pouco. Já não tem mais sua folhinha e a caminhada para o formigueiro se fez desnecessária. Inútil que é, melhor seria ficar por ali mesmo.
Uma porção de açúcar, despejada à frente dela, consegue reverter o estado de desânimo. Ela se esbalda de tanto comer e continua seu caminho. Após algum tempo, vê mais um oásis de açúcar. Mesmo carregando sobras do dulcíssimo banquete recente, se põe a comer de novo tão afoita que só percebe que está devorando sal quando começa a arder todinha.
Quase desiste de sua jornada de novo e o faria certamente se o menino não colocasse mais um montão de formiguinhas passando por ali, pertinho dela. Percebendo sua semelhante tão abatida, uma delas passa a carregá-la. A formiguinha se recupera e permanece no lombo da outra, sossegada, junto com um farelo de casca de pão. Fica tão acomodada que adormece e acaba num formigueiro desconhecido.
Só acorda prestes a virar o prato principal de um almoço promovido pela sua salvadora, que é interrompido porque um terremoto, causado pela pisada firme do pé descalço do moleque, destrói o insólito formigueiro canibal.
A formiga sai desorientada dos escombros e continua sua jornada, sem saber direito para onde está indo. O menino vai para casa e se esquece da formiga. Cresce. Um dia, desses difíceis e demorados, com um copo de cerveja quase quente na mão, sozinho em uma mesa de bar, descobre que, mesmo ainda sendo jovem e com tanto para viver, há muito deixou de ser aquele garoto. O menino existiu algum dia? Tinha apenas uma certeza: agora, ele é a formiga.
Quando se dá conta que o formigueiro que estava tão perto sumiu de vista, o inseto, confiante, acelera o passo rumo ao desconhecido.
Mesmo perdida, é tão arrogante essa formiga, caminhando rápido e sem olhar para trás, pensa o moleque. Para dar uma lição nela, pega um copo d'água, abre a torneira apenas por um segundo e despeja um pouco do líquido no caminho dela. O inseto vê aquele mar à sua frente e quase morre afogado, mas contorna o obstáculo, agora cheio de cautela.
Anda devagar demais, é muito medrosa essa formiga, conclui o menino. Ele joga mais água, dessa vez, atrás dela. A formiga deixa a folhinha que carregava pra trás e acelera o passo, penando para não ser engolida por aquele tsunami.
Abatida, após escapar do perigo, ela para e descansa um pouco. Já não tem mais sua folhinha e a caminhada para o formigueiro se fez desnecessária. Inútil que é, melhor seria ficar por ali mesmo.
Uma porção de açúcar, despejada à frente dela, consegue reverter o estado de desânimo. Ela se esbalda de tanto comer e continua seu caminho. Após algum tempo, vê mais um oásis de açúcar. Mesmo carregando sobras do dulcíssimo banquete recente, se põe a comer de novo tão afoita que só percebe que está devorando sal quando começa a arder todinha.
Quase desiste de sua jornada de novo e o faria certamente se o menino não colocasse mais um montão de formiguinhas passando por ali, pertinho dela. Percebendo sua semelhante tão abatida, uma delas passa a carregá-la. A formiguinha se recupera e permanece no lombo da outra, sossegada, junto com um farelo de casca de pão. Fica tão acomodada que adormece e acaba num formigueiro desconhecido.
Só acorda prestes a virar o prato principal de um almoço promovido pela sua salvadora, que é interrompido porque um terremoto, causado pela pisada firme do pé descalço do moleque, destrói o insólito formigueiro canibal.
A formiga sai desorientada dos escombros e continua sua jornada, sem saber direito para onde está indo. O menino vai para casa e se esquece da formiga. Cresce. Um dia, desses difíceis e demorados, com um copo de cerveja quase quente na mão, sozinho em uma mesa de bar, descobre que, mesmo ainda sendo jovem e com tanto para viver, há muito deixou de ser aquele garoto. O menino existiu algum dia? Tinha apenas uma certeza: agora, ele é a formiga.
quinta-feira, 11 de junho de 2009
Entre microfones e bocejos...
Um avião caiu em cima da minha aposentadoria. Novamente, aqui estou no circo, cercado por microfones da CNN, AFP, FDP, PCC... Mudam as siglas, mas a rotina continua a mesma.
Dezenas de jornalistas amontoados em um canto, esperando que os porta-vozes da tragédia aérea soltem migalhas de notícia entre o "bom dia" e o "obrigado". Algumas menininhas da TV cuidando mais da maquiagem que da matéria e outras, decorando suas falas em voz baixa. Os cinegrafistas brigando entre si e xingando o primeiro que ousar passar pela frente da sua santa imagem. Os fotógrafos, ostentando suas máquinas fálicas, jogando xaveco pra cima das estagiárias. Os motoristas dando palpites sobre o imponderável. E eu, lá vou eu novamente.
Dezenas de jornalistas amontoados em um canto, esperando que os porta-vozes da tragédia aérea soltem migalhas de notícia entre o "bom dia" e o "obrigado". Algumas menininhas da TV cuidando mais da maquiagem que da matéria e outras, decorando suas falas em voz baixa. Os cinegrafistas brigando entre si e xingando o primeiro que ousar passar pela frente da sua santa imagem. Os fotógrafos, ostentando suas máquinas fálicas, jogando xaveco pra cima das estagiárias. Os motoristas dando palpites sobre o imponderável. E eu, lá vou eu novamente.
terça-feira, 2 de junho de 2009
O louco
O louco é o inocente que passa distraidamente pelos mais diversos perigos e sempre sai ileso, protegido que é das divindades (principalmente de Dionísio, o deus do vinho, da arte, da luxúria). Idealista, canta seus amores pelas ruas sem dar a mínima para o que pensam os outros. É evocado pelos fiéis amantes apaixonados em fuga e, ao mesmo tempo, pelos libertinos do sexo livre. O bobo de Shakeaspeare é o único que só diz a verdade, em uma corte em que um olhar atravessado pode levar à morte. Força da natureza que é, o louco ou o bobo, como quer que o chamem, não tem medo de nada por não saber o que é o perigo. Está à beira do abismo, prestes a dar o grande salto para outra dimensão.
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