terça-feira, 4 de maio de 2010

quinta-feira, 22 de abril de 2010

Hiato

Um pouco sem tempo, um pouco com preguiça, um pouco. Mas essa semana termino uns dois textos que estão engatilhados para postar aqui.

segunda-feira, 12 de abril de 2010

O cavaleiro do Poço da Panela

O trote do cavalo, o tamborilar nos paralelepípedos da Estrada Real do Poço, em pleno século 21, parecia inacreditável. O natural, diante de som tão sobrenatural, seria que o barulho do cavalo se aproximasse e desaparecesse, sem a aparição de nenhum animal. Seria só mais um galope da imaginação. Mas, subitamente, veio o menino em seu cavalo. Sem sela, montado no pelo, tinha uma camiseta na cabeça. No rosto do cavaleiro, um sorriso de alegria. Atrás dele vinham outros garotos, todos desmontados, certamente escudeiros do primeiro. Até eu fiquei com vontade de seguir o menino cavaleiro pelas ruas do bairro que existe em todos os tempos ao mesmo tempo, mas, naquela hora, eu estava atrasado. E o cavaleiro se foi...


PS. Vejam a galeria de fotos que eu e Diana fizemos do Poço da Panela em http://picasaweb.google.com.br/artur.rodrigues/PocoDaPanelaPorDianaEArtur

sexta-feira, 9 de abril de 2010

A foto perdida e a briga do século


Não me lembrava de ter posado para essa foto. Não me lembrava sequer de que alguém dessa turma tivesse uma câmera, já que ninguém tinha dinheiro para nada nessa época, muito menos para comprar e revelar filmes. Provavelmente, essa excursão, a um sítio, foi paga por algum candidato vereador, como é comum acontecer em épocas de eleição. De mim, o sujeito não ganhou nenhum voto, porque nem título de eleitor eu tinha na época.

Devia ter 16 anos, por aí. Estou sentado, com a camiseta do São Paulo, magrinho e com mais cabelo que me lembro ter tido. Alguns dos fotografados, todos ilustres moradores de Artur Alvim, na Zona Leste de São Paulo, continuam meus amigos. A grande maioria, porém, eu nunca mais vi. Dois deles não vi por um motivo bastante especial: eles morreram (o sujeito de pé, ao centro, usando boné e camiseta branca, morreu afogado depois de entrar bêbado no mar; e o adolescente também de pé, de camiseta azul, tomou seis tiros alguns anos depois dessa foto).

Esse dia não foi um dia comum. Não foi só um monte de adolescentes jogando futebol, bebendo refrigerante com cachaça vagabunda e procurando, em vão, conhecer alguma menina para depois contar vantagem sobre o que não fizeram. Foi muito mais que isso: esse foi o dia da briga do século. OK, houve brigas maiores, principalmente se incluirmos torcidas organizadas e as guerras mundiais nessa conta, mas foi a maior briga de que me lembro ter participado. (Eu, que nunca fui de brigas, eu, que na categoria individual tenho um cartel de duas lutas, com uma vitória e uma derrota, ressaltando que a vitória se deve principalmente a um tropeço do adversário em uma pedra.)

Alguns dos que estão na foto saíram para dar uma volta, procurando garotas. Sabendo que a ronda seria infrutífera, resolvi continuar a beber, provalemente, a minha pinga com groselha. Pois bem, os que saíram atrás de mulher acabaram encontrando confusão. Voltaram correndo para buscar ajuda e acharam um monte de bêbados prontos para trucidar o primeiro que aparecesse. Ali no meio, com meu cartel insignificante, segui a turba.

Éramos muito mais numerosos que nossos inimigos. Éramos muito mais barulhentos que eles. Éramos muito mais briguentos que eles. Pelo menos, os que estavam comigo eram. Um dos nossos entrou sozinho no ônibus dos caras e foi jogando os inimigos para fora. Outro grandalhão pegava os pobres coitados pelo pescoço e os esganava. Vendo tudo isso, eu me animei. Me achei na obrigação de participar daquele episódio de bravura e idiotice juvenil.
Vi um sujeito correndo e passei a persegui-lo. "Preciso acabar com esse cara em grande estilo", pensei. Resolvi, então, dar uma voadora no sujeito. Lá ia eu, voando, quase um Bruce Lee, um Ryu do Street Fighter, a ponto de acertar um pontapé na cara do inimigo, quando meu rosto se encontra subitamente com um cotovelo no ar. Sim, o sujeito que até então fugia de mim foi mais esperto que eu e deixou o cotovelo bem paradinho enquanto minha cara se aproximava por conta própria. Pode parecer ridículo, mas até hoje só consigo lembrar dessa cena em câmera lenta.
Se aqueles passarinhos que giram em volta da cabeça dos personagens de desenho animado existissem, eu teria visto uma revoada. E quando voltei a mim, a briga já havia acabado e meu nocaute em nada havia de abalar a vitória retumbante dos meus amigos.

Depois disso, assisti a outras tantas brigas, algumas das quais com finais trágicos, com gente baleada, sangue no chão, mães chorando, mas não me meti em nenhuma delas. Pensando bem, talvez o principal culpado pelo meu pacifismo atual tenha sido aquele cotovelo. Aquele cotovelo anônimo me fez ver que nasci para ser testemunha, não protagonista das brigas. Pode ser que isso me renda menos glórias. Pode ser que elimine todas as minhas possibilidades de ser um Aquiles ou um Ulisses, um Hércules ou um Sansão, um Wolverine ou um... Mário Bros. Em compensação, causa muito menos hematomas. Hoje em dia, para mim, isso está mais do que bom.

quarta-feira, 31 de março de 2010

A despedida do rei

Continuarei sem nada pedir. Não receberei, porém, nada menos do que quero. A medida das coisas é a medida do meu desejo. É-me preferível o vazio à satisfação pela metade. Minha cabeça não processa metades. Não me lembro de me flagrar querendo tomar meia taça de vinho ou comer meio pedaço de pão. Admito que, em momentos de covardia, cheguei a agradecer metade como se fosse o dobro ou o triplo. Mas tenho a desculpa justa de poder chamar essas ocasiões de diplomacia.

Posso até lidar com os excessos, mesmo que seja encharcado por eles, mas perdi a paciência para a falta. Pois ela, a vida, que me cativou pelo exagero, passou a administrar-me, de repente, pelo regime da escassez. Caso a privação fosse temporária, ocasional, só serviria para ressaltar as benesses de um cotidiano marcado pela abundância. Agora, quando o muito só aparece na insustentabilidade do pouco, lembra uma cereja sem bolo, flutuando no ar sem razão alguma de existir.

Sou eu a cereja sem bolo. Ao ver a coroa separar-se da minha cabeça, depois de uma longa vida a serviço do povo, minha coroa levada pelas mãos sujas daqueles barbudos grosseiros, desses bárbaros travestidos de revolucionários, fico com mais pena dos meus súditos que de mim. Nesse momento de esperança, de ilusão, transfiguraram-se em mim. Cada um em sua choupana pensando: sou a nova majestade. Todos eles degustando lavagem com a arrogância de quem está prestes a se deliciar com lagosta e vinho. Não desconfiam, os pobrezinhos, que minha coroa só cabe em uma cabeça de cada vez; e só encaixa direito em uma, a minha, não importa quantos se achem donos dela.

Nesse catre, não tocarei em nenhuma comida que não tenha sido feita pelo meu cozinheiro e não beberei nenhuma bebida que não venha da minha adega. Estando meu cozinheiro preso e minha adega sendo violentada por paladares bárbaros, definharei de cabeça erguida, sem dar a eles o gosto de transformar minha queda em um espetáculo. O show será dado pelos próprios barbudos revolucionários, que matarão uns aos outros na tentativa de sentar no meu trono até não sobrar mais ninguém.

O contra-ataque dos meus cavaleiros, mais hora menos hora, deve chegar até aqui. Não pretendo esperá-los, porém, sob pena de perder meu tempo e dignidade. É bem provável que eles percam batalhas e acabem nas masmorras. Alguns podem acabar juntando-se ao inimigo, o que seria muito doloroso de se ver _ cavaleiros guerreando ao lado de soldados amadores?

A essa altura, a única coisa que aceitaria deles, mesmo que abaixo do meu nível de exigência, seria uma mulher. Não precisaria ser linda, bastaria que fosse jovem, limpa e que não fosse a rainha _ colocada em outra cela, no único gesto de hombridade por parte dos bárbaros. As câmeras por todos os lados tirariam a privacidade durante o ato, mas eles certamente aprenderiam alguma coisa vendo a cópula real. Não, por mais selvagens e despreparados que eles sejam, jamais me dariam essa oportunidade _ certamente o populacho ficaria impressionado com a minha performance e me levaria nos braços de volta ao trono! O que eles querem, acima de tudo, é o contrário: desmontar minha imagem pública, com o bisturi sempre eficaz das ilhas de edição. Quem sabe montar um filme mostrando minhas últimas horas de vida, minhas intimidades, meus momentos de fraqueza?

Se depender de mim, perderão seu tempo. Mesmo no único trono que me resta, trato de manter a compostura que nos diferencia. Ao fim de tudo, só me arrependo de não viver o suficiente para ver no que eles se transformarão. Vira-latas com jubas de leão, talvez? Pastiches de rei, com roupas de soldados? Tivesse a companhia de um dos meus magos, poderia ver o futuro em qualquer talher de prata. Mas queimaram-me os feiticeiros e roubaram-me a prata, portanto, resta-me apenas a imaginação para rir deles durante tempo que ainda tenho.

segunda-feira, 29 de março de 2010

Nós, os hamsters e a rat race



Uma amiga me apresentou a uma expressão que, imediatamente, casou com uma sensação que há muito conheço. A expressão é rat race. Ao pé da letra, seria corrida de rato, o nome dado para aquelas rodinhas que os hamsters ficam rodando inutilmente nas gaiolas. A expressão é sabiamente usada para definir aquelas épocas em que nos afogamos em nossos empregos _ carreiras? _ e não enxergamos mais nada.

Se você reparar bem, já perdeu vários anos da sua vida feito os hamsters, correndo sem chegar a lugar algum. A diferença é que eles vivem numa gaiola e não têm para onde ir. Você, um ser humano livre, poderia estar em qualquer lugar, mas está se matando para crescer dentro de uma empresa. Você, ser humano adulto, está preso ao que seus chefes e colegas acham de você. Você, ser humano único, passa a achar que é um pedaço da empresa. Você, ser humano o quê?, não sabe mais quem é você.

Passei por isso tantas vezes, muitas delas tendo consciência da roubada em que estava me metendo. Usava desculpas do tipo: "Estou fazendo isso apenas temporariamente, mas não levo nada disso a sério". Daqui a pouco, lá estava eu perdendo fins de semana pensando no trabalho da segunda-feira. Em uma conhecida empresa jornalística paulistana na qual trabalhei, teve gente que saiu da redação de cadeira de rodas, quase explodindo de nervoso, enquanto os tiranos da salinha de vidro ganhavam seus salários de dois dígitos para não fazer nada. Não é à toa que o lugar foi apelidado de sucursal do inferno.

Quando a coisa chega a esse ponto, quando se está prestes a entrar no escritório e atirar na cabeça até da mulher do cafezinho que não tem nada a ver com a história, deveria entrar alguém na cena e dizer: "Pegadinha do malandro!". Ou: "Isso aqui é só uma encenação. Não é de verdade, é uma espécie de reality show, um microcosmo". Ou ainda: "O que acontece aqui só é importante aqui, não no resto do mundo. Vamos, tenha mais senso de humor". Essa pessoa até existe, na nossa cabeça. De tanto ser ignorada, às vezes, resolve não perder mais tempo com a gente. Se déssemos atenção a esses alertas, seríamos mais satisfeitos com a vida, tenho certeza disso. Veríamos as coisas do tamanho que elas realmente são, não na lente de aumento do ambiente corporativo.

Os hamsters, claro, não concordariam com essa teoria, satisfeitos que estão com suas vidas. Longe da gaiolinha cheia de pó de serra, em vez de viver um ano, poderiam durar menos de um mês. Certamente seriam comidos por gatos, cachorros e outros animais famintos. Além disso, não tenho dúvidas de que, fofinhos e inofensivos que são, seriam motivo de chacota entre as escoladas ratazanas. Chego a desconfiar que os hamsters nunca viveram no mundo real. Nasceram nas gaiolas, só para sua rat race. Nós não.

sábado, 27 de março de 2010

Reset mental

Às vezes, fico pensando como seria legal poder dar reset no cérebro. O que foi salvo, foi salvo. O resto desaparece no limbo dos pensamentos. OK, sei que isso teria muitos efeitos colaterais, como não se aprender com os próprios erros e ter a sensibilidade exacerbada daqueles que vivem em redomas. Mas seria só às vezes, só quando o que martela na cabeça faz tanto barulho que não dá para ouvir mais nada, só quando dá vontade de desaparecer. Dizem que alguns monges budistas sabem fazer isso, mas fazem tanto que suas cacholas tornaram-se um reset contínuo, ecoando mantras ininterruptamente.

terça-feira, 9 de março de 2010

Duas rodas e a cidade em extinção

Andar de bicicleta e olhar casas antigas do Recife tem sido o meu passatempo noturno nos últimos tempos. Em São Paulo, cheia de subidas e com paisagens totalmente desinteressantes, meus planos de tornar-me um ciclista de verdade acabaram virando motivo de piada entre quem me conhecia. Afinal, a bicicleta que uso hoje foi comprada há uns dois anos e, até trazê-la para o Recife, havia pisado no asfalto no máximo três vezes. Minha figura roliça, fumante e beberrona também não ajudava.

As vantagens são que o Recife tem ruas planas, que facilitam as coisas para quem quer andar de bicicleta, e casas antigas, para olhar, obviamente, já que não tenho hoje a mínima possibilidade de comprar uma delas. Todas as noites, lá vou eu cobiçar as casas alheias, construídas há 300 anos, espaçosas e espremidas entre os prédios que devoram a cidade. Passo, olho para dentro, vejo os móveis, se tem alguém, se estão abandonadas, se são habitada por velhinhos ou por gente nova, por artistas plásticos descolados ou executivos de gosto retrô. Claro que a maioria das respostas não tem o menor rigor científico, não passa apenas de ficção que crio para me entreter. Mas olho, descaradamente, a ponto de, vez por outra, ser seguido algum tempo por viaturas da polícia. Logo eles me esquecem, visto que ladrões não costumam andar de capacete e luzinhas piscando, só para facilitar o trabalho da polícia.

E há tanto o que ver aqui. São tantas casas, tantas ruas de paralelepípedos, tanta história que, mais cedo ou mais tarde, vai ser atropelada por um shopping ou um condomínio residencial. Mesmo sendo tantas, essas construções estão em extinção, já que os arpões das empreiteiras derramam cada vez mais sangue da cidade, forrando quarteirões de casas demolidas com suas placas de "EM BREVE: 3 DORMITÓRIOS, DUAS SUÍTES, DUAS VAGAS NA GARAGEM".

sábado, 20 de fevereiro de 2010

Um folião paulistano no Carnaval de Pernambuco

Começou o ano, finalmente, em Pernambuco. Quem atrasou o início de 2010 em quase três meses foi o Carnaval. Paulistano, eu não tinha ideia do que era isso, Carnaval, aqui, tão importante quanto o Natal. Mais que isso, para não haver dúvidas, o Carnaval é como se fosse o aniversário de todo mundo ao mesmo tempo. Como não cabe todo mundo em uma casa só, todo mundo vai pra rua.

A rua é como se fosse o salão de festas, todo decorado. O bolo, aqui no Recife, é um galo enooorme, no meio da ponte Duarte Coelho, sobre o Rio Capibaribe. Ninguém come o galo, mas não faltam galinhas para quem gosta...

O espírito está por toda parte, por Pernambuco todo. Mas se o Carnaval tivesse um endereço certamente ele seria o Sítio Histórico de Olinda. Sempre me perguntei por que os portugueses resolveram construir uma cidade num lugar tão alto, cheio de ladeiras. Dá trabalho pra ir na padaria, no mercado, imagina voltar para casa bêbado com tanta subida pra subir... Pois é, descobri que Olinda foi criada para o Carnaval. E que ladeira, ao som do frevo e com um latona gelada de cerveja na mão, vira descida. Eu, um notório preguiçoso, subi várias vezes a mais cruel das subidas, a Ladeira da Misericórdia, como se estivesse flutuando.

Seria muito dizer que a gravidade desaparece no Carnaval de Olinda? Não. Tanto que me pendurei em um dragão voador, o mascote do bloco Acho é Pouco, criado por comunistas doidões na época da Ditadura e hoje administrado só pelos doidões mesmo. O bordão do bloco é "Eu acho é pouco! É bom de mais! Eu acho é pouco! É bom demais", cantado na noite de terça-feira, poucas horas antes da tal "quarta-feira ingrata, chega tão depressa, só pra contrariar..."

Pois é, estava esquecendo do melhor: em Olinda, axé music é proibido. Quer dizer, é proibido passar com trio elétrico, o que de qualquer maneira afasta os cantores de axé. O frevo, que todo mundo canta no Carnaval, é uma música muito antiga. Parece que ninguém mais faz frevo e, se faz, ninguém canta antes de a composição fazer 50 anos. É que nem vinho bom...

Ahhh, não tem abadá, aquela camiseta que custa 300 reais na Bahia. Aqui, as pessoas pensam o ano todo nas fantasias que vão fazer. Eu, paulista que deixa tudo para a última hora, não pensei. Peguei uma roupa amarela, umas caixas de Sedex e me fantasiei de Sedex 10, só para não passar vergonha. Mas tem gente com fantasias geniais pela rua. No domingo, sai o bloco Enquanto Isso Na Sala de Justiça, em que todo mundo se veste de super-herói. Tem desde X-Men a gente que inventa outros heróis, como supermercado, superficial, superado...

Tem esses blocos tradicionais, mas tradição não é quesito desclassificatório no Carnaval de rua. Teve um sujeito que foi trocar a porta de casa durante o Carnaval. No trajeto para levar a porta nova, ganhou um montão de seguidores. Virou um bloco, chamado A Porta. Tem orquestra, estandarte e dezenas de adeptos que saem juntos há mais de 10 anos.

No jornal em que trabalho, é proibido usar a palavra irreverência nas matérias sobre o Carnaval, desgastada pelo uso incessante em TODAS as matérias nos anos anteriores. Mas, devo admitir, que é a palavra perfeita para definir esse espírito. No ano que vem tem mais irreverência. Agora, o jeito é se conformar com as festas pós-carnavalescas que ainda restam. Me disseram que uma delas se chama Não Acredito Que Te Beijei.

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

A prostituta dos sentimentos

Há um mês, eu acordava, escovava os dentes e ia para a cozinha. Abria a garrafa de café, fosse quente ou frio, colocava um pouco no copo americano, jogava uma colher de sopa de açúcar e mexia sem colher mesmo. Acendia um Marlboro Light na sacada e tragava fundo. Uma onda de alívio surgia no meu corpo, geralmente um formigamento agradável, seguido por uma tosse, extremamente desagradável (ãrrãrrããããããã!!!).

Depois disso, eu enchia um copo de leite com nescau e comia um sanduíche de queijo e presunto devidamente derretido e tostado na frigideira até que o pão de forma adquirisse aquela consistência mais rígida e ficasse escurinho no centro. Ao chegar no trabalho, ia até a máquina de café expresso, colocava a moeda e me inebriava com o cheiro do café recém-torrado. Enchia o copo de plástico de açúcar e chacoalhava. Acendia o segundo cigarro do dia. Nas duas horas seguintes, faria isso mais três ou quatro vezes, cada vez com menos prazer. Até a última, pouco antes do almoço, quando começava a sensação de envenenamento.

Desde o começo de fevereiro, tudo mudou. De manhã, acordo e como um prato cheio de frutas (geralmente, manga, mamão e o que mais tiver em casa). Depois, tomo iogurte e, no fim do mês, quando as compras acabam e a grana diminui, leite com granola. Não fumo nem antes nem depois. Não fumo nunca, mesmo. Ao chegar ao trabalho, bebo o mesmo café, mas em outro contexto. Com adoçante. Pouco direi sobre o resto do meu dia, no qual troco o macarrão com rabada do almoço por alface com peixe, para não entediar os leitores imaginários deste blog.

Meu corpo se ressente com a mudança. É como se me tirassem um órgão a cada dia que passa (a essa altura, só deve me sobrar o baço, que descobri ser um órgão recentemente, mas ainda não sei para que serve). Ele, meu corpo, bem sabe que o motivo dos meus sorrisos não era bem o Sol, a praia, a cerveja gelada e os seres bonitos que andam para lá e para cá com roupas mínimas. Meu sorriso era diretamente proporcional a Ela, a Dopamina, o neurotransmissor que poderia ter evitado o holocausto se circulasse pela cabeça daquele pobre bigodudo mal-amado (saiba mais aqui). O neurotransmissor que fez do cigarro, da cerveja, do sexo, do pão, do chocolate, coisas tão prazerosas aos olhos dos nossos geniosos neurônios.

Sem Dopamina, não enxergo o Sol nos ensolarados dias recifenses. Sem Dopamina não há sorrisos nem futuro, não há bom dia, a cerveja não faz mais que a obrigação, as mulheres bonitas apenas compõem a paisagem e o mar é uma poça de água suja. Sem Dopamina, Deus teria muito menos amigos, mesmo que ainda passeasse por aí fazendo milagres.

Pois é, pois é. Às 19h de anteontem, eu, com baterias de fogos de ódio estourando no meu cérebro, daquelas que levam alguém a atropelar velhinhas que atravessam a rua vagarosamente, peguei minha bicicleta e saí por aí. Rodei por alguns quilômetros. Andei pelas nostálgicas paragens do Poço da Panela e Apipucos (digite no Gooogle Images, please). Chacoalhei pelo chão de paralelepípedos. A cada pedalada, lá estava ela, a Dopamina, sendo bombeada para o meu cérebro saudoso-de-nicotina-açúcar-pão-chocolate-purê-de-batata-arroz-gororoba-com-tudo-misturado. Horas depois, quilômetros mais tarde, lá estava eu, satisfeito, sem motivo algum. Ou satisfeito por enxergar em miniatura os mesmos motivos que me faziam chorar. Ou por visualizar de maneira mais nítida as razões que antes eram microscópicas demais para me fazer sorrir.

Isso me leva à seguinte questão: o que pensamos, vivemos, sentimos, o que acontece com a gente, a sorte ou azar têm alguma importância, sem Ela, a Dopamina? Um sujeito que tem tudo na vida, com um déficit Dela, é mais feliz que outro, miserável em saúde, amigos, grana, rico apenas na quantidade de Dopamina circulando pelo cérebro? Se uma substância química (mal e porcamente produzida pelo nosso corpo) é o segredo da felicidade, nossa percepção do mundo é muito mais maleável do que jamais sonhei. Diante dessa (ir)realidade, a felicidade nada mais é que a prostituta dos sentimentos, a mais volúvel das guloseimas.

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

O Galo

Nada mais importa, o Carnaval aqui no Recife é tudo. Em forma de assovio, os frevos brotam dos lábios distraídos. As conversas, mesmo que comecem sobre assuntos de maior gravidade, espontaneamente acabam em discussões sobre fantasias e blocos de rua.

Dia desses tive a verdadeira dimensão da importância da folia na vida dos pernambucanos. Uma mãe contou que recebeu uma ligação de alguém que dizia que o filho dela estava ameaçava se matar, com a boca de uma garrafa de cerveja quebrada encostada no pescoço.

"A mulher largou dele e ele tava bêbado, dizendo que daquele dia ele não passava. Aí eu disse: 'Você largue esse troço já, seu safado. Ou se mate de uma vez... porque se você morrer sábado, seu corpo vai ficar esperando no IML... que eu vou pro Galo de qualquer jeito! Não vou perder o Galo porque causa de você não, ouviu?"

Pergunta se o cara se matou?

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

Nuvens, cantem o barulho da chuva



As nuvens estacionaram há 20 dias sobre o Recife, sob a justificativa de um vórtice ciclônico. Os nativos tiram suas blusas do armário e gripam quase que por obrigação. Parece que a iminência da chuva oprime os filhos da claridade extrema.

Limito-me a um sorriso cifrado, daqueles que surgem quando torço para os bandidos nos filmes, enquanto todos ao meu lado choram pelo mocinho em perigo. Torço por elas, pelas nuvens. Tão etéreas que poderiam ser sugadas por aspiradores de pó, elas justificam-se. Mandam cartas com remetente e endereço: frente fria, da Argentina; vórtice ciclônico, do Atlântico; massa de ar quente, do Caribe.

De natureza gentil e delicada, mesmo tendo nas mãos os trovões e temporais, as nuvens amansam a tirânia do Sol, que penetra nas frestas, rouba a sombra, cega com sua luz até os olhos mais fechados. É possível sentir a textura macia de algodão ao pronunciar: nuvens, nuvens, nuvens. Fiquem aí, só mais algumas manhãs, tinjam o céu de cinza, encham as ruas de poças d'água, cantem o barulho da chuva.

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

À deriva

À deriva, sem vontade de ligar o motor ou tocar no remo, sem vontade de chegar. Tanto faz se à deriva no Triângulo das Bermudas ou a poucos metros da praia, tanto faz, a terra sempre pareceria longínqua e pouco atraente. O sol corrói a pele e me refresco com pequenos goles de água salgada, ao mesmo tempo rasgando e afagando minha garganta. Estou suando frio. Corto pedaços da vela e transformo em cobertor. Cubro-me até a cabeça, esquecido de rotas, mapas, pontos cardeais, destinos. Mesmo de olhos fechados, a luz me persegue, atravessa minhas pálpebras, violando a escuridão à qual até os mais miseráveis têm direito. Penso: quem dera estivesse dentro de uma garrafa para ser achado por alguém.

domingo, 17 de janeiro de 2010

Psicografia

Idéia nenhuma. Idéia nenhuma passa pela minha mente. É só um poço, cheio de ecos e estampidos de memórias. Sonhos que pedem socorro, amordaçados, eles parecem ridículos, ridículos. E aqui estou psicografando, psicografando esse vazio que só pode vir do além. Dramas longínquos cospem desaforos na minha cara. E eu escrevo a lápis, a lápis.

Acendo dezenas de cigarros e sinto o meu pulmão se esvaindo e o acendo também. Acendo uma tocha e boto fogo na casa e saio apagando as faíscas só pra passar o tempo.

Eu espero por ele. Sempre tenho que esperar. Mas ele nunca chega na hora, jamais. Diz que o tempo é muito diferente lá de onde vem. Diz tudo isso muito galantemente. De uma forma que faz toda essa minha impaciência parecer criancice. Me masturbo só pra passar o tempo também.

O melhor é ir até a cozinha e esquentar um café. Se ele vier agora terá de esperar, ou toma café comigo, ou nada feito. No ínfimo espaço de tempo em que coloco a água para esquentar, vejo minha vida passar sob uma trilha sonora de estalos até que me sinto esguio e poderoso, flutuando no gozo de alguém que não cheguei a conhecer. Eu tenho vontade de voar e o meu rabo rema vertiginosamente. Não posso controlar minha velocidade. Sou o mais rápido, não posso parar. Mas eles estão me alcançando, então eu volto, volto, volto, até uma caverna escura que acaba numa explosão. Meu visitante, certamente, tem noção do que é essa plenitude, a plenitude do big-bam, dos drive-ins, das coxias, dos cantos escuros.

Meu café ficou horrível.

Fico relendo os capítulos anteriores. Magníficos. Pena que dependo dele. Gostaria eu de poder fazer isso quando quisesse. Ligaria um interruptor no meu umbigo e escreveria as sentenças mais criativas e trama mais envolvente se encadearia sob custódia da irracionalidade dos meus dedos ágeis, que trotam irregulares pelo teclado do computador. Mas ele não usa computador. Só escreve a lápis. Não consigo, sinceramente, me conformar que um ser tão evoluído não tenha se acostumado com o computador.

Lembro que da primeira vez ele insistiu que eu comprasse uma pena e um tinteiro. E eu ainda não fazia idéia de como ele podia ser cabeça dura. Ainda estava pasmo com o abismo de possibilidades que ele me abriria com aquele gesto estranho que sempre faz. Uma coçada no nariz, sem o uso das mãos. Um cacoete deveras interessante, tenho que admitir. Ouço um barulho lá embaixo, mas não é ele. Ele chega sem barulho algum, sem o menor aviso, e envolve o ar com seu cheiro de eternidade. Sei que ele está perto, posso senti-lo. Então desço e vou preparar o seu jantar. A noite está gelada e os cachorros latem. Abro o quartinho dos fundos e acendo a luz. Dessa vez arrumei-lhe um belo jantar. Não há motivos para reclamações. Levanto aquele corpo amolecido e carrego-o nos ombros. Suas pálpebras piscam, mas sei que não vai acordar. Subo as escadas e coloco-o na cama - sinto sua presença no ar. As paredes mudam de cor. Minha mão coça para escrever. Meus nervos sabem muito bem, agora, o caminho para posteridade.

Como sempre, está muito bem vestido. Faz um sinal de aprovação ao olhar sua presa em cima da cama. Digo-lhe para retribuir em mais um capitulo fenomenal. Mas ele já está ocupado, devorando sua refeição. Come sem fazer barulho e chupa as entranhas com gosto. Rói cada osso e, como sempre, me espanto com o jeito com que enfia o fêmur pela garganta, feito um engolidor de espadas.

Encosta ao meu lado, lambendo os beiços finos, e elogia minha escolha, sem abrir a boca. Poderia explicar o trabalho que me deu, mas ele sabe, sabe de tudo. Posso sentir toda sua sabedoria quando coloca as mãos sobre meu ombro e eu começo a escrever vertiginosamente. Página após página é como se fosse o jorro inicial, como se ele tivesse o dom de arrebentar a comporta dos pensamentos do universo e todos estivessem ali, à minha disposição. As horas passam e eu vou me sentindo cada vez mais pleno e as páginas vão se empilhando à minha frente. Até que me sinto vazio, a comporta se fecha, e eu caio no choro, num choro de soluços desesperados, na abstinência de sua presença. Apago sobre as folhas, com lápis na mão, apago como se estivesse morto.

Acordo grogue, e sinto ânsia do cheiro acre que desprega do quarto. Minha cama desarrumada, meus pensamentos também, a tentação do suicídio na primeira mijada, o banho quente que parece lavar minha alma, se é que eu ainda tenho uma. As folhas empilhadas.

segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

AS BELAS DO TRÁFICO *

Georgeta, em ensaio na prisão. Foto: Marcos Michael/JC Imagem

Há um ano, a romena Georgeta Albu, 20 anos, estava prestes a acabar o ensino médio. A bela jovem estava namorando e planejava fazer faculdade de direito. Fluente em seis idiomas, poderia escolher qualquer país da Europa para trabalhar quando formada. Nessa época, nem de longe suspeitava que se envolveria em uma trama na qual terminaria em uma cela com dez detentas, no Brasil, condenada por tráfico internacional de drogas.
Traficantes nigerianos viram na jovem a chance de lucrar mais de 1.000% ao levar cinco quilos de pasta-base de cocaína do Brasil para a Itália. Mulheres bonitas, de classe média e sem envolvimento com o crime, como Georgeta, são alvos cada vez mais frequentes dos aliciadores, diz a polícia. “Os traficantes procuram pessoas acima de qualquer suspeita, de boa aparência, que não despertem desconfiança”, diz o delegado do Departamento de Repressão ao Narcotráfico (Denarc) da Polícia Civil Luiz Andrey.
“Foi a tentação que me trouxe até aqui”, conta a romena, em português quase perfeito, aprendido no Brasil. Por tentação, entenda-se a chance de ganhar 2 mil. Mesmo recebendo mesada da mãe que foi para a Itália trabalhar para pagar seus estudos, Georgeta arriscou. Viajou a Itália, São Paulo e só viu o mar da costa pernambucana pela janela do avião. Acabou presa pela Polícia Federal (PF) no Aeroporto Internacional do Recife, há oito meses.
Vestindo calça jeans justa, uma regata branca e maquiada, ela e outras duas reeducandas, como preferem ser chamadas, despertaram olhares de inveja – e até de cobiça – dentro da Colônia Penal Feminina do Recife, na última quarta-feira, durante sessão de fotos. “A gente já sofre tanto aqui dentro que se arruma só para mascarar a tristeza”, diz Georgeta, que tenta manter a beleza mesmo sem os cremes e xampus que enchiam a penteadeira de sua casa, em Suceava, na Romênia. A maior saudade, porém, não é dos cosméticos, mas da família. Mesmo ganhando pelo trabalho como secretária na colônia, Georgeta ainda recebe mesada da mãe.
Vestindo um curtíssimo vestido preto, A.C., 24, também faz da vaidade seu consolo. O salão de beleza da colônia dá conta da escova no cabelo e da pintura das unhas, que paga com o salário que ganha trabalhando na lanchonete, mas ela ainda sente falta da depilação. “Só tem o básico aqui”, diz a moça, que, por necessidade, trocou a cera quente pela gilete na prisão. Antes de ser presa pela PF com dois quilos de cocaína, a então aluna de pedagogia transportava a droga com a confiança de quem nunca havia sido parada pela polícia. “Acho que entrei nisso por causas das amizades. Era muito dinheiro”, justifica-se.

AMOR BANDIDO
Patricinhas do tráfico, Georgeta e A. são exceções. Entre as detidas por esse tipo de crime, a maioria é pobre e tem na sua história um amor bandido. “Os criminosos, mesmo os assaltantes, passam a lidar com tráfico quando são presos. Isso porque quem vai correr o risco são terceiros, que muitas vezes são mulheres”, afirma o delegado Carlo Marcus Correia, da PF. Essa estratégia pode ter ajudado no aumento de 233% da população carcerária no Estado, que passou de 300, em 2002, para cerca de 1.000 este ano. Entre essas detentas, uma em cada seis foi detida por tráfico.
O livro Amor bandido - as teias afetivas que envolvem a mulher no tráfico, da professora da Universidade Federal de Alagoas Elaine Pimentel, confirma a tese. “Não é só uma questão econômica. As mulheres entram para o crime também por afeto, pelo homem que amam, pela família”, afirma. Ela revela que, ao traficar, há mulheres que acreditam não estar cometendo crime algum. “O discurso mais comum é: ‘Crime é matar e roubar. Vendo a minha droga, só compra quem quer’”, diz.
A história de Ana Paula Silva, 25, parece ter saltado do livro de Elaine. Ela apaixonou-se por um criminoso aos 14 anos. Acusado de assalto e homicídio, o marido passou só o primeiro dos 11 anos do casamento em liberdade. “Nunca quis abandoná-lo para não ser covarde. Não precisava do dinheiro, só queria ajudá-lo”, diz. Com dois filhos e uma década após o início do romance, foi presa no fim de 2009. “Escutas me flagraram falando com meu marido no telefone. Eu não traficava diretamente, só levava um telefone ali, fazia depósito bancário”, conta ela, hoje a padeira da colônia, que garante ter posto um fim no amor que a levou para trás das grades.

* Matéria minha publicada na edição de domingo do Jornal do Commercio do último domingo