quinta-feira, 16 de julho de 2009

Sexo-jornalismo: a primeira a gente não esquece


Foi a minha primeira vez. No jornalismo, que fique claro. Sem nada pra fazer, achei essa matéria, publicada em 2002 na Revista Crocodilo _ com certeza a mais trabalhosa que já fiz. Por mais doido que pareça, é tudo, tudo verdade.

*Zona vertical
São Paulo, 10 milhões de habitantes, a segunda maior população da América Latina, só perdendo para a Cidade do México. Detalhe: mais da metade desse povo todo é mulher.
Teoricamente, os homens casados deveriam estar felizes, cada um com a sua. E os solteiros, esses estariam seguros de que não faltaria mulher no mercado. Mas nem tudo é tão simples assim. Desde que o mundo é mundo, o sexo pago é um negócio rentável.
E como em toda metrópole, São Paulo oferece uma gama enorme opções quando se fala de prostituição. Na zona nobre da cidade, o sujeito que quiser “tirar a barriga da miséria” com beldades que parecem ter saído direto da passarela para a cama (redonda, é opcional) pode ter de desembolsar entre 300 e 1000 reais. Mas a putaria é democrática.
No centro de São Paulo, mais precisamente perto da famosa Estação da Luz, fica o “meia-nove”. Bem localizado na região conhecida como “boca do lixo”, o prédio discreto abriga uma das maiores “zonas verticais” da city – uma espécie de Galeria Pagé do sexo.
São 9 andares povoados de centenas de garotas para você escolher. Ou ser escolhido, porque elas agarram e não largam mais (este repórter que o diga). Munido de um vale alimentação de R$8 e muito amor para dar, eu conheceria o carinho e o ódio das moradoras do número 69 da rua Andradas, quase de esquina com a av. Cásper Líbero.

“É hoje!”
Sexta-feira, 18 horas. Estou na pequena fila que se forma em frente ao prédio. Homens de todas as idades esfregam as mãos, ansiosos. Afinal, este é o desfecho para mais uma semana de trabalho duro.
“É hoje”, exclama um rapaz moreno, que aparentava uns trinta anos. Ele me conta que freqüenta o “meia-nove” há cinco anos. Há três, se mantém fiel a uma das garotas. “Ela é meu escape”, confessa.
Logo na portaria, deixo a mochila no guarda-volumes (R$1). Só se sobe com essencial, no caso, a carteira. “Para evitar alguma tragédia”, explica de trás do balcão um negro alto, cheio de jóias no pescoço, enquanto checa meus documentos para se certificar que sou “de maior”.
Um cara de meia-idade, que acaba de voltar de sua empreitada pelo prédio, reclama das meninas do nono andar. “Isso é selvageria! Olha o que elas fizeram com a minha roupa”, diz, mostrando a camisa rasgada no colarinho e o pescoço arranhado.
No elevador, ninguém aperta o número 9, não sei por quê. Eu, por precaução, também fico no oitavo. A porta se abre. Daqui pra frente, não tem mais volta.
“Vem cá, gostosão, vamos foder bem gostoso”, convida uma dezena de garotas. Todas, seminuas, me agarram pelo braço, enquanto eu tento fugir, um tanto assustado com o assédio repentino.
“Ah! Esse gosta de uma rola bem grande”, grita uma delas, apontando pra mim, que já conseguia descer a escada estreita, mal iluminada e lotada de mulheres.

A concorrência
Não há luzes néon nem música ambiente, só mulheres de todos os naipes. Gordas e magras, coroas e garotas que acabaram de sair da adolescência, todas quase saindo no tapa para ganhar a clientela. Algumas xingam, outras agarram. Mas o principal argumento das moçoilas para conseguir um programa é botar defeito nas mulheres dos outros andares.
“Nem adianta descer, este é o melhor andar”, me disse uma delas, que, pela cara, já beirava os 40 anos. Já no quinto, algumas fizeram questão de mostrar como o chão era limpo e insistiam: “Daqui para baixo, é só puta porca. Por isso que elas não gostam da gente.”

“Dez minutos ou uma gozada”
Continuo descendo. No quarto andar, não cabe mais ninguém. Uma mulher de quase um metro e oitenta, vestida com cinta-liga, me puxa pelo pescoço e diz: “Agora cê vai ver o que é bom”, enquanto me arrasta para um dos cubículos, separados um dos outros somente por biombos que mal chegavam até o teto. Na parede, um pôster da Kelly Key com uma camisinha na boca diz: “Mostre que você sabe o que quer”. Em cima do pequeno criado mudo, pelo menos umas trinta camisinhas daquelas da prefeitura.
Ela diz que pra mim vai fazer só R$10. Engraçado, já tinha ouvido isso dezenas de vezes naquela noite. Tentando escapar da investida, já meio arrependido de estar ali, eu aviso que só tenho um ticket de R$8 no meu bolso. “Não faz mal, não, gatinho. Eu gostei de você”, responde, me jogando com tudo na cama pequena, de solteiro. E pergunta: “Você prefere ‘por baixo’ ou ‘de quatro’?” Mal tive tempo de responder e ela já colocava a camisinha em mim, enquanto explicava:”O sistema aqui é o seguinte: dez minutos ou uma gozada”.
Saí de lá suado e quase derrubei o biombo que separava o cubículo em que eu estava do quarto ao lado. Algumas mulheres ainda tentaram me agarrar na saída, mas quando eu chegava mais perto percebiam que daquele bolso não sairia mais nada. “Ihhh...esse aí já era”, diziam algumas.
Outras, porém, ainda insistiam quando eu explicava que já tinha feito o que tinha de fazer por ali.
“Eu trabalho aqui das 8 da manhã até 9 da noite e quando chego em casa ainda dou umazinha com o meu marido e você não agüenta dar duas na mesma noite”, me esculhambou uma mulata, vestida só de calcinha. Então, respondi que não queria nada com mulher casada. Ela apagou o cigarro, nervosa, e me mandou praquele lugar. Calma, pensei, poderia ser pior, eu poderia ser o marido dela.
Quando finalmente consigo chegar ao térreo já eram 19 horas. Uma multidão de homens continuava a entrar. O “meia-nove” fervia, como sempre.

quinta-feira, 9 de julho de 2009

Estrangeiro

O estrangeiro é aquele que passa pela rua e observa todos os demais levando os livros das histórias de suas vidas debaixo do braço. Sentadas nos cafés e fumando seus cigarros, andando apressadas a caminho do trabalho, simplesmente passeando sem destino ou coçando o nariz, as pessoas abrem seus livros, contam suas histórias para si próprias e para os outros, mesmo sem necessidade, já que os ouvintes conhecem a ladainha de cor. O forasteiro também carrega seu livro. Mas não adianta: chega a passar vexame quando faz menção de abri-lo e ninguém vê o volume encadernado caprichosamente em couro, que encerra tantas aventuras que quase chegam a pular das páginas para o mundo. Aos olhos nativos, é como se ele tivesse acabado de nascer, ali mesmo, já no auge da maturidade, sem um pingo de passado. O próprio estrangeiro passa a não querer carregar mais aquele calhamaço que lhe parece cada vez mais pesado e inútil. Uma noite, com saudade da familiaridade, abre o volume e percebe que o texto ali escrito está em um idioma totalmente desconhecido para ele. Aquela intraduzível história é, no entanto, tudo que ele tem.

domingo, 5 de julho de 2009

O homenzinho que vive na minha cabeça

Às vezes, me dou conta do homenzinho que vive na minha cabeça. Um workaholic, esse homenzinho. Enquanto eu durmo, ele trabalha. Quando estou distraído, ele está atento. Cientificamente falando, uma mistura de subconsciente, sonho, reflexo e mágica formam o corpo desse sujeito que, por ter nascido na minha cabeça, é de certa maneira irmão dos meus neurônios.
A primeira vez que percebi a existência dele foi durante um jogo de sinuca, esporte nobilíssimo no qual sou um zero a esquerda, apesar das minhas pretenções malandrísticas. Vez por outra, entre tacadas ridículas que arremassam bolas da mesa, ele aparece. É como se por um momento eu estivesse fora e ele assumisse o controle. Pá, pá, pá, três bolas seguidas na caçapa. Detalhe: pelo menos duas eram impossíveis.
Como ele trabalha com qualidade, não quantidade, geralmente acabo perdendo mesmo essas partidas em que ele dá as caras, por total incompetência de fazer desaparecer as bolas que restam.
Aos poucos, fui percebendo que ele é muito mais que um mero jogador de sinuca. Já salvou minha vida algumas vezes, desviando-me de balas de revólver e de ônibus em alta velocidade. Até, certa feita, dando-me força sobrehumana para acertar um direto no queixo de um grandalhão que me estraçalharia com um suspiro.
Vaidoso, ele assume, vez por outra, a tarefa de conquistar mulheres (claro que hoje em dia, por conta do meu estado de seríssimo comprometimento, não lhe dou mais essas liberdades!). Mas, voltando ao assunto, ele, com seu papo mole, várias vezes me viu imerso em minha timidez e assumiu o controle da situação com maestria, gerando consequências que não é de bom tom espalhar.
Fico pensando se foi ele que bateu aquela falta no ângulo, um petardo de direita, meu ponto fraco no esporte ludopédico. Mas, não, isso não importa. O que tem, de fato, importância é que o tal homenzinho guarda no bolso do seu terno um pozinho que faz o impossível parecer piada. Fico imaginando o problemão que vai dar a hora que me fizer sair voando por aí.
Ser pretensioso esse homenzinho que resolveu ser escritor e escrever um texto cheio de elogios a si próprio. Pois é, quem escreve aqui, na maioria das vezes, é ele. Eu fico com o arroz feijão das matérias de jornal. Fulano de Tal, como eu o chamo por falta de nome melhor, prefere investir na literatura, o terreno do impossível.
Um dia, ele ameaça, chega pra ficar e não me deixa mais dar um pio na minha vida. Não acredito. O que me dá esse sossego é saber que ele enjoa rápido de tudo, como aconteceu com esse texto, que abandonou perto do fim. Sujeitinho cheio de gostos e desgostos que é, sempre me deixa seguir em frente, por mais desajeitados que lhe pareçam meus passos.

segunda-feira, 29 de junho de 2009

A batalha dos dedos contra os neurônios

Os dedos conspiram contra os neurônios, tinhosos que são. Não suportam uma grande ideia por saberem-se meros realizadores, incapazes de criar o que quer que seja. Cabe ao escritor domar seus dedos para que sirvam à mente feito cavalos puro sangue, ostensivamente adestrados, de trote suave e seguro. Para que a obra-prima não se desmanche no galope entre a cabeça e a tela do computador. Grandes ideias sem dedos obedientes são mantimentos apodrecendo dentro de contêineres num porto longínquo. Dedos bem educados, sem grandes ideias, viram carimbos de escritório de advocacia. Aleijados e excêntricos trocam seus dedos pelas cordas vocais, mas essas são tão conservadoras que suprimem o novo assim que convertem palavras em som. Sem o casamento obrigatório entre tão mortais inimigos, dedos e neurônios, não nasceriam a Bíblia nem Hamlet, Dom Quixote jamais conheceria Sancho Pança, Raskolnikov nunca mataria e remoeria em culpa, Gregor Samsa continuaria pisando nas baratas sem o menor remorso.

quinta-feira, 25 de junho de 2009

Adoráveis mentirosos

Eu tenho um costume muito questionável: roubar as histórias alheias. Sabe aquela história tão boa, tão boa que você queria que tivesse acontecido com você? Pois é, aquela história que talvez sequer tenha acontecido com o sujeito que lhe contou? Então, descaradamente, roubo esse tipo de história.
Não saio simplesmente contando a história do outro. Me coloco no papel dele. Foi comigo que aconteceu aquilo, não com ele. Com o tempo, passo a acreditar na minha própria mentira a ponto de contá-la ao dono do causo.
Minto pouco, se comparado aos mentirosos profissionais. Aqueles simpáticos, que, quando sentem que o papo vai murchando, tratam logo de inventar uma história boa pra passar o tempo _ não os que mentem pra contar vantagem, claro, que esses são do tipo mais comum e insuportável. Ariano Suassuna conta que o Chicó, aquele do Auto da Compadecida, existiu de verdade. Quando alguém começava muito a questionar-lhe as mentiras, retrucava: "Você quer ouvir história ou quer discutir?".
Tenho vários amigos mentirosos da melhor qualidade. Não vou citá-los aqui pra não acabar não acabar com a magia que os cerca. Por excesso de talento, os "acontecimentos" contados por eles chegam a ser irroubáveis. Explico: de tão absurdos, soariam ridículos se não saíssem da boca de profissionais.
Tem um camarada que trabalhou comigo no jornal que é assim: até o sobrenome dele é inventado. Basta fulano reclamar que uma pomba lhe cagou na cabeça pra ele desandar a contar o dia em que uma águia careca americana pousou na cabeça dele e botou um ovo. A descrição conta com tamanha riqueza de detalhes que, apesar de ninguém acreditar em nada daquilo, todos se espantam de ter passado 40 minutos ouvindo tamanha maluquice.
Para isso, porém, é preciso talento. Qualidade que não me veio de berço, mas que, com muito suor, pretendo conquistar. Aos 80 anos, quero ser um grandissíssimo mentiroso. Ando treinando, ainda timidamente, roubando uma história aqui, inventando uma meia verdade ali, exagerando mais um pouco acolá, quase nem se nota. Por isso, se você perceber que recontei uma história sua, tenha paciência com um mentiroso em formação. Um dia, passará despercebido.

quarta-feira, 24 de junho de 2009

Aspas

"Cresce-lhe a intracefálica tortura,
E de su'alma na caverna escura,
Fazendo ultra-epilépticos esforços,
Acorda, com os candieiros apagados,
Numa coreografia de danados,
A família alarmada dos remorsos."
Monólogo de uma sombra - Augusto dos Anjos

segunda-feira, 22 de junho de 2009

Humildade

Esqueça o papo bíblico, cristianismo, caridade. Ser humilde é questão de necessidade: canivete, lanterna, miojo, camisinha... tudo no mesmo estojo. Antes de cair/pular no abismo, vira questão de praticidade, mola propulsora, paraquedas, capacete ou pedra amarrada no pé, você escolhe. Tá certo, na infância, talvez seja um brinquedo sem utilidade. Roupa no aniversário, material escolar no Natal, lavar a mão, por que?, se a gente come com colher. Também, na adolescência, é coisa estranha, uma falta de elegância?, não, quem sabe uma excrecência?, é tanta confusão que não é justo cobrar coerência. É coisa que vem com a idade, apesar de soar, às vezes, de uma certa arrogância, sei lá, falsa magnânimidade, vai saber. A decisão é de quem vê. Podem achar que é pragmática distorção da realidade, o enganoso desprendimento do suicida. Para mim, tornou-se, depois de tantos sacolejos, o air bag da vida, a humildade.

segunda-feira, 15 de junho de 2009

Sorriso de fotografia

Érica passara a infância embelezando as bonecas, não por espírito maternal, mas como uma projeção de si mesma. Sabia que, assim que as pernas esticassem, os peitos crescessem, as curvas se fizessem no seu corpo, seria uma delas.
Talvez tivesse ficado assim por conta do elogio, aquele sempre e irritantemente repetido: “Parece uma boneca essa menina”. Nas fotos, forçava os sorrisos, dentes brancos brilhando, olhar no seu futuro. Quem a via posando dizia pra ser mais natural. Mas o resultado, revelado pelo papel, era sempre magnífico. Era como se não houvesse mais ninguém na foto, só ela, o Sol que transforma todo o resto em sombras.
Na puberdade, como previa, virou uma versão melhorada de todas as suas bonecas. Um corpo mais torneado que o da Barbie, um sorriso mais bonito que o da Susy e o cabelo mais liso que dos poneizinhos que vivia a pentear. Para namorado, escolheu o príncipe da escola. Roger, rico, lindo, bem-humorado e leal, ainda por cima um dos mais inteligentes.
Aos 20 e poucos, os dois se formaram e, naturalmente, veio o casamento. Uma festa que custou quase o preço do apartamento que compraram para morar. Eles formavam o tipo de casal que parece mais feliz do que é. Ricos, filhos lindos, ambos bem-sucedidos (ele como publicitário e ela como decoradora). A inveja, enfrentavam com desdém de quem nasce para estar lá em cima. Tanta perfeição, por vezes, beirava o marasmo.
Roger não tinha tempo para se entediar, já que sua vida fora do trabalho era apenas uma moldura. Érica trabalhava em casa por conta própria, às vezes, em dias muito lentos, tentava espantar o tédio. Outras vezes, o acolhia como um conhecido indesejável, porém, necessário. Não queria para ela aquela felicidade montanha-russa. Melhor que fosse assim, uma mansão com cercas eletrificadas no purgatório.
Sentada à beira da piscina, lia uma revista feminina que havia publicado fotos de uma casa decorada por ela. Já se habituara a ver seus trabalhos nas revistas: ela estava na moda. Em uma das páginas, uma matéria lhe chamou a atenção. Dizia: “Quem não sorri nas fotos, tem maior tendência a se separar”. O texto tinha uma entrevista com uma pesquisadora sueca que analisou o arquivo fotográfico de 1.750 casais durante dez anos. “Isso pode ser explicado por uma tendência à interiorização dessas pessoas, mais sujeitas a serem a afetadas pelas crises existenciais que culminam nos fins dos relacionamentos”, dizia a estudiosa Susan Shultz.
Érica fechou a revista e passou o dia todo inquieta, como se tivesse sido cutucada por alguém que se escondeu. De noite, jantou com o marido e os dois filhos. Depois, o casal fez o usual sexo confortável e burocrático que tanto a excitava.
No outro dia: os filhos na escola, o marido no trabalho, a empregada no mercado. Sentou-se na sala e, plam, deu de cara com a foto dela e de Roger no dia do casamento. Ela: com seu mesmo sorriso cristalizado. Ele: sério. Deu uma risada nervosa. Em seguida, abriu as gavetas de fotos e vasculhou tudo. Nada, nenhum sorriso. Roger era uma estátua de gelo nas fotos, apesar de ser tão sorridente no dia a dia.
Pegou o carro e correu para a casa da sogra. Na infância, havia de resgatar um sorriso que fosse. A mãe de Roger estranhou o pedido das fotos, sob o pretexto ridículo de que ela pretendia digitalizá-las, mas emprestou todos os álbuns fotográficos em que o filho aparecia.
Não era nem hora do almoço e Érica já se encontrava chorando loucamente, cercada por milhares de fotos, no sofá da sua sala. Passou meses em depressão, mas se recusava a contar o motivo de tanta choradeira. A pedido do marido, passou a fazer análise. Com isso, vieram os anti-depressivos, que só serviram pra lhe diminuir ainda mais o apetite sexual.
Só contou seu drama à melhor amiga, Jaqueline, fotógrafa.
_ Acho que essa teoria deve ser mais uma dessas bobagens, coisa de revista de mulher. Eu trabalho em uma, sei como é _ disse Jaqueline. _ Tá, mas posso te ajudar.
_ Como?
_ Não vou adiantar, não, quero ver se vai dar certo antes. Pode deixar comigo, só preciso das fotos. Daqui uma semana, trago tudo pra você.
Jaqueline cumpriu a promessa. Uma semana depois, trouxe tudo de volta.
_ Pode olhar _ disse, entregando uma grande caixa de papelão à Érica.
Ela rasgou a caixa, depois de se atrapalhar para abri-la, e se pôs a ver as imagens, uma a uma. Em todas elas, Roger sorria um sorriso de galã de cinema. Sorriso idêntico ao dele, aquele que nunca havia sido fotografado.
_ Amiga, eu te amo tanto! Como você fez isso?
_ Foi trabalhoso, mas simples. Do mesmo jeito que a mulherada sai nas revistas sem celulites, estrias, peito caído. Não tem segredo. Tudo pra manter seu casamento liiiindo, gata!
Roger chegou cansado naquele dia e nem deu bola para Érica, toda arrumada, sorridente e ronronante. Ela não ligou para o desprezo: acontecesse o que acontecesse, de agora em diante, seriam completamente perfeitos, sem nenhuma rachadura ou cicatriz que pudesse separá-los. Mais que amor, queria segurança. Mais que isso: perfeição com seguro quitado.
Em uma festa badalada, à qual Roger havia se recusado a ir e só mudou para fazê-la parar de chorar, foram fotografados para uma coluna social. Ela, tão preocupada com o sorriso do marido, pela primeira vez na vida saiu feia numa foto _ mordendo os lábio inferiores, os olhos um tanto tortos mirando o sorriso de Roger. Afinal, uma foto no jornal era uma evidência pública de um futuro divórcio.
Fato inédito: no dia seguinte, ela pegou o jornal correndo sequer olhou pra si. No rosto do marido, aquele lindo sorriso. Roger chegou em casa e viu o jornal em cima da mesa, follheou, não falou nada. No jantar, olhava fixamente para ela.
_ O que foi? Você está olhando tanto?
_ Nada, amor, você viu nossa foto no jornal?
_ Vi. Naquele dia tão tenso, você com esse sorriso tão lindo...
_ Sempre sorrio nas fotos. Só você olhar nos álbuns _ ele respondeu, para depois ficar calado a noite toda.
Ele não conseguia tirar da cabeça aquela foto. Passou a olhar, a todo instante, o rosto de Érica, sem nada dizer. Vez por outra, num descuido dela, encontrava a mulher da foto. Depois da curiosidade inicial, começou o desconforto. Passou a evitar olhar para ela. Já esquecida daquela baboseira dos sorrisos de fotografia, Érica não percebeu nada de estranho, achava que era uma nova onda de paixão do marido, a persegui-la com o olhar o tempo todo.
Marcela apareceu na vida de Roger numa campanha publicitária para uma marca de pasta de dente. Era a mulher com o sorriso mais lindo que ele já vira. Começaram a sair, a coisa ficou séria e, meses depois, eles estavam morando juntos.
Roger não soube explicar o motivo do rompimento para Érica, mas, durante a derradeira discussão, teve certeza. Tensa, chorando, com tiques nervosos, Érica era uma estranha. Para ele, permanentemente, uma estranha: a mulher dos olhos tortos que mordia os lábios na foto da coluna social.

sábado, 13 de junho de 2009

A formiga e o menino

O menino vê a formiguinha carregando uma folha para o formigueiro. Pega uma régua e coloca na frente dela. Distraída, ela sobe e nem percebe que o garoto virou a régua para o lado oposto.
Quando se dá conta que o formigueiro que estava tão perto sumiu de vista, o inseto, confiante, acelera o passo rumo ao desconhecido.
Mesmo perdida, é tão arrogante essa formiga, caminhando rápido e sem olhar para trás, pensa o moleque. Para dar uma lição nela, pega um copo d'água, abre a torneira apenas por um segundo e despeja um pouco do líquido no caminho dela. O inseto vê aquele mar à sua frente e quase morre afogado, mas contorna o obstáculo, agora cheio de cautela.
Anda devagar demais, é muito medrosa essa formiga, conclui o menino. Ele joga mais água, dessa vez, atrás dela. A formiga deixa a folhinha que carregava pra trás e acelera o passo, penando para não ser engolida por aquele tsunami.
Abatida, após escapar do perigo, ela para e descansa um pouco. Já não tem mais sua folhinha e a caminhada para o formigueiro se fez desnecessária. Inútil que é, melhor seria ficar por ali mesmo.
Uma porção de açúcar, despejada à frente dela, consegue reverter o estado de desânimo. Ela se esbalda de tanto comer e continua seu caminho. Após algum tempo, vê mais um oásis de açúcar. Mesmo carregando sobras do dulcíssimo banquete recente, se põe a comer de novo tão afoita que só percebe que está devorando sal quando começa a arder todinha.
Quase desiste de sua jornada de novo e o faria certamente se o menino não colocasse mais um montão de formiguinhas passando por ali, pertinho dela. Percebendo sua semelhante tão abatida, uma delas passa a carregá-la. A formiguinha se recupera e permanece no lombo da outra, sossegada, junto com um farelo de casca de pão. Fica tão acomodada que adormece e acaba num formigueiro desconhecido.
Só acorda prestes a virar o prato principal de um almoço promovido pela sua salvadora, que é interrompido porque um terremoto, causado pela pisada firme do pé descalço do moleque, destrói o insólito formigueiro canibal.
A formiga sai desorientada dos escombros e continua sua jornada, sem saber direito para onde está indo. O menino vai para casa e se esquece da formiga. Cresce. Um dia, desses difíceis e demorados, com um copo de cerveja quase quente na mão, sozinho em uma mesa de bar, descobre que, mesmo ainda sendo jovem e com tanto para viver, há muito deixou de ser aquele garoto. O menino existiu algum dia? Tinha apenas uma certeza: agora, ele é a formiga.

quinta-feira, 11 de junho de 2009

Entre microfones e bocejos...

Um avião caiu em cima da minha aposentadoria. Novamente, aqui estou no circo, cercado por microfones da CNN, AFP, FDP, PCC... Mudam as siglas, mas a rotina continua a mesma.
Dezenas de jornalistas amontoados em um canto, esperando que os porta-vozes da tragédia aérea soltem migalhas de notícia entre o "bom dia" e o "obrigado". Algumas menininhas da TV cuidando mais da maquiagem que da matéria e outras, decorando suas falas em voz baixa. Os cinegrafistas brigando entre si e xingando o primeiro que ousar passar pela frente da sua santa imagem. Os fotógrafos, ostentando suas máquinas fálicas, jogando xaveco pra cima das estagiárias. Os motoristas dando palpites sobre o imponderável. E eu, lá vou eu novamente.

terça-feira, 2 de junho de 2009

O louco



O louco é o inocente que passa distraidamente pelos mais diversos perigos e sempre sai ileso, protegido que é das divindades (principalmente de Dionísio, o deus do vinho, da arte, da luxúria). Idealista, canta seus amores pelas ruas sem dar a mínima para o que pensam os outros. É evocado pelos fiéis amantes apaixonados em fuga e, ao mesmo tempo, pelos libertinos do sexo livre. O bobo de Shakeaspeare é o único que só diz a verdade, em uma corte em que um olhar atravessado pode levar à morte. Força da natureza que é, o louco ou o bobo, como quer que o chamem, não tem medo de nada por não saber o que é o perigo. Está à beira do abismo, prestes a dar o grande salto para outra dimensão.

domingo, 31 de maio de 2009

Nossos felizes eus virtuais, com seus sorrisos fresh

É como se, fazendo careta, olhássemos no espelho e estivéssemos sorrindo. Nossa vida virtual (Orkut, Facebook, Twitter, blog) é, muitas vezes, o retrato do que gostaríamos de ser, mas não somos, pelo menos não na maioria do tempo. Isso explica a quantidade de sorrisos e, mais, sorrisos de casais felizes, no Orkut. Não que eu seja diferente. Minha foto do Orkut é uma figura sorridente, em frente uma praia paradisíaca. Talvez eu tenha sido aquela pessoa alguma vez, mas com certeza não sou ela o tempo todo. Meus dias são muito diferentes dos daquele cara. Ele, com certeza, a essa hora está naquela mesma praia, com aquele mesmo sorriso, preparando-se para tomar cerveja e petiscar. Talvez, ao contrário de mim, ele faça exercícios regulamente e até mesmo saiba surfar. Eu, por minha vez, acabei de acordar e estou no meu quarto, em um domingo, escrevendo esse texto. Não estou sorrindo, pois a alegria desse meu outro eu em nada influencia a minha vida. A tristeza dele, pelo contrário, provavelmente me soaria cômica e algo de dolorosa: riria se na foto ele estivesse escorregando em uma casca de banana e, possivelmente, teria resquícios da dor nas costas dele. Se pudesse ler meus pensamentos como leio os dele, meu avatar estaria certamente pensando por que perco meu tempo nesse tipo de raciocínio com uma praia tão linda tão perto desse quarto em que estou. OK, talvez ele é quem saiba viver.

sexta-feira, 29 de maio de 2009

O lendário tio Quim

Quem via ele assim, sorridente, baixinho, a barriga que mal se continha dentro da camisa quase sempre abotoada errado, não imaginava que fora um lendário ponta-direita da várzea do Tatuapé. Diziam, até, que na época de moleque, enquanto os outros trocavam a bola facilmente pelo rabo de saia, ele era o mais fiel de todos ao objeto de adoração, não largava ela por nada. (Mais tarde ele confessaria quem quisesse ouvir que não era mesmo “muito metelãozinho” nessa época, embora tenha tido quatro filhos, um deles depois dos 40 anos).
Tio Quim me ensinou muitas coisas, a primeira delas foi jogar futebol. Não que eu tenha aprendido tudo que ele tivesse a ensinar, mas aprendi mais do que meu talento permitia. Aos 9, 10 anos, eu era o grosso do time, mal sabia se chutava com o pé direito ou esquerdo. Íamos eu, ele e um dálmata que não me lembro o nome, mas que me parecia um sujeito muito simpático, treinar no parque Sampaio Correia, na Vila Carrão. Sem tirar o cigarro da boca, dizia: “Fio, hoje em dia é diferente, não basta ter habilidade, o principal é ter condição física”.
Tempos depois, se não era um craque, eu já havia assumido o espírito do antigo firuleiro da várzea. De tanto treinar com o pé errado, acabei ponta-esquerda, destro com as mãos e canhoto com os pés. Não passava mais vergonha com a bola, embora meu fôlego deixasse a desejar.
Não foi à toa que minha paixão pelo futebol acabou perdendo cada vez mais espaço para minha vocação para a boemia. Nessa mesma época, tio Quim não podia beber em um evento familiar e me levou para um boteco desses bem fuleiros, onde botou um copo de cerveja na minha frente e uma porção de petiscos nada apetitosos, ovos coloridos, salsichas suspeitas, picles duvidosos; engoli a comida o mais rápido que pude e bebi a cerveja de um gole só. “Fio, bebedor tem que tomar devagar e petiscar, senão passa mal e acaba passando vergonha”, advertiu o tio, tomando seu copo de cerveja quente, assim como fazem esses sujeitos da Irlanda e da Alemanha.
Durante essa mesma conversa, outro ensinamento: além de petiscar enquanto bebia, não se devia ser puxa-saco de chefe, que era a pior raça que existia. Admito que, muitas vezes, não sigo o primeiro conselho e acabo trançando as pernas, mas esse último nunca deixei de seguir. Torneiro mecânico, o tio deve ter sido o pesadelo dos encarregados carreiristas, mas, para nós, sua profissão era deveras útil, já que nos garantia trofeuzinhos de metal feitos por ele para os torneios de futebol de botão.
Descobri depois de velho que ele estudava a árvore genealógica da minha família, os Rodrigues Rocha. Por meio das pesquisas dele, sempre muito contraditas pelos parentes que sonham ser descendentes de príncipes e nobres, descobri que nosso antepassado foi um feitor de uma fazenda de escravos. Talvez aí esteja o motivo para não sermos puxa-sacos: não repetir o erro desse infeliz ancestral.
Pouco vi o tio Quim depois de adulto, mergulhado no trabalho e em tantas outras coisas da vida, mas, a cada vez que via, preferia enxergar aquele do copo de cerveja quente na mão e das histórias sobre o futebol bonito dos campos de terra, embora ele já não pudesse mais nem beber nem fumar. Por não poder mais viver muito de uma só vez, como estava acostumado, parecia minguar, quietinho no seu canto.
Esses dias foi o enterro do tio. Por estar a mais de dois mil quilômetros de São Paulo, não pude ir. Mas tenho certeza que, assim como aconteceu comigo, por um momento que seja, filhos e sobrinhos lembraram com alegria como é importante um tio Quim na vida de um menino.

quinta-feira, 28 de maio de 2009

Retrato falado


Depois de várias horas de trabalho exaustivo, o mais parecido que consegui ficar comigo mesmo foi isso. Quem quiser tentar fazer o seu retrato ou o de algum criminoso com quem trabalha ou frequenta o boteco pode tentar a sorte no http://flashface.ctapt.de/. Tirei a dica do blog http://williampaiva.wordpress.com/.