Érica passara a infância embelezando as bonecas, não por espírito maternal, mas como uma projeção de si mesma. Sabia que, assim que as pernas esticassem, os peitos crescessem, as curvas se fizessem no seu corpo, seria uma delas.
Talvez tivesse ficado assim por conta do elogio, aquele sempre e irritantemente repetido: “Parece uma boneca essa menina”. Nas fotos, forçava os sorrisos, dentes brancos brilhando, olhar no seu futuro. Quem a via posando dizia pra ser mais natural. Mas o resultado, revelado pelo papel, era sempre magnífico. Era como se não houvesse mais ninguém na foto, só ela, o Sol que transforma todo o resto em sombras.
Na puberdade, como previa, virou uma versão melhorada de todas as suas bonecas. Um corpo mais torneado que o da Barbie, um sorriso mais bonito que o da Susy e o cabelo mais liso que dos poneizinhos que vivia a pentear. Para namorado, escolheu o príncipe da escola. Roger, rico, lindo, bem-humorado e leal, ainda por cima um dos mais inteligentes.
Aos 20 e poucos, os dois se formaram e, naturalmente, veio o casamento. Uma festa que custou quase o preço do apartamento que compraram para morar. Eles formavam o tipo de casal que parece mais feliz do que é. Ricos, filhos lindos, ambos bem-sucedidos (ele como publicitário e ela como decoradora). A inveja, enfrentavam com desdém de quem nasce para estar lá em cima. Tanta perfeição, por vezes, beirava o marasmo.
Roger não tinha tempo para se entediar, já que sua vida fora do trabalho era apenas uma moldura. Érica trabalhava em casa por conta própria, às vezes, em dias muito lentos, tentava espantar o tédio. Outras vezes, o acolhia como um conhecido indesejável, porém, necessário. Não queria para ela aquela felicidade montanha-russa. Melhor que fosse assim, uma mansão com cercas eletrificadas no purgatório.
Sentada à beira da piscina, lia uma revista feminina que havia publicado fotos de uma casa decorada por ela. Já se habituara a ver seus trabalhos nas revistas: ela estava na moda. Em uma das páginas, uma matéria lhe chamou a atenção. Dizia: “Quem não sorri nas fotos, tem maior tendência a se separar”. O texto tinha uma entrevista com uma pesquisadora sueca que analisou o arquivo fotográfico de 1.750 casais durante dez anos. “Isso pode ser explicado por uma tendência à interiorização dessas pessoas, mais sujeitas a serem a afetadas pelas crises existenciais que culminam nos fins dos relacionamentos”, dizia a estudiosa Susan Shultz.
Érica fechou a revista e passou o dia todo inquieta, como se tivesse sido cutucada por alguém que se escondeu. De noite, jantou com o marido e os dois filhos. Depois, o casal fez o usual sexo confortável e burocrático que tanto a excitava.
No outro dia: os filhos na escola, o marido no trabalho, a empregada no mercado. Sentou-se na sala e, plam, deu de cara com a foto dela e de Roger no dia do casamento. Ela: com seu mesmo sorriso cristalizado. Ele: sério. Deu uma risada nervosa. Em seguida, abriu as gavetas de fotos e vasculhou tudo. Nada, nenhum sorriso. Roger era uma estátua de gelo nas fotos, apesar de ser tão sorridente no dia a dia.
Pegou o carro e correu para a casa da sogra. Na infância, havia de resgatar um sorriso que fosse. A mãe de Roger estranhou o pedido das fotos, sob o pretexto ridículo de que ela pretendia digitalizá-las, mas emprestou todos os álbuns fotográficos em que o filho aparecia.
Não era nem hora do almoço e Érica já se encontrava chorando loucamente, cercada por milhares de fotos, no sofá da sua sala. Passou meses em depressão, mas se recusava a contar o motivo de tanta choradeira. A pedido do marido, passou a fazer análise. Com isso, vieram os anti-depressivos, que só serviram pra lhe diminuir ainda mais o apetite sexual.
Só contou seu drama à melhor amiga, Jaqueline, fotógrafa.
_ Acho que essa teoria deve ser mais uma dessas bobagens, coisa de revista de mulher. Eu trabalho em uma, sei como é _ disse Jaqueline. _ Tá, mas posso te ajudar.
_ Como?
_ Não vou adiantar, não, quero ver se vai dar certo antes. Pode deixar comigo, só preciso das fotos. Daqui uma semana, trago tudo pra você.
Jaqueline cumpriu a promessa. Uma semana depois, trouxe tudo de volta.
_ Pode olhar _ disse, entregando uma grande caixa de papelão à Érica.
Ela rasgou a caixa, depois de se atrapalhar para abri-la, e se pôs a ver as imagens, uma a uma. Em todas elas, Roger sorria um sorriso de galã de cinema. Sorriso idêntico ao dele, aquele que nunca havia sido fotografado.
_ Amiga, eu te amo tanto! Como você fez isso?
_ Foi trabalhoso, mas simples. Do mesmo jeito que a mulherada sai nas revistas sem celulites, estrias, peito caído. Não tem segredo. Tudo pra manter seu casamento liiiindo, gata!
Roger chegou cansado naquele dia e nem deu bola para Érica, toda arrumada, sorridente e ronronante. Ela não ligou para o desprezo: acontecesse o que acontecesse, de agora em diante, seriam completamente perfeitos, sem nenhuma rachadura ou cicatriz que pudesse separá-los. Mais que amor, queria segurança. Mais que isso: perfeição com seguro quitado.
Em uma festa badalada, à qual Roger havia se recusado a ir e só mudou para fazê-la parar de chorar, foram fotografados para uma coluna social. Ela, tão preocupada com o sorriso do marido, pela primeira vez na vida saiu feia numa foto _ mordendo os lábio inferiores, os olhos um tanto tortos mirando o sorriso de Roger. Afinal, uma foto no jornal era uma evidência pública de um futuro divórcio.
Fato inédito: no dia seguinte, ela pegou o jornal correndo sequer olhou pra si. No rosto do marido, aquele lindo sorriso. Roger chegou em casa e viu o jornal em cima da mesa, follheou, não falou nada. No jantar, olhava fixamente para ela.
_ O que foi? Você está olhando tanto?
_ Nada, amor, você viu nossa foto no jornal?
_ Vi. Naquele dia tão tenso, você com esse sorriso tão lindo...
_ Sempre sorrio nas fotos. Só você olhar nos álbuns _ ele respondeu, para depois ficar calado a noite toda.
Ele não conseguia tirar da cabeça aquela foto. Passou a olhar, a todo instante, o rosto de Érica, sem nada dizer. Vez por outra, num descuido dela, encontrava a mulher da foto. Depois da curiosidade inicial, começou o desconforto. Passou a evitar olhar para ela. Já esquecida daquela baboseira dos sorrisos de fotografia, Érica não percebeu nada de estranho, achava que era uma nova onda de paixão do marido, a persegui-la com o olhar o tempo todo.
Marcela apareceu na vida de Roger numa campanha publicitária para uma marca de pasta de dente. Era a mulher com o sorriso mais lindo que ele já vira. Começaram a sair, a coisa ficou séria e, meses depois, eles estavam morando juntos.
Roger não soube explicar o motivo do rompimento para Érica, mas, durante a derradeira discussão, teve certeza. Tensa, chorando, com tiques nervosos, Érica era uma estranha. Para ele, permanentemente, uma estranha: a mulher dos olhos tortos que mordia os lábios na foto da coluna social.
segunda-feira, 15 de junho de 2009
sábado, 13 de junho de 2009
A formiga e o menino
O menino vê a formiguinha carregando uma folha para o formigueiro. Pega uma régua e coloca na frente dela. Distraída, ela sobe e nem percebe que o garoto virou a régua para o lado oposto.
Quando se dá conta que o formigueiro que estava tão perto sumiu de vista, o inseto, confiante, acelera o passo rumo ao desconhecido.
Mesmo perdida, é tão arrogante essa formiga, caminhando rápido e sem olhar para trás, pensa o moleque. Para dar uma lição nela, pega um copo d'água, abre a torneira apenas por um segundo e despeja um pouco do líquido no caminho dela. O inseto vê aquele mar à sua frente e quase morre afogado, mas contorna o obstáculo, agora cheio de cautela.
Anda devagar demais, é muito medrosa essa formiga, conclui o menino. Ele joga mais água, dessa vez, atrás dela. A formiga deixa a folhinha que carregava pra trás e acelera o passo, penando para não ser engolida por aquele tsunami.
Abatida, após escapar do perigo, ela para e descansa um pouco. Já não tem mais sua folhinha e a caminhada para o formigueiro se fez desnecessária. Inútil que é, melhor seria ficar por ali mesmo.
Uma porção de açúcar, despejada à frente dela, consegue reverter o estado de desânimo. Ela se esbalda de tanto comer e continua seu caminho. Após algum tempo, vê mais um oásis de açúcar. Mesmo carregando sobras do dulcíssimo banquete recente, se põe a comer de novo tão afoita que só percebe que está devorando sal quando começa a arder todinha.
Quase desiste de sua jornada de novo e o faria certamente se o menino não colocasse mais um montão de formiguinhas passando por ali, pertinho dela. Percebendo sua semelhante tão abatida, uma delas passa a carregá-la. A formiguinha se recupera e permanece no lombo da outra, sossegada, junto com um farelo de casca de pão. Fica tão acomodada que adormece e acaba num formigueiro desconhecido.
Só acorda prestes a virar o prato principal de um almoço promovido pela sua salvadora, que é interrompido porque um terremoto, causado pela pisada firme do pé descalço do moleque, destrói o insólito formigueiro canibal.
A formiga sai desorientada dos escombros e continua sua jornada, sem saber direito para onde está indo. O menino vai para casa e se esquece da formiga. Cresce. Um dia, desses difíceis e demorados, com um copo de cerveja quase quente na mão, sozinho em uma mesa de bar, descobre que, mesmo ainda sendo jovem e com tanto para viver, há muito deixou de ser aquele garoto. O menino existiu algum dia? Tinha apenas uma certeza: agora, ele é a formiga.
Quando se dá conta que o formigueiro que estava tão perto sumiu de vista, o inseto, confiante, acelera o passo rumo ao desconhecido.
Mesmo perdida, é tão arrogante essa formiga, caminhando rápido e sem olhar para trás, pensa o moleque. Para dar uma lição nela, pega um copo d'água, abre a torneira apenas por um segundo e despeja um pouco do líquido no caminho dela. O inseto vê aquele mar à sua frente e quase morre afogado, mas contorna o obstáculo, agora cheio de cautela.
Anda devagar demais, é muito medrosa essa formiga, conclui o menino. Ele joga mais água, dessa vez, atrás dela. A formiga deixa a folhinha que carregava pra trás e acelera o passo, penando para não ser engolida por aquele tsunami.
Abatida, após escapar do perigo, ela para e descansa um pouco. Já não tem mais sua folhinha e a caminhada para o formigueiro se fez desnecessária. Inútil que é, melhor seria ficar por ali mesmo.
Uma porção de açúcar, despejada à frente dela, consegue reverter o estado de desânimo. Ela se esbalda de tanto comer e continua seu caminho. Após algum tempo, vê mais um oásis de açúcar. Mesmo carregando sobras do dulcíssimo banquete recente, se põe a comer de novo tão afoita que só percebe que está devorando sal quando começa a arder todinha.
Quase desiste de sua jornada de novo e o faria certamente se o menino não colocasse mais um montão de formiguinhas passando por ali, pertinho dela. Percebendo sua semelhante tão abatida, uma delas passa a carregá-la. A formiguinha se recupera e permanece no lombo da outra, sossegada, junto com um farelo de casca de pão. Fica tão acomodada que adormece e acaba num formigueiro desconhecido.
Só acorda prestes a virar o prato principal de um almoço promovido pela sua salvadora, que é interrompido porque um terremoto, causado pela pisada firme do pé descalço do moleque, destrói o insólito formigueiro canibal.
A formiga sai desorientada dos escombros e continua sua jornada, sem saber direito para onde está indo. O menino vai para casa e se esquece da formiga. Cresce. Um dia, desses difíceis e demorados, com um copo de cerveja quase quente na mão, sozinho em uma mesa de bar, descobre que, mesmo ainda sendo jovem e com tanto para viver, há muito deixou de ser aquele garoto. O menino existiu algum dia? Tinha apenas uma certeza: agora, ele é a formiga.
quinta-feira, 11 de junho de 2009
Entre microfones e bocejos...
Um avião caiu em cima da minha aposentadoria. Novamente, aqui estou no circo, cercado por microfones da CNN, AFP, FDP, PCC... Mudam as siglas, mas a rotina continua a mesma.
Dezenas de jornalistas amontoados em um canto, esperando que os porta-vozes da tragédia aérea soltem migalhas de notícia entre o "bom dia" e o "obrigado". Algumas menininhas da TV cuidando mais da maquiagem que da matéria e outras, decorando suas falas em voz baixa. Os cinegrafistas brigando entre si e xingando o primeiro que ousar passar pela frente da sua santa imagem. Os fotógrafos, ostentando suas máquinas fálicas, jogando xaveco pra cima das estagiárias. Os motoristas dando palpites sobre o imponderável. E eu, lá vou eu novamente.
Dezenas de jornalistas amontoados em um canto, esperando que os porta-vozes da tragédia aérea soltem migalhas de notícia entre o "bom dia" e o "obrigado". Algumas menininhas da TV cuidando mais da maquiagem que da matéria e outras, decorando suas falas em voz baixa. Os cinegrafistas brigando entre si e xingando o primeiro que ousar passar pela frente da sua santa imagem. Os fotógrafos, ostentando suas máquinas fálicas, jogando xaveco pra cima das estagiárias. Os motoristas dando palpites sobre o imponderável. E eu, lá vou eu novamente.
terça-feira, 2 de junho de 2009
O louco

O louco é o inocente que passa distraidamente pelos mais diversos perigos e sempre sai ileso, protegido que é das divindades (principalmente de Dionísio, o deus do vinho, da arte, da luxúria). Idealista, canta seus amores pelas ruas sem dar a mínima para o que pensam os outros. É evocado pelos fiéis amantes apaixonados em fuga e, ao mesmo tempo, pelos libertinos do sexo livre. O bobo de Shakeaspeare é o único que só diz a verdade, em uma corte em que um olhar atravessado pode levar à morte. Força da natureza que é, o louco ou o bobo, como quer que o chamem, não tem medo de nada por não saber o que é o perigo. Está à beira do abismo, prestes a dar o grande salto para outra dimensão.
domingo, 31 de maio de 2009
Nossos felizes eus virtuais, com seus sorrisos fresh
É como se, fazendo careta, olhássemos no espelho e estivéssemos sorrindo. Nossa vida virtual (Orkut, Facebook, Twitter, blog) é, muitas vezes, o retrato do que gostaríamos de ser, mas não somos, pelo menos não na maioria do tempo. Isso explica a quantidade de sorrisos e, mais, sorrisos de casais felizes, no Orkut. Não que eu seja diferente. Minha foto do Orkut é uma figura sorridente, em frente uma praia paradisíaca. Talvez eu tenha sido aquela pessoa alguma vez, mas com certeza não sou ela o tempo todo. Meus dias são muito diferentes dos daquele cara. Ele, com certeza, a essa hora está naquela mesma praia, com aquele mesmo sorriso, preparando-se para tomar cerveja e petiscar. Talvez, ao contrário de mim, ele faça exercícios regulamente e até mesmo saiba surfar. Eu, por minha vez, acabei de acordar e estou no meu quarto, em um domingo, escrevendo esse texto. Não estou sorrindo, pois a alegria desse meu outro eu em nada influencia a minha vida. A tristeza dele, pelo contrário, provavelmente me soaria cômica e algo de dolorosa: riria se na foto ele estivesse escorregando em uma casca de banana e, possivelmente, teria resquícios da dor nas costas dele. Se pudesse ler meus pensamentos como leio os dele, meu avatar estaria certamente pensando por que perco meu tempo nesse tipo de raciocínio com uma praia tão linda tão perto desse quarto em que estou. OK, talvez ele é quem saiba viver.
sábado, 30 de maio de 2009
sexta-feira, 29 de maio de 2009
O lendário tio Quim
Quem via ele assim, sorridente, baixinho, a barriga que mal se continha dentro da camisa quase sempre abotoada errado, não imaginava que fora um lendário ponta-direita da várzea do Tatuapé. Diziam, até, que na época de moleque, enquanto os outros trocavam a bola facilmente pelo rabo de saia, ele era o mais fiel de todos ao objeto de adoração, não largava ela por nada. (Mais tarde ele confessaria quem quisesse ouvir que não era mesmo “muito metelãozinho” nessa época, embora tenha tido quatro filhos, um deles depois dos 40 anos).
Tio Quim me ensinou muitas coisas, a primeira delas foi jogar futebol. Não que eu tenha aprendido tudo que ele tivesse a ensinar, mas aprendi mais do que meu talento permitia. Aos 9, 10 anos, eu era o grosso do time, mal sabia se chutava com o pé direito ou esquerdo. Íamos eu, ele e um dálmata que não me lembro o nome, mas que me parecia um sujeito muito simpático, treinar no parque Sampaio Correia, na Vila Carrão. Sem tirar o cigarro da boca, dizia: “Fio, hoje em dia é diferente, não basta ter habilidade, o principal é ter condição física”.
Tempos depois, se não era um craque, eu já havia assumido o espírito do antigo firuleiro da várzea. De tanto treinar com o pé errado, acabei ponta-esquerda, destro com as mãos e canhoto com os pés. Não passava mais vergonha com a bola, embora meu fôlego deixasse a desejar.
Não foi à toa que minha paixão pelo futebol acabou perdendo cada vez mais espaço para minha vocação para a boemia. Nessa mesma época, tio Quim não podia beber em um evento familiar e me levou para um boteco desses bem fuleiros, onde botou um copo de cerveja na minha frente e uma porção de petiscos nada apetitosos, ovos coloridos, salsichas suspeitas, picles duvidosos; engoli a comida o mais rápido que pude e bebi a cerveja de um gole só. “Fio, bebedor tem que tomar devagar e petiscar, senão passa mal e acaba passando vergonha”, advertiu o tio, tomando seu copo de cerveja quente, assim como fazem esses sujeitos da Irlanda e da Alemanha.
Durante essa mesma conversa, outro ensinamento: além de petiscar enquanto bebia, não se devia ser puxa-saco de chefe, que era a pior raça que existia. Admito que, muitas vezes, não sigo o primeiro conselho e acabo trançando as pernas, mas esse último nunca deixei de seguir. Torneiro mecânico, o tio deve ter sido o pesadelo dos encarregados carreiristas, mas, para nós, sua profissão era deveras útil, já que nos garantia trofeuzinhos de metal feitos por ele para os torneios de futebol de botão.
Descobri depois de velho que ele estudava a árvore genealógica da minha família, os Rodrigues Rocha. Por meio das pesquisas dele, sempre muito contraditas pelos parentes que sonham ser descendentes de príncipes e nobres, descobri que nosso antepassado foi um feitor de uma fazenda de escravos. Talvez aí esteja o motivo para não sermos puxa-sacos: não repetir o erro desse infeliz ancestral.
Pouco vi o tio Quim depois de adulto, mergulhado no trabalho e em tantas outras coisas da vida, mas, a cada vez que via, preferia enxergar aquele do copo de cerveja quente na mão e das histórias sobre o futebol bonito dos campos de terra, embora ele já não pudesse mais nem beber nem fumar. Por não poder mais viver muito de uma só vez, como estava acostumado, parecia minguar, quietinho no seu canto.
Esses dias foi o enterro do tio. Por estar a mais de dois mil quilômetros de São Paulo, não pude ir. Mas tenho certeza que, assim como aconteceu comigo, por um momento que seja, filhos e sobrinhos lembraram com alegria como é importante um tio Quim na vida de um menino.
Tio Quim me ensinou muitas coisas, a primeira delas foi jogar futebol. Não que eu tenha aprendido tudo que ele tivesse a ensinar, mas aprendi mais do que meu talento permitia. Aos 9, 10 anos, eu era o grosso do time, mal sabia se chutava com o pé direito ou esquerdo. Íamos eu, ele e um dálmata que não me lembro o nome, mas que me parecia um sujeito muito simpático, treinar no parque Sampaio Correia, na Vila Carrão. Sem tirar o cigarro da boca, dizia: “Fio, hoje em dia é diferente, não basta ter habilidade, o principal é ter condição física”.
Tempos depois, se não era um craque, eu já havia assumido o espírito do antigo firuleiro da várzea. De tanto treinar com o pé errado, acabei ponta-esquerda, destro com as mãos e canhoto com os pés. Não passava mais vergonha com a bola, embora meu fôlego deixasse a desejar.
Não foi à toa que minha paixão pelo futebol acabou perdendo cada vez mais espaço para minha vocação para a boemia. Nessa mesma época, tio Quim não podia beber em um evento familiar e me levou para um boteco desses bem fuleiros, onde botou um copo de cerveja na minha frente e uma porção de petiscos nada apetitosos, ovos coloridos, salsichas suspeitas, picles duvidosos; engoli a comida o mais rápido que pude e bebi a cerveja de um gole só. “Fio, bebedor tem que tomar devagar e petiscar, senão passa mal e acaba passando vergonha”, advertiu o tio, tomando seu copo de cerveja quente, assim como fazem esses sujeitos da Irlanda e da Alemanha.
Durante essa mesma conversa, outro ensinamento: além de petiscar enquanto bebia, não se devia ser puxa-saco de chefe, que era a pior raça que existia. Admito que, muitas vezes, não sigo o primeiro conselho e acabo trançando as pernas, mas esse último nunca deixei de seguir. Torneiro mecânico, o tio deve ter sido o pesadelo dos encarregados carreiristas, mas, para nós, sua profissão era deveras útil, já que nos garantia trofeuzinhos de metal feitos por ele para os torneios de futebol de botão.
Descobri depois de velho que ele estudava a árvore genealógica da minha família, os Rodrigues Rocha. Por meio das pesquisas dele, sempre muito contraditas pelos parentes que sonham ser descendentes de príncipes e nobres, descobri que nosso antepassado foi um feitor de uma fazenda de escravos. Talvez aí esteja o motivo para não sermos puxa-sacos: não repetir o erro desse infeliz ancestral.
Pouco vi o tio Quim depois de adulto, mergulhado no trabalho e em tantas outras coisas da vida, mas, a cada vez que via, preferia enxergar aquele do copo de cerveja quente na mão e das histórias sobre o futebol bonito dos campos de terra, embora ele já não pudesse mais nem beber nem fumar. Por não poder mais viver muito de uma só vez, como estava acostumado, parecia minguar, quietinho no seu canto.
Esses dias foi o enterro do tio. Por estar a mais de dois mil quilômetros de São Paulo, não pude ir. Mas tenho certeza que, assim como aconteceu comigo, por um momento que seja, filhos e sobrinhos lembraram com alegria como é importante um tio Quim na vida de um menino.
quinta-feira, 28 de maio de 2009
Retrato falado

Depois de várias horas de trabalho exaustivo, o mais parecido que consegui ficar comigo mesmo foi isso. Quem quiser tentar fazer o seu retrato ou o de algum criminoso com quem trabalha ou frequenta o boteco pode tentar a sorte no http://flashface.ctapt.de/. Tirei a dica do blog http://williampaiva.wordpress.com/.
terça-feira, 26 de maio de 2009
Rios, pontes e overdrives ou observações clichê de um migrante desocupado

Ponte Santa Isabel, Capibaribe

Chove no Recife, e eu não tenho nada o que fazer. O rio Capibaribe fica cheio até a borda, muito mais bonito, compensando as enchentes que, provavelmente, se espalham pela cidade, cercando amigos e inimigos.
Todo mundo diz o mar, mas o que me encanta aqui é mesmo o rio _ com as pontes, claro. De onde eu vim, o maior rio, o Tietê, foi transformado num riacho forrado de cimento. (Uma estrangeira chegou a me perguntar como era o nome do córrego que ficava na marginal. Ahn?).
As pontes do Tietê não são simplesmente pontes, são viadutos, com alças de acesso, saídas mil, um monte de concreto suspenso para caber mais carros, uma obra de arte voltada a construir o maior engarrafamento do mundo.
Aqui, são quase todas as mesmas construídas sei lá quantos séculos atrás, bonitas, vistosas; suas luzes refletem na água durante a noite. Têm um objetivo claro: chegar de um lado a outro, sem o perigo de pegar o acesso errado e voltar para onde se vinha.
Tem quem pegue um pedaço de fio de náilon e arremesse do alto da ponte, sente-se no parapeito e espere algum peixe distraído. A molecada, mesmo sabendo que é sujo, salta lá do alto e sai nadando, contente que só.
Quando alguém pula no Tietê, aparece no jornal. Um dia um bombeiro salvou um moleque que pulou lá dentro. Todo mundo imaginou que eles fossem derreter naquela vitamina batida com venenos industriais e bosta de 10 milhões de pessoas, mas eles saíram vivos. De qualquer maneira, foi um acontecimento.
Agora o rio, mesmo que ficasse limpo, nunca ressuscitaria, perseguido que é por aquele cortejo maluco de um milhão de carros-dia. (Tenho um amigo aspirante a ditador de SP que, em seu primeiro ato, demoliria a marginal e devolveria ao rio o seu traçado original. Talvez assim haja esperança...)
Por enquanto, não há marginal que meta medo no Capibaribe. Que ele continue sempre, como reza o clichê pernambucano, se juntando com o rio Beberibe para formar o mar, quer dizer, o Oceano Atlântico.
domingo, 24 de maio de 2009
Ela, a única

sexta-feira, 22 de maio de 2009
A Bíblia como ela é... (vol.1)
Assassinato, infidelidade, incesto e outros temas rodrigueanos, em forma de texto sagrado
GÊNESIS 19
"Ló subiu de Segor e foi morar nas monhas com as duas filhas, pois tinha medo de ficar em Segor. Instalou-se em uma caverna com as duas filhas. E a mais velha disse: 'Nosso pai já está velho e não há aqui homens com quem nos possamos nos casar, como faz todo mundo. Vamos embedar o pai com o vinho e dormir com ele, para ter filhos dele'. Embebedaram o pai naquela noite e a mais velha foi dormir com ele sem que ele nada percebesse, nem quando ela deitou nem quando se levantou. No dia seguinte, a mais velha disse à mais nova: 'Ontem dormi com o pai. Vamos embebedá-lo também esta noite e tu vais dormir com ele para gerar descendência de nosso pai.'. Também naquela noite embeberam o pai e a mais moça dormiu com ele. Ele porém nada percebeu, nem quando ela se deitou nem quando se levantou. Assim as duas filhas de Ló conceberam de seu pai."
GÊNESIS 19
"Ló subiu de Segor e foi morar nas monhas com as duas filhas, pois tinha medo de ficar em Segor. Instalou-se em uma caverna com as duas filhas. E a mais velha disse: 'Nosso pai já está velho e não há aqui homens com quem nos possamos nos casar, como faz todo mundo. Vamos embedar o pai com o vinho e dormir com ele, para ter filhos dele'. Embebedaram o pai naquela noite e a mais velha foi dormir com ele sem que ele nada percebesse, nem quando ela deitou nem quando se levantou. No dia seguinte, a mais velha disse à mais nova: 'Ontem dormi com o pai. Vamos embebedá-lo também esta noite e tu vais dormir com ele para gerar descendência de nosso pai.'. Também naquela noite embeberam o pai e a mais moça dormiu com ele. Ele porém nada percebeu, nem quando ela se deitou nem quando se levantou. Assim as duas filhas de Ló conceberam de seu pai."
terça-feira, 19 de maio de 2009
Os casais e os grandes temas da humanidade - volume 2
_ Amor, quero um pudim, você quer um também?
_ E eu lá sou homem de pudim, homem que é homem não pede pudim no restaurante...
_ Tô descobrindo que você é muito machista...
_ O homem tem que ser machista nas pequenas coisas e humanista nas grandes. Quero um café.
_ Garçom, traz um pudim e um café, por favor.
Garçom chega com pudim e café. Sem perguntar, coloca o café para ele e o pudim para ela.
_ Tá vendo como homem não pede pudim, se eu pedisse ia ficar feio falar pro garçom: "Não, o pudim é meu e o café é dela".
_ Que besteira! Pudim é muito bom, não sei o que seria da minha vida sem ele.
_ Pudim não tem importância nenhuma, quer ver?
_ Lógico que tem!
_ Se você tivesse de escolher uma coisa pra existir, a outra simplesmente desapareceria, ia escolher pudim ou café?
_ ... café.
_ Azeite ou pudim?
_ ...azeite.
_ Quer que eu continue?
_ Por que você tá implicando tanto assim com o pobre do pudim?!
_ Sei lá... princípios?
_ E eu lá sou homem de pudim, homem que é homem não pede pudim no restaurante...
_ Tô descobrindo que você é muito machista...
_ O homem tem que ser machista nas pequenas coisas e humanista nas grandes. Quero um café.
_ Garçom, traz um pudim e um café, por favor.
Garçom chega com pudim e café. Sem perguntar, coloca o café para ele e o pudim para ela.
_ Tá vendo como homem não pede pudim, se eu pedisse ia ficar feio falar pro garçom: "Não, o pudim é meu e o café é dela".
_ Que besteira! Pudim é muito bom, não sei o que seria da minha vida sem ele.
_ Pudim não tem importância nenhuma, quer ver?
_ Lógico que tem!
_ Se você tivesse de escolher uma coisa pra existir, a outra simplesmente desapareceria, ia escolher pudim ou café?
_ ... café.
_ Azeite ou pudim?
_ ...azeite.
_ Quer que eu continue?
_ Por que você tá implicando tanto assim com o pobre do pudim?!
_ Sei lá... princípios?
quinta-feira, 14 de maio de 2009
Em breve, nas livrarias...
Trecho de um conto que estou escrevendo, que só não posto na íntegra aqui porque tem 10 páginas e, espero eu, estará ainda este ano no meu primeiro livro:
Durante a minha busca, várias vezes desisti de viver. Pulei de cima de um prédio de 50 andares e só o que consegui foi causar um tremor na cidade. Mordi fios de eletricidade e dei tiros na cabeça, me enforquei e tentei cortar meus pulsos, tomei veneno e passei fome por meses. Minhas tentativas de suicídio pareciam cenas de desenho animado, o gato que engole uma bomba e só fica chamuscado, PLOW. Não tenho calcanhar de Aquiles nem a criptonita do Super-Homem, sou todo fraqueza na minha armadura indestrutível.
Durante a minha busca, várias vezes desisti de viver. Pulei de cima de um prédio de 50 andares e só o que consegui foi causar um tremor na cidade. Mordi fios de eletricidade e dei tiros na cabeça, me enforquei e tentei cortar meus pulsos, tomei veneno e passei fome por meses. Minhas tentativas de suicídio pareciam cenas de desenho animado, o gato que engole uma bomba e só fica chamuscado, PLOW. Não tenho calcanhar de Aquiles nem a criptonita do Super-Homem, sou todo fraqueza na minha armadura indestrutível.
segunda-feira, 11 de maio de 2009
Monopólio da alma
Quis parar o avião no céu para ser infinito entre a despedida e o reencontro. Para que as lágrimas de um e a expectativa de outro fossem para sempre. Primeiro, uma dor tão grande que fizesse desmaiar. Depois, uma cicatriz gravada na pele das gerações das gerações. Para que o amor não amarelasse e desbotasse na água turva da realidade. Para que o sofrimento ficasse em carne viva mesmo depois de morto. Os outros cento e tantos passageiros, certamente, não compreenderiam. Gritariam enquanto voavam pelos ares. Chamariam entes queridos e esbravejariam com deus que, mesmo tão perto deles, nada faria. Sabia que não poderia paralisar as turbinas com a força da mente. Se quisesse se aconchegar na inação, teria de agir rápido. Quem sabe seqüestrar o avião? Leva-lo-ia a um furacão bem charmoso, um triângulo das bermudas voador, e sumiria. Fingiria-se de terrorista para se sagrar salvador. A mãe desmaiaria e o pai tentaria permanecer calmo, enquanto buscava as informações que nunca chegariam. A mulher esperaria por muitas horas até saber do misterioso sumiço. Vestiria, então, um luto esperançoso que nunca conseguiria enterrar no armário. Talvez, com uma peça de roupa bastante usada, fizessem um enterro, com o objetivo de sepultá-lo no esquecimento. Isso não adiantaria. Os filhos, ainda pequenos, guardariam em alguma gaveta secreta da inconsciência o endereço do pai, mas não contariam a ninguém. Mais tarde, se tornariam pais e avôs e, então, procurariam em vão aquele oásis perdido no meio do céu. Precisava agir rápido antes que o comandante deslizasse o manche e as aeromoças passassem para conferir os cintos afivelados. Piscou os olhos e o momento havia passado. Também ele esqueceria, já não fazia mais sentido, tinha pressa de levantar para não ter de enfrentar o congestionamento de malas e homens, queria pisar no chão de novo. Conformou-se, afinal, que só o corpo é imortal, em filhos, vermes, parasitas, amebas, plantas, carbono, carbono, mais carbono, se renova, infinitamente, em tudo, menos em sonho, monopólio da alma, eterna em sua finitude arrogante de Ícaro batendo suas asas líquidas rumo ao precipício incandescente da lembrança mais que fugaz.
terça-feira, 5 de maio de 2009
Humano, demasiado...
Se já não posso ser mais guilhotina, marreta, violão, bicicleta, escavadeira, máquina de escrever, relógio, computador, devo voltar a ser homem? Meus genes ancestrais lembram como se faz, mas, acostumados a serem engrenagem, talvez tenham preguiça de voltar à sua natureza de microinteligência evolutiva. Enquanto eles não se decidem, passo meu tempo abrindo caixas misteriosamente luminosas e dando atenção a todas essas vozes que, súbitas, desatam a falar futilidades nos meus ouvidos. Até quando, até quando, pergunto ao fantasma do deus morto que, fingindo dores causadas pela faca há muito cravada e fossilizada no peito, me persegue. Mesmo sendo só espectro do passado, mera imaginação de si mesmo, ele não desceu do salto e, altivo, continua a ignorar meus apelos, como fazia em seus tempos de glória.
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