segunda-feira, 28 de setembro de 2009
O homem e seu sonho
Deus dá o poder de sonhar o infinito. Junto com ele, uma pá e uma cova já cavada para enterrar o sonho. Se o homem tiver preguiça de carregar o pesado sonho até o buraco e jogar a terra já afofada sobre ele, num estalar de dedos, faz aparecer um coveiro bem disposto a fazer tudo sozinho. O homem só precisa esperar. Se for impaciente, faz aparecer uma cadeira confortável, uma revista e um uísque para matar o tempo. Caso esteja indeciso, lhe dá um amigo para conversar, talvez até o desaconselhar a enterrar o sonho. Se o amigo só servir para deixá-lo mais em dúvida, lhe dá um amor, uma família, um cachorro, um terapeuta e dinheiro comprar o que quiser. A maioria dos homens, espreguiçando-se sobre as delícias da espera, nem nota o trabalho do coveiro que nunca para. Alguns despertam sonolentos, no fim da vida, sentindo-se injustiçados ao presenciar o pomposo funeral do sonho. Outros simplesmente esquecem o que estão enterrando. Há um tipo de homem, porém, que faz o mais difícil: joga o coveiro, o uísque, a revista, a cadeira, o amigo, o amor, a família, o cachorro, o terapeuta e o dinheiro dentro do buraco. Por fim, para eliminar qualquer tentação de mudar de ideia, joga a pá. Agarra punhado por punhado de terra e os despeja sobre a profunda cova. Quando termina, tem as mãos em carne viva, nem um copo d'água para matar a sede ou uma sombra para descansar. É só começo. Está nu e a sós com seu sonho, uma bagagem que só não pesa mais que as dúvidas que esqueceu de enterrar.
domingo, 30 de agosto de 2009
A morte da história
A história estava dentro dela. Era escrita, reescrita, editada, entre nervos, pele, sangue. Memória? Mais que memória. Quem sabe um órgão? Coração, estômago, pulmão e a história. Negava a história, cutucava a história, matava a história, tirava-lhe o H na tentativa de transformá-la em estória, causo, piada, fantasia. Quimioterava a história, para torná-la frágil e pelada, para que ficasse com vergonha e fosse embora. Só infeccionava o que era óbvio: não se arranca a história feito tumor, apêndice, verruga. A história continua a se repetir dentro do coliseu de ossos e músculos. O único jeito de matá-la é não morrer com ela. Embalsamá-la em palavra morta, entre vírgulas e pontos, estrangular até imobilizá-la em duas dimensões, epitáfio de si mesma.
terça-feira, 25 de agosto de 2009
Eu, a torcida independente e a tiazinha mais corajosa do mundo
Ilha do Retiro. A multidão se aglomera em volta do estádio para assistir o glorioso tricolor paulista contra o decadente alvirrubro pernambucano. Era o início de um domingo inesquecível.
Apesar de saber que se tratava de uma inequívoca roubada, resolvi ir ao jogo, sei lá, para matar a saudade da terra natal por meio do futebol do melhor time do Brasil.
O torcedor do time da casa tinha camarote, cadeira numerada, espaço até pra soltar pipa. Na torcida do São Paulo, eram uns cinco mil no espaço onde caberia, no máximo, dois mil. Mas sou um homem valente, vamos lá, fui criado por uma família de lobos!
Bastou eu entrar no estádio para eu perceber que seria impossível ver o jogo. Mas, diz o consultor empresarial, o bem sucedido é o que vê oportunidade quando está tudo uma merda completa. Pois bem, a merda estava lá, só faltava a oportunidade.
Pois não é que ela apareceu. Começou uma briga, daquelas que todo mundo sai correndo e deixa só os encrenqueiros se estapeando. E lá fui eu, bem para o meio da briga, subindo as arquibancadas até um ponto onde poderia ver a partida perfeitamente.
Começa o jogo. Descubro que meus vizinhos de torcida são os educadíssimos integrantes da torcida independente. Decubro que os educadíssimos torcedores vão agitar suas bandeiras bem na minha frente, o que jogaria no lixo todo meu esforço para chegar a posto tão privilegiado.
As bandeiras se agitam e... De repente, eles começam a gritar: "Solta essa porra dessa bandeira, solta, solta sua puta!" Olho para o lado e vejo uma tiazinha agarrada à bandeira da torcida.
A mulher, talvez por não conhecer as boas maneiras da torcida independente, devolve: "Seus filhos de rapariga! Filhos de rapariga! Estão pensando que são quem!"
A coisa esquenta. Os torcedores, muito sensibilizados com a situação da mulher, gritam: "Quer assistir o jogo vai pra casa! Estamos aqui pra torcer!" E seguem para cima da valente torcedora da terceira idade, prontos a mostrar a ela por que a torcida independente é tão bem vista pela polícia de São Paulo.
Quando a tragédia se anuncia, eis que surge a tropa de choque da PM. Altivos, vão subindo a arquibancada em direção à confusão, com seus escudos e cassetetes. Entram na muvuca e saem de lá com... com a tiazinha revoltada! A independente, que estava acuada por aquela baderneira violentíssima, vibra.
Um dos sujeitos que estava pronto a mostrar o caminho do IML à brutal senhora
grita: "Ela me mordeu!"
Um gigante sem camisa do meu lado fica tão feliz que me abraça. Detalhe: ele estava sem camisa. Detalhe: minha cabeça ficava na altura do suvaco dele. Detalhe: ele gostou tanto de mim que me abraçou o jogo inteiro.
Ah, o São Paulo ganhou de 2 a 1. Fico me perguntando até hoje onde estava aquela truculenta tiazinha na hora que Hugo marcou o gol da vitória aos 48 do segundo tempo. Uma coisa é certa: ela estava longe demais para me proteger do último abraço da partida.
Apesar de saber que se tratava de uma inequívoca roubada, resolvi ir ao jogo, sei lá, para matar a saudade da terra natal por meio do futebol do melhor time do Brasil.
O torcedor do time da casa tinha camarote, cadeira numerada, espaço até pra soltar pipa. Na torcida do São Paulo, eram uns cinco mil no espaço onde caberia, no máximo, dois mil. Mas sou um homem valente, vamos lá, fui criado por uma família de lobos!
Bastou eu entrar no estádio para eu perceber que seria impossível ver o jogo. Mas, diz o consultor empresarial, o bem sucedido é o que vê oportunidade quando está tudo uma merda completa. Pois bem, a merda estava lá, só faltava a oportunidade.
Pois não é que ela apareceu. Começou uma briga, daquelas que todo mundo sai correndo e deixa só os encrenqueiros se estapeando. E lá fui eu, bem para o meio da briga, subindo as arquibancadas até um ponto onde poderia ver a partida perfeitamente.
Começa o jogo. Descubro que meus vizinhos de torcida são os educadíssimos integrantes da torcida independente. Decubro que os educadíssimos torcedores vão agitar suas bandeiras bem na minha frente, o que jogaria no lixo todo meu esforço para chegar a posto tão privilegiado.
As bandeiras se agitam e... De repente, eles começam a gritar: "Solta essa porra dessa bandeira, solta, solta sua puta!" Olho para o lado e vejo uma tiazinha agarrada à bandeira da torcida.
A mulher, talvez por não conhecer as boas maneiras da torcida independente, devolve: "Seus filhos de rapariga! Filhos de rapariga! Estão pensando que são quem!"
A coisa esquenta. Os torcedores, muito sensibilizados com a situação da mulher, gritam: "Quer assistir o jogo vai pra casa! Estamos aqui pra torcer!" E seguem para cima da valente torcedora da terceira idade, prontos a mostrar a ela por que a torcida independente é tão bem vista pela polícia de São Paulo.
Quando a tragédia se anuncia, eis que surge a tropa de choque da PM. Altivos, vão subindo a arquibancada em direção à confusão, com seus escudos e cassetetes. Entram na muvuca e saem de lá com... com a tiazinha revoltada! A independente, que estava acuada por aquela baderneira violentíssima, vibra.
Um dos sujeitos que estava pronto a mostrar o caminho do IML à brutal senhora
grita: "Ela me mordeu!"
Um gigante sem camisa do meu lado fica tão feliz que me abraça. Detalhe: ele estava sem camisa. Detalhe: minha cabeça ficava na altura do suvaco dele. Detalhe: ele gostou tanto de mim que me abraçou o jogo inteiro.
Ah, o São Paulo ganhou de 2 a 1. Fico me perguntando até hoje onde estava aquela truculenta tiazinha na hora que Hugo marcou o gol da vitória aos 48 do segundo tempo. Uma coisa é certa: ela estava longe demais para me proteger do último abraço da partida.
sábado, 15 de agosto de 2009
Leveza
Às vezes, acontece. Não há circunstância externa aparente. Tudo, de repente, curiosamente, fica leve. Você acorda flutuando sobre a cama sem se dar conta de peculiaridade alguma no dia que nasce como todos os outros insistentes dias.
Os sentidos, aguçados, alertam para o que não há sentido. A pasta de dente parece surpreendentemente saborosa, como o café morno, o pão borrachento, o cigarro amargo, a cerveja demais, o filme desnecessário. Até a dor de cabeça crônica torna-se uma cócega levemente dolorida, um coceira gostosa no juízo.
Há quem passe a vida buscando a leveza. Não, não... não se engane, ela é arredia, feito o sono, cheia de curvas. Só vem à custa da mais distraída distração. Ou à base da trapaça farmacêutica tarja rubronegra.
Praticantes de um profundo desapego a agarram nas mãos com tanta força, deixando nóduas tão resolutas, que transformam gás helio em chumbo. Despencam do céu convencidos de que vão aterrissar nas nuvens. Enganadíssimos estão.
Em vidas marcadas a ferro com o signo da responsabilidade e das obrigações, encarceradas na obesidade do cotidiano de um adulto nem mais nem menos, é capaz de transmutar os círculos infernais ou as sonolentas paragens paradisíacas em charmosos recantos do purgatório. O prazer de tirar os sapatos apertados do espírito, sabendo que vai ter de calçá-los no dia seguinte.
Os sentidos, aguçados, alertam para o que não há sentido. A pasta de dente parece surpreendentemente saborosa, como o café morno, o pão borrachento, o cigarro amargo, a cerveja demais, o filme desnecessário. Até a dor de cabeça crônica torna-se uma cócega levemente dolorida, um coceira gostosa no juízo.
Há quem passe a vida buscando a leveza. Não, não... não se engane, ela é arredia, feito o sono, cheia de curvas. Só vem à custa da mais distraída distração. Ou à base da trapaça farmacêutica tarja rubronegra.
Praticantes de um profundo desapego a agarram nas mãos com tanta força, deixando nóduas tão resolutas, que transformam gás helio em chumbo. Despencam do céu convencidos de que vão aterrissar nas nuvens. Enganadíssimos estão.
Em vidas marcadas a ferro com o signo da responsabilidade e das obrigações, encarceradas na obesidade do cotidiano de um adulto nem mais nem menos, é capaz de transmutar os círculos infernais ou as sonolentas paragens paradisíacas em charmosos recantos do purgatório. O prazer de tirar os sapatos apertados do espírito, sabendo que vai ter de calçá-los no dia seguinte.
sábado, 8 de agosto de 2009
O silêncio no meu vocabulário
Eu não sei o que dizer. Tem quem saiba o tempo todo, mas eu não sei. Tem quem viva sincronizado em um diálogo escrito, reescrito, revisado e ensaiado. Não eu. As palavras saem, mas antes ou depois do momento certo. Saem desmedidas, distorcidas, desastradas. Não me arrependo do que digo, mas de ter dito. Não invejo os que vivem com a palavra mais certa na ponta da língua, mas os que a guardam na boca, mastigam, engolem, transformando-a em silêncio. Gostaria de ter o silêncio no meu vocabulário. Não qualquer silêncio. Há falsos silêncios circulando pelo ar: é possível ouvi-los. Alguns são como tagarelice, não querem dizer nada, apenas fazer barulho. Outros são moralistas, a quietude cheia de significado, quase um grito de guerra. Até a mudez não é o silêncio completo, cheia de murmúrios que é, a mão de Deus tapando com força a boca do homem. Quero o silêncio natural, em estado puro, que nada quer dizer, aquele que passa despercebido a todos, inclusive a mim.
terça-feira, 4 de agosto de 2009
Falência múltipla dos órgãos
Começa coceira no cérebro. Tecido nervoso que não tem dedos para dar alívio a si mesmo. Inquietude escorrega pelas veias, vez por outra, arranhando suas paredes com garras afiadíssimas, a esmo. Vira diarréia no intestino. À esquerda, cirrose no fígado. Num desatino, erra o caminho e faz o retorno, úlcera no estômago. Desacelera para estacionar enfisema no pulmão. Arrisca passos de dança fora do ritmo, contaminando o bate-bate do coração. Infarto certo irradia pelo corpo e atordoa a visão. Olhar vidrado espatifa para todos os lados, baço. Finalmente, a calma. O corpo caído no terraço, escorado na sacada da alma.
domingo, 2 de agosto de 2009
O mar, caprichoso e distante
O mar, magnífico e injustificável, cruel e mágico, tem vontade própria e brinca comigo, com a gente. Acelera o barco rumo à terra, mais rápido do que nunca. Quando a tripulação se prepara para jogar a âncora, arruma as malas, come os chocolates que havia guardado para os períodos de fome, quando nossos pés já sentem o cheiro da terra grudada na borracha dos sapatos, as ondas levantam-se maliciosas e sorridentes e atiram o barco para tão longe, tão longe de qualquer lugar, que ficamos tontos; perdemos o foco e já não sabemos mais onde estamos. O céu se escurece sobre nossas cabeças.
A memória passa a ser como um membro amputado, conseguimos senti-lo, quase tocá-lo, dolorido, em chamas, latejante. Lá vai a lembrança inquieta tocando os dedos no nosso ombro, pedindo atenção feito fazem as crianças.
Mas crianças não vão para o mar nem têm lembranças lindamente inconvenientes como as nossas. Somos adultos, marinheiros, sempre soubemos que uma vez no mar teríamos de ter paciência. Teremos de domar nossas memórias, nossa fome, nosso cansaço, teremos de adestrar as lágrimas, acostumar nosso paladar aos gostos diferentes, carregar punhados de paciência em todos os bolsos e tragar longamente o fumo salgado da maresia. O mar, um dia, cede, melhr, concede, por pena ou divertimento, sabe-se lá, talvez demore mais ou talvez não.
A memória passa a ser como um membro amputado, conseguimos senti-lo, quase tocá-lo, dolorido, em chamas, latejante. Lá vai a lembrança inquieta tocando os dedos no nosso ombro, pedindo atenção feito fazem as crianças.
Mas crianças não vão para o mar nem têm lembranças lindamente inconvenientes como as nossas. Somos adultos, marinheiros, sempre soubemos que uma vez no mar teríamos de ter paciência. Teremos de domar nossas memórias, nossa fome, nosso cansaço, teremos de adestrar as lágrimas, acostumar nosso paladar aos gostos diferentes, carregar punhados de paciência em todos os bolsos e tragar longamente o fumo salgado da maresia. O mar, um dia, cede, melhr, concede, por pena ou divertimento, sabe-se lá, talvez demore mais ou talvez não.
quinta-feira, 16 de julho de 2009
Sexo-jornalismo: a primeira a gente não esquece

Foi a minha primeira vez. No jornalismo, que fique claro. Sem nada pra fazer, achei essa matéria, publicada em 2002 na Revista Crocodilo _ com certeza a mais trabalhosa que já fiz. Por mais doido que pareça, é tudo, tudo verdade.
*Zona vertical
São Paulo, 10 milhões de habitantes, a segunda maior população da América Latina, só perdendo para a Cidade do México. Detalhe: mais da metade desse povo todo é mulher.
Teoricamente, os homens casados deveriam estar felizes, cada um com a sua. E os solteiros, esses estariam seguros de que não faltaria mulher no mercado. Mas nem tudo é tão simples assim. Desde que o mundo é mundo, o sexo pago é um negócio rentável.
E como em toda metrópole, São Paulo oferece uma gama enorme opções quando se fala de prostituição. Na zona nobre da cidade, o sujeito que quiser “tirar a barriga da miséria” com beldades que parecem ter saído direto da passarela para a cama (redonda, é opcional) pode ter de desembolsar entre 300 e 1000 reais. Mas a putaria é democrática.
No centro de São Paulo, mais precisamente perto da famosa Estação da Luz, fica o “meia-nove”. Bem localizado na região conhecida como “boca do lixo”, o prédio discreto abriga uma das maiores “zonas verticais” da city – uma espécie de Galeria Pagé do sexo.
São 9 andares povoados de centenas de garotas para você escolher. Ou ser escolhido, porque elas agarram e não largam mais (este repórter que o diga). Munido de um vale alimentação de R$8 e muito amor para dar, eu conheceria o carinho e o ódio das moradoras do número 69 da rua Andradas, quase de esquina com a av. Cásper Líbero.
“É hoje!”
Sexta-feira, 18 horas. Estou na pequena fila que se forma em frente ao prédio. Homens de todas as idades esfregam as mãos, ansiosos. Afinal, este é o desfecho para mais uma semana de trabalho duro.
“É hoje”, exclama um rapaz moreno, que aparentava uns trinta anos. Ele me conta que freqüenta o “meia-nove” há cinco anos. Há três, se mantém fiel a uma das garotas. “Ela é meu escape”, confessa.
Logo na portaria, deixo a mochila no guarda-volumes (R$1). Só se sobe com essencial, no caso, a carteira. “Para evitar alguma tragédia”, explica de trás do balcão um negro alto, cheio de jóias no pescoço, enquanto checa meus documentos para se certificar que sou “de maior”.
Um cara de meia-idade, que acaba de voltar de sua empreitada pelo prédio, reclama das meninas do nono andar. “Isso é selvageria! Olha o que elas fizeram com a minha roupa”, diz, mostrando a camisa rasgada no colarinho e o pescoço arranhado.
No elevador, ninguém aperta o número 9, não sei por quê. Eu, por precaução, também fico no oitavo. A porta se abre. Daqui pra frente, não tem mais volta.
“Vem cá, gostosão, vamos foder bem gostoso”, convida uma dezena de garotas. Todas, seminuas, me agarram pelo braço, enquanto eu tento fugir, um tanto assustado com o assédio repentino.
“Ah! Esse gosta de uma rola bem grande”, grita uma delas, apontando pra mim, que já conseguia descer a escada estreita, mal iluminada e lotada de mulheres.
A concorrência
Não há luzes néon nem música ambiente, só mulheres de todos os naipes. Gordas e magras, coroas e garotas que acabaram de sair da adolescência, todas quase saindo no tapa para ganhar a clientela. Algumas xingam, outras agarram. Mas o principal argumento das moçoilas para conseguir um programa é botar defeito nas mulheres dos outros andares.
“Nem adianta descer, este é o melhor andar”, me disse uma delas, que, pela cara, já beirava os 40 anos. Já no quinto, algumas fizeram questão de mostrar como o chão era limpo e insistiam: “Daqui para baixo, é só puta porca. Por isso que elas não gostam da gente.”
“Dez minutos ou uma gozada”
Continuo descendo. No quarto andar, não cabe mais ninguém. Uma mulher de quase um metro e oitenta, vestida com cinta-liga, me puxa pelo pescoço e diz: “Agora cê vai ver o que é bom”, enquanto me arrasta para um dos cubículos, separados um dos outros somente por biombos que mal chegavam até o teto. Na parede, um pôster da Kelly Key com uma camisinha na boca diz: “Mostre que você sabe o que quer”. Em cima do pequeno criado mudo, pelo menos umas trinta camisinhas daquelas da prefeitura.
Ela diz que pra mim vai fazer só R$10. Engraçado, já tinha ouvido isso dezenas de vezes naquela noite. Tentando escapar da investida, já meio arrependido de estar ali, eu aviso que só tenho um ticket de R$8 no meu bolso. “Não faz mal, não, gatinho. Eu gostei de você”, responde, me jogando com tudo na cama pequena, de solteiro. E pergunta: “Você prefere ‘por baixo’ ou ‘de quatro’?” Mal tive tempo de responder e ela já colocava a camisinha em mim, enquanto explicava:”O sistema aqui é o seguinte: dez minutos ou uma gozada”.
Saí de lá suado e quase derrubei o biombo que separava o cubículo em que eu estava do quarto ao lado. Algumas mulheres ainda tentaram me agarrar na saída, mas quando eu chegava mais perto percebiam que daquele bolso não sairia mais nada. “Ihhh...esse aí já era”, diziam algumas.
Outras, porém, ainda insistiam quando eu explicava que já tinha feito o que tinha de fazer por ali.
“Eu trabalho aqui das 8 da manhã até 9 da noite e quando chego em casa ainda dou umazinha com o meu marido e você não agüenta dar duas na mesma noite”, me esculhambou uma mulata, vestida só de calcinha. Então, respondi que não queria nada com mulher casada. Ela apagou o cigarro, nervosa, e me mandou praquele lugar. Calma, pensei, poderia ser pior, eu poderia ser o marido dela.
Quando finalmente consigo chegar ao térreo já eram 19 horas. Uma multidão de homens continuava a entrar. O “meia-nove” fervia, como sempre.
quinta-feira, 9 de julho de 2009
Estrangeiro
O estrangeiro é aquele que passa pela rua e observa todos os demais levando os livros das histórias de suas vidas debaixo do braço. Sentadas nos cafés e fumando seus cigarros, andando apressadas a caminho do trabalho, simplesmente passeando sem destino ou coçando o nariz, as pessoas abrem seus livros, contam suas histórias para si próprias e para os outros, mesmo sem necessidade, já que os ouvintes conhecem a ladainha de cor. O forasteiro também carrega seu livro. Mas não adianta: chega a passar vexame quando faz menção de abri-lo e ninguém vê o volume encadernado caprichosamente em couro, que encerra tantas aventuras que quase chegam a pular das páginas para o mundo. Aos olhos nativos, é como se ele tivesse acabado de nascer, ali mesmo, já no auge da maturidade, sem um pingo de passado. O próprio estrangeiro passa a não querer carregar mais aquele calhamaço que lhe parece cada vez mais pesado e inútil. Uma noite, com saudade da familiaridade, abre o volume e percebe que o texto ali escrito está em um idioma totalmente desconhecido para ele. Aquela intraduzível história é, no entanto, tudo que ele tem.
domingo, 5 de julho de 2009
O homenzinho que vive na minha cabeça
Às vezes, me dou conta do homenzinho que vive na minha cabeça. Um workaholic, esse homenzinho. Enquanto eu durmo, ele trabalha. Quando estou distraído, ele está atento. Cientificamente falando, uma mistura de subconsciente, sonho, reflexo e mágica formam o corpo desse sujeito que, por ter nascido na minha cabeça, é de certa maneira irmão dos meus neurônios.
A primeira vez que percebi a existência dele foi durante um jogo de sinuca, esporte nobilíssimo no qual sou um zero a esquerda, apesar das minhas pretenções malandrísticas. Vez por outra, entre tacadas ridículas que arremassam bolas da mesa, ele aparece. É como se por um momento eu estivesse fora e ele assumisse o controle. Pá, pá, pá, três bolas seguidas na caçapa. Detalhe: pelo menos duas eram impossíveis.
Como ele trabalha com qualidade, não quantidade, geralmente acabo perdendo mesmo essas partidas em que ele dá as caras, por total incompetência de fazer desaparecer as bolas que restam.
Aos poucos, fui percebendo que ele é muito mais que um mero jogador de sinuca. Já salvou minha vida algumas vezes, desviando-me de balas de revólver e de ônibus em alta velocidade. Até, certa feita, dando-me força sobrehumana para acertar um direto no queixo de um grandalhão que me estraçalharia com um suspiro.
Vaidoso, ele assume, vez por outra, a tarefa de conquistar mulheres (claro que hoje em dia, por conta do meu estado de seríssimo comprometimento, não lhe dou mais essas liberdades!). Mas, voltando ao assunto, ele, com seu papo mole, várias vezes me viu imerso em minha timidez e assumiu o controle da situação com maestria, gerando consequências que não é de bom tom espalhar.
Fico pensando se foi ele que bateu aquela falta no ângulo, um petardo de direita, meu ponto fraco no esporte ludopédico. Mas, não, isso não importa. O que tem, de fato, importância é que o tal homenzinho guarda no bolso do seu terno um pozinho que faz o impossível parecer piada. Fico imaginando o problemão que vai dar a hora que me fizer sair voando por aí.
Ser pretensioso esse homenzinho que resolveu ser escritor e escrever um texto cheio de elogios a si próprio. Pois é, quem escreve aqui, na maioria das vezes, é ele. Eu fico com o arroz feijão das matérias de jornal. Fulano de Tal, como eu o chamo por falta de nome melhor, prefere investir na literatura, o terreno do impossível.
Um dia, ele ameaça, chega pra ficar e não me deixa mais dar um pio na minha vida. Não acredito. O que me dá esse sossego é saber que ele enjoa rápido de tudo, como aconteceu com esse texto, que abandonou perto do fim. Sujeitinho cheio de gostos e desgostos que é, sempre me deixa seguir em frente, por mais desajeitados que lhe pareçam meus passos.
A primeira vez que percebi a existência dele foi durante um jogo de sinuca, esporte nobilíssimo no qual sou um zero a esquerda, apesar das minhas pretenções malandrísticas. Vez por outra, entre tacadas ridículas que arremassam bolas da mesa, ele aparece. É como se por um momento eu estivesse fora e ele assumisse o controle. Pá, pá, pá, três bolas seguidas na caçapa. Detalhe: pelo menos duas eram impossíveis.
Como ele trabalha com qualidade, não quantidade, geralmente acabo perdendo mesmo essas partidas em que ele dá as caras, por total incompetência de fazer desaparecer as bolas que restam.
Aos poucos, fui percebendo que ele é muito mais que um mero jogador de sinuca. Já salvou minha vida algumas vezes, desviando-me de balas de revólver e de ônibus em alta velocidade. Até, certa feita, dando-me força sobrehumana para acertar um direto no queixo de um grandalhão que me estraçalharia com um suspiro.
Vaidoso, ele assume, vez por outra, a tarefa de conquistar mulheres (claro que hoje em dia, por conta do meu estado de seríssimo comprometimento, não lhe dou mais essas liberdades!). Mas, voltando ao assunto, ele, com seu papo mole, várias vezes me viu imerso em minha timidez e assumiu o controle da situação com maestria, gerando consequências que não é de bom tom espalhar.
Fico pensando se foi ele que bateu aquela falta no ângulo, um petardo de direita, meu ponto fraco no esporte ludopédico. Mas, não, isso não importa. O que tem, de fato, importância é que o tal homenzinho guarda no bolso do seu terno um pozinho que faz o impossível parecer piada. Fico imaginando o problemão que vai dar a hora que me fizer sair voando por aí.
Ser pretensioso esse homenzinho que resolveu ser escritor e escrever um texto cheio de elogios a si próprio. Pois é, quem escreve aqui, na maioria das vezes, é ele. Eu fico com o arroz feijão das matérias de jornal. Fulano de Tal, como eu o chamo por falta de nome melhor, prefere investir na literatura, o terreno do impossível.
Um dia, ele ameaça, chega pra ficar e não me deixa mais dar um pio na minha vida. Não acredito. O que me dá esse sossego é saber que ele enjoa rápido de tudo, como aconteceu com esse texto, que abandonou perto do fim. Sujeitinho cheio de gostos e desgostos que é, sempre me deixa seguir em frente, por mais desajeitados que lhe pareçam meus passos.
segunda-feira, 29 de junho de 2009
A batalha dos dedos contra os neurônios
Os dedos conspiram contra os neurônios, tinhosos que são. Não suportam uma grande ideia por saberem-se meros realizadores, incapazes de criar o que quer que seja. Cabe ao escritor domar seus dedos para que sirvam à mente feito cavalos puro sangue, ostensivamente adestrados, de trote suave e seguro. Para que a obra-prima não se desmanche no galope entre a cabeça e a tela do computador. Grandes ideias sem dedos obedientes são mantimentos apodrecendo dentro de contêineres num porto longínquo. Dedos bem educados, sem grandes ideias, viram carimbos de escritório de advocacia. Aleijados e excêntricos trocam seus dedos pelas cordas vocais, mas essas são tão conservadoras que suprimem o novo assim que convertem palavras em som. Sem o casamento obrigatório entre tão mortais inimigos, dedos e neurônios, não nasceriam a Bíblia nem Hamlet, Dom Quixote jamais conheceria Sancho Pança, Raskolnikov nunca mataria e remoeria em culpa, Gregor Samsa continuaria pisando nas baratas sem o menor remorso.
quinta-feira, 25 de junho de 2009
Adoráveis mentirosos
Eu tenho um costume muito questionável: roubar as histórias alheias. Sabe aquela história tão boa, tão boa que você queria que tivesse acontecido com você? Pois é, aquela história que talvez sequer tenha acontecido com o sujeito que lhe contou? Então, descaradamente, roubo esse tipo de história.
Não saio simplesmente contando a história do outro. Me coloco no papel dele. Foi comigo que aconteceu aquilo, não com ele. Com o tempo, passo a acreditar na minha própria mentira a ponto de contá-la ao dono do causo.
Minto pouco, se comparado aos mentirosos profissionais. Aqueles simpáticos, que, quando sentem que o papo vai murchando, tratam logo de inventar uma história boa pra passar o tempo _ não os que mentem pra contar vantagem, claro, que esses são do tipo mais comum e insuportável. Ariano Suassuna conta que o Chicó, aquele do Auto da Compadecida, existiu de verdade. Quando alguém começava muito a questionar-lhe as mentiras, retrucava: "Você quer ouvir história ou quer discutir?".
Tenho vários amigos mentirosos da melhor qualidade. Não vou citá-los aqui pra não acabar não acabar com a magia que os cerca. Por excesso de talento, os "acontecimentos" contados por eles chegam a ser irroubáveis. Explico: de tão absurdos, soariam ridículos se não saíssem da boca de profissionais.
Tem um camarada que trabalhou comigo no jornal que é assim: até o sobrenome dele é inventado. Basta fulano reclamar que uma pomba lhe cagou na cabeça pra ele desandar a contar o dia em que uma águia careca americana pousou na cabeça dele e botou um ovo. A descrição conta com tamanha riqueza de detalhes que, apesar de ninguém acreditar em nada daquilo, todos se espantam de ter passado 40 minutos ouvindo tamanha maluquice.
Para isso, porém, é preciso talento. Qualidade que não me veio de berço, mas que, com muito suor, pretendo conquistar. Aos 80 anos, quero ser um grandissíssimo mentiroso. Ando treinando, ainda timidamente, roubando uma história aqui, inventando uma meia verdade ali, exagerando mais um pouco acolá, quase nem se nota. Por isso, se você perceber que recontei uma história sua, tenha paciência com um mentiroso em formação. Um dia, passará despercebido.
Não saio simplesmente contando a história do outro. Me coloco no papel dele. Foi comigo que aconteceu aquilo, não com ele. Com o tempo, passo a acreditar na minha própria mentira a ponto de contá-la ao dono do causo.
Minto pouco, se comparado aos mentirosos profissionais. Aqueles simpáticos, que, quando sentem que o papo vai murchando, tratam logo de inventar uma história boa pra passar o tempo _ não os que mentem pra contar vantagem, claro, que esses são do tipo mais comum e insuportável. Ariano Suassuna conta que o Chicó, aquele do Auto da Compadecida, existiu de verdade. Quando alguém começava muito a questionar-lhe as mentiras, retrucava: "Você quer ouvir história ou quer discutir?".
Tenho vários amigos mentirosos da melhor qualidade. Não vou citá-los aqui pra não acabar não acabar com a magia que os cerca. Por excesso de talento, os "acontecimentos" contados por eles chegam a ser irroubáveis. Explico: de tão absurdos, soariam ridículos se não saíssem da boca de profissionais.
Tem um camarada que trabalhou comigo no jornal que é assim: até o sobrenome dele é inventado. Basta fulano reclamar que uma pomba lhe cagou na cabeça pra ele desandar a contar o dia em que uma águia careca americana pousou na cabeça dele e botou um ovo. A descrição conta com tamanha riqueza de detalhes que, apesar de ninguém acreditar em nada daquilo, todos se espantam de ter passado 40 minutos ouvindo tamanha maluquice.
Para isso, porém, é preciso talento. Qualidade que não me veio de berço, mas que, com muito suor, pretendo conquistar. Aos 80 anos, quero ser um grandissíssimo mentiroso. Ando treinando, ainda timidamente, roubando uma história aqui, inventando uma meia verdade ali, exagerando mais um pouco acolá, quase nem se nota. Por isso, se você perceber que recontei uma história sua, tenha paciência com um mentiroso em formação. Um dia, passará despercebido.
quarta-feira, 24 de junho de 2009
Aspas
"Cresce-lhe a intracefálica tortura,
E de su'alma na caverna escura,
Fazendo ultra-epilépticos esforços,
Acorda, com os candieiros apagados,
Numa coreografia de danados,
A família alarmada dos remorsos."
Monólogo de uma sombra - Augusto dos Anjos
E de su'alma na caverna escura,
Fazendo ultra-epilépticos esforços,
Acorda, com os candieiros apagados,
Numa coreografia de danados,
A família alarmada dos remorsos."
Monólogo de uma sombra - Augusto dos Anjos
segunda-feira, 22 de junho de 2009
Humildade
Esqueça o papo bíblico, cristianismo, caridade. Ser humilde é questão de necessidade: canivete, lanterna, miojo, camisinha... tudo no mesmo estojo. Antes de cair/pular no abismo, vira questão de praticidade, mola propulsora, paraquedas, capacete ou pedra amarrada no pé, você escolhe. Tá certo, na infância, talvez seja um brinquedo sem utilidade. Roupa no aniversário, material escolar no Natal, lavar a mão, por que?, se a gente come com colher. Também, na adolescência, é coisa estranha, uma falta de elegância?, não, quem sabe uma excrecência?, é tanta confusão que não é justo cobrar coerência. É coisa que vem com a idade, apesar de soar, às vezes, de uma certa arrogância, sei lá, falsa magnânimidade, vai saber. A decisão é de quem vê. Podem achar que é pragmática distorção da realidade, o enganoso desprendimento do suicida. Para mim, tornou-se, depois de tantos sacolejos, o air bag da vida, a humildade.
segunda-feira, 15 de junho de 2009
Sorriso de fotografia
Érica passara a infância embelezando as bonecas, não por espírito maternal, mas como uma projeção de si mesma. Sabia que, assim que as pernas esticassem, os peitos crescessem, as curvas se fizessem no seu corpo, seria uma delas.
Talvez tivesse ficado assim por conta do elogio, aquele sempre e irritantemente repetido: “Parece uma boneca essa menina”. Nas fotos, forçava os sorrisos, dentes brancos brilhando, olhar no seu futuro. Quem a via posando dizia pra ser mais natural. Mas o resultado, revelado pelo papel, era sempre magnífico. Era como se não houvesse mais ninguém na foto, só ela, o Sol que transforma todo o resto em sombras.
Na puberdade, como previa, virou uma versão melhorada de todas as suas bonecas. Um corpo mais torneado que o da Barbie, um sorriso mais bonito que o da Susy e o cabelo mais liso que dos poneizinhos que vivia a pentear. Para namorado, escolheu o príncipe da escola. Roger, rico, lindo, bem-humorado e leal, ainda por cima um dos mais inteligentes.
Aos 20 e poucos, os dois se formaram e, naturalmente, veio o casamento. Uma festa que custou quase o preço do apartamento que compraram para morar. Eles formavam o tipo de casal que parece mais feliz do que é. Ricos, filhos lindos, ambos bem-sucedidos (ele como publicitário e ela como decoradora). A inveja, enfrentavam com desdém de quem nasce para estar lá em cima. Tanta perfeição, por vezes, beirava o marasmo.
Roger não tinha tempo para se entediar, já que sua vida fora do trabalho era apenas uma moldura. Érica trabalhava em casa por conta própria, às vezes, em dias muito lentos, tentava espantar o tédio. Outras vezes, o acolhia como um conhecido indesejável, porém, necessário. Não queria para ela aquela felicidade montanha-russa. Melhor que fosse assim, uma mansão com cercas eletrificadas no purgatório.
Sentada à beira da piscina, lia uma revista feminina que havia publicado fotos de uma casa decorada por ela. Já se habituara a ver seus trabalhos nas revistas: ela estava na moda. Em uma das páginas, uma matéria lhe chamou a atenção. Dizia: “Quem não sorri nas fotos, tem maior tendência a se separar”. O texto tinha uma entrevista com uma pesquisadora sueca que analisou o arquivo fotográfico de 1.750 casais durante dez anos. “Isso pode ser explicado por uma tendência à interiorização dessas pessoas, mais sujeitas a serem a afetadas pelas crises existenciais que culminam nos fins dos relacionamentos”, dizia a estudiosa Susan Shultz.
Érica fechou a revista e passou o dia todo inquieta, como se tivesse sido cutucada por alguém que se escondeu. De noite, jantou com o marido e os dois filhos. Depois, o casal fez o usual sexo confortável e burocrático que tanto a excitava.
No outro dia: os filhos na escola, o marido no trabalho, a empregada no mercado. Sentou-se na sala e, plam, deu de cara com a foto dela e de Roger no dia do casamento. Ela: com seu mesmo sorriso cristalizado. Ele: sério. Deu uma risada nervosa. Em seguida, abriu as gavetas de fotos e vasculhou tudo. Nada, nenhum sorriso. Roger era uma estátua de gelo nas fotos, apesar de ser tão sorridente no dia a dia.
Pegou o carro e correu para a casa da sogra. Na infância, havia de resgatar um sorriso que fosse. A mãe de Roger estranhou o pedido das fotos, sob o pretexto ridículo de que ela pretendia digitalizá-las, mas emprestou todos os álbuns fotográficos em que o filho aparecia.
Não era nem hora do almoço e Érica já se encontrava chorando loucamente, cercada por milhares de fotos, no sofá da sua sala. Passou meses em depressão, mas se recusava a contar o motivo de tanta choradeira. A pedido do marido, passou a fazer análise. Com isso, vieram os anti-depressivos, que só serviram pra lhe diminuir ainda mais o apetite sexual.
Só contou seu drama à melhor amiga, Jaqueline, fotógrafa.
_ Acho que essa teoria deve ser mais uma dessas bobagens, coisa de revista de mulher. Eu trabalho em uma, sei como é _ disse Jaqueline. _ Tá, mas posso te ajudar.
_ Como?
_ Não vou adiantar, não, quero ver se vai dar certo antes. Pode deixar comigo, só preciso das fotos. Daqui uma semana, trago tudo pra você.
Jaqueline cumpriu a promessa. Uma semana depois, trouxe tudo de volta.
_ Pode olhar _ disse, entregando uma grande caixa de papelão à Érica.
Ela rasgou a caixa, depois de se atrapalhar para abri-la, e se pôs a ver as imagens, uma a uma. Em todas elas, Roger sorria um sorriso de galã de cinema. Sorriso idêntico ao dele, aquele que nunca havia sido fotografado.
_ Amiga, eu te amo tanto! Como você fez isso?
_ Foi trabalhoso, mas simples. Do mesmo jeito que a mulherada sai nas revistas sem celulites, estrias, peito caído. Não tem segredo. Tudo pra manter seu casamento liiiindo, gata!
Roger chegou cansado naquele dia e nem deu bola para Érica, toda arrumada, sorridente e ronronante. Ela não ligou para o desprezo: acontecesse o que acontecesse, de agora em diante, seriam completamente perfeitos, sem nenhuma rachadura ou cicatriz que pudesse separá-los. Mais que amor, queria segurança. Mais que isso: perfeição com seguro quitado.
Em uma festa badalada, à qual Roger havia se recusado a ir e só mudou para fazê-la parar de chorar, foram fotografados para uma coluna social. Ela, tão preocupada com o sorriso do marido, pela primeira vez na vida saiu feia numa foto _ mordendo os lábio inferiores, os olhos um tanto tortos mirando o sorriso de Roger. Afinal, uma foto no jornal era uma evidência pública de um futuro divórcio.
Fato inédito: no dia seguinte, ela pegou o jornal correndo sequer olhou pra si. No rosto do marido, aquele lindo sorriso. Roger chegou em casa e viu o jornal em cima da mesa, follheou, não falou nada. No jantar, olhava fixamente para ela.
_ O que foi? Você está olhando tanto?
_ Nada, amor, você viu nossa foto no jornal?
_ Vi. Naquele dia tão tenso, você com esse sorriso tão lindo...
_ Sempre sorrio nas fotos. Só você olhar nos álbuns _ ele respondeu, para depois ficar calado a noite toda.
Ele não conseguia tirar da cabeça aquela foto. Passou a olhar, a todo instante, o rosto de Érica, sem nada dizer. Vez por outra, num descuido dela, encontrava a mulher da foto. Depois da curiosidade inicial, começou o desconforto. Passou a evitar olhar para ela. Já esquecida daquela baboseira dos sorrisos de fotografia, Érica não percebeu nada de estranho, achava que era uma nova onda de paixão do marido, a persegui-la com o olhar o tempo todo.
Marcela apareceu na vida de Roger numa campanha publicitária para uma marca de pasta de dente. Era a mulher com o sorriso mais lindo que ele já vira. Começaram a sair, a coisa ficou séria e, meses depois, eles estavam morando juntos.
Roger não soube explicar o motivo do rompimento para Érica, mas, durante a derradeira discussão, teve certeza. Tensa, chorando, com tiques nervosos, Érica era uma estranha. Para ele, permanentemente, uma estranha: a mulher dos olhos tortos que mordia os lábios na foto da coluna social.
Talvez tivesse ficado assim por conta do elogio, aquele sempre e irritantemente repetido: “Parece uma boneca essa menina”. Nas fotos, forçava os sorrisos, dentes brancos brilhando, olhar no seu futuro. Quem a via posando dizia pra ser mais natural. Mas o resultado, revelado pelo papel, era sempre magnífico. Era como se não houvesse mais ninguém na foto, só ela, o Sol que transforma todo o resto em sombras.
Na puberdade, como previa, virou uma versão melhorada de todas as suas bonecas. Um corpo mais torneado que o da Barbie, um sorriso mais bonito que o da Susy e o cabelo mais liso que dos poneizinhos que vivia a pentear. Para namorado, escolheu o príncipe da escola. Roger, rico, lindo, bem-humorado e leal, ainda por cima um dos mais inteligentes.
Aos 20 e poucos, os dois se formaram e, naturalmente, veio o casamento. Uma festa que custou quase o preço do apartamento que compraram para morar. Eles formavam o tipo de casal que parece mais feliz do que é. Ricos, filhos lindos, ambos bem-sucedidos (ele como publicitário e ela como decoradora). A inveja, enfrentavam com desdém de quem nasce para estar lá em cima. Tanta perfeição, por vezes, beirava o marasmo.
Roger não tinha tempo para se entediar, já que sua vida fora do trabalho era apenas uma moldura. Érica trabalhava em casa por conta própria, às vezes, em dias muito lentos, tentava espantar o tédio. Outras vezes, o acolhia como um conhecido indesejável, porém, necessário. Não queria para ela aquela felicidade montanha-russa. Melhor que fosse assim, uma mansão com cercas eletrificadas no purgatório.
Sentada à beira da piscina, lia uma revista feminina que havia publicado fotos de uma casa decorada por ela. Já se habituara a ver seus trabalhos nas revistas: ela estava na moda. Em uma das páginas, uma matéria lhe chamou a atenção. Dizia: “Quem não sorri nas fotos, tem maior tendência a se separar”. O texto tinha uma entrevista com uma pesquisadora sueca que analisou o arquivo fotográfico de 1.750 casais durante dez anos. “Isso pode ser explicado por uma tendência à interiorização dessas pessoas, mais sujeitas a serem a afetadas pelas crises existenciais que culminam nos fins dos relacionamentos”, dizia a estudiosa Susan Shultz.
Érica fechou a revista e passou o dia todo inquieta, como se tivesse sido cutucada por alguém que se escondeu. De noite, jantou com o marido e os dois filhos. Depois, o casal fez o usual sexo confortável e burocrático que tanto a excitava.
No outro dia: os filhos na escola, o marido no trabalho, a empregada no mercado. Sentou-se na sala e, plam, deu de cara com a foto dela e de Roger no dia do casamento. Ela: com seu mesmo sorriso cristalizado. Ele: sério. Deu uma risada nervosa. Em seguida, abriu as gavetas de fotos e vasculhou tudo. Nada, nenhum sorriso. Roger era uma estátua de gelo nas fotos, apesar de ser tão sorridente no dia a dia.
Pegou o carro e correu para a casa da sogra. Na infância, havia de resgatar um sorriso que fosse. A mãe de Roger estranhou o pedido das fotos, sob o pretexto ridículo de que ela pretendia digitalizá-las, mas emprestou todos os álbuns fotográficos em que o filho aparecia.
Não era nem hora do almoço e Érica já se encontrava chorando loucamente, cercada por milhares de fotos, no sofá da sua sala. Passou meses em depressão, mas se recusava a contar o motivo de tanta choradeira. A pedido do marido, passou a fazer análise. Com isso, vieram os anti-depressivos, que só serviram pra lhe diminuir ainda mais o apetite sexual.
Só contou seu drama à melhor amiga, Jaqueline, fotógrafa.
_ Acho que essa teoria deve ser mais uma dessas bobagens, coisa de revista de mulher. Eu trabalho em uma, sei como é _ disse Jaqueline. _ Tá, mas posso te ajudar.
_ Como?
_ Não vou adiantar, não, quero ver se vai dar certo antes. Pode deixar comigo, só preciso das fotos. Daqui uma semana, trago tudo pra você.
Jaqueline cumpriu a promessa. Uma semana depois, trouxe tudo de volta.
_ Pode olhar _ disse, entregando uma grande caixa de papelão à Érica.
Ela rasgou a caixa, depois de se atrapalhar para abri-la, e se pôs a ver as imagens, uma a uma. Em todas elas, Roger sorria um sorriso de galã de cinema. Sorriso idêntico ao dele, aquele que nunca havia sido fotografado.
_ Amiga, eu te amo tanto! Como você fez isso?
_ Foi trabalhoso, mas simples. Do mesmo jeito que a mulherada sai nas revistas sem celulites, estrias, peito caído. Não tem segredo. Tudo pra manter seu casamento liiiindo, gata!
Roger chegou cansado naquele dia e nem deu bola para Érica, toda arrumada, sorridente e ronronante. Ela não ligou para o desprezo: acontecesse o que acontecesse, de agora em diante, seriam completamente perfeitos, sem nenhuma rachadura ou cicatriz que pudesse separá-los. Mais que amor, queria segurança. Mais que isso: perfeição com seguro quitado.
Em uma festa badalada, à qual Roger havia se recusado a ir e só mudou para fazê-la parar de chorar, foram fotografados para uma coluna social. Ela, tão preocupada com o sorriso do marido, pela primeira vez na vida saiu feia numa foto _ mordendo os lábio inferiores, os olhos um tanto tortos mirando o sorriso de Roger. Afinal, uma foto no jornal era uma evidência pública de um futuro divórcio.
Fato inédito: no dia seguinte, ela pegou o jornal correndo sequer olhou pra si. No rosto do marido, aquele lindo sorriso. Roger chegou em casa e viu o jornal em cima da mesa, follheou, não falou nada. No jantar, olhava fixamente para ela.
_ O que foi? Você está olhando tanto?
_ Nada, amor, você viu nossa foto no jornal?
_ Vi. Naquele dia tão tenso, você com esse sorriso tão lindo...
_ Sempre sorrio nas fotos. Só você olhar nos álbuns _ ele respondeu, para depois ficar calado a noite toda.
Ele não conseguia tirar da cabeça aquela foto. Passou a olhar, a todo instante, o rosto de Érica, sem nada dizer. Vez por outra, num descuido dela, encontrava a mulher da foto. Depois da curiosidade inicial, começou o desconforto. Passou a evitar olhar para ela. Já esquecida daquela baboseira dos sorrisos de fotografia, Érica não percebeu nada de estranho, achava que era uma nova onda de paixão do marido, a persegui-la com o olhar o tempo todo.
Marcela apareceu na vida de Roger numa campanha publicitária para uma marca de pasta de dente. Era a mulher com o sorriso mais lindo que ele já vira. Começaram a sair, a coisa ficou séria e, meses depois, eles estavam morando juntos.
Roger não soube explicar o motivo do rompimento para Érica, mas, durante a derradeira discussão, teve certeza. Tensa, chorando, com tiques nervosos, Érica era uma estranha. Para ele, permanentemente, uma estranha: a mulher dos olhos tortos que mordia os lábios na foto da coluna social.
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